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Considerações Críticas Sobre a Racionalidade Jurídica e a Discriminação no Trabalho

II – RACIONALIDADE JURÍDICA

2.4 Considerações Críticas Sobre a Racionalidade Jurídica e a Discriminação no Trabalho

Incorporamos a tese de que o método tópico atua como auxiliar no processo interpretativo e permite pensar, refletir, questionar problematicamente sobre uma situação fática controvertida, levada à apreciação da tutela jurisdicional do Estado, cuja decisão deverá ser mais correta do ponto de vista da racionalidade.

Ademais, perfilhamos o entendimento de que a concepção que está na base da argumentação jurídica é de cunho político e moral, em que se vislumbra uma teoria interpretativa, a qual arrasta o método mais apropriado para a interpretação do Direito sob a melhor luz. Verberando de outro modo: o método tópico-sistemático terá melhor sustentação teórica a partir de uma racionalidade

93 CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito,

op. cit., p.246-270.

94 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito, op. cit., p.72. De acordo com o autor em comento, há um

exagero na contraposição entre pensamento tópico e pensamento sistemático, na medida em que a noção de sistema axiomático ou de dedução é mais estreita que as utilizadas pelos lógicos e que estes não parecem ter inconveniente em reconhecer a importância da tópica no raciocínio, mas sem que isso signifique prescindir da lógica.

substantiva de cunho moral, o que deve ser verificado na prática social da sociedade, ainda que não haja procedimento institucionalizador de tal prática.

O pensar problemático nos permite a tempestade cerebral que dinamiza o ato interpretativo com o devido enquadramento da norma ao problema e não do problema à norma; por outras palavras: ao invés de perguntar qual a norma que ampara a questão, pergunta-se: quais as implicações, as particularidades do problema posto e as alternativas que se apresentam para resolvê-los e que teoria interpretativa pode sustentar tal método de deslinde de casos judiciais complexos?

A utilização do método tópico, de modo algum, descarta o raciocínio indutivo, tampouco o dedutivo ou premissas da lógica formal, que não devemos ter receio em afirmar que utilizamos no cotidiano, pois alguma racionalidade é necessária, de outro modo seríamos céticos a ponto de desprezar o Direito fundamentado pela logicidade racional tradicional, desde que tenhamos a convicção de que a racionalidade a ser priorizada seja substantivamente apoiada em uma teoria interpretativa de conteúdo moral e político.

Apesar disso, não se deve considerar a prevalência do método como instrumento apto a domar a fluida irracionalidade da realidade concreta, mas considerar a interpretação mais acertada sobre as questões problemáticas reais, de modo a que isso resulte em decisões fundamentadas com substancialidade, com o encontro do intérprete ao modo de ser do fenômeno jurídico95.

É necessário estar atento para os diversos tentáculos que se estendem de um caso concreto pensado problematicamente em face de sua complexidade e de sua abertura sistemática. Esse é o caso da discriminação no trabalho, que se trata de uma matéria complexa, a qual se espraia para o vasto campo do sistema jurídico e outros sistemas, dada a sua característica transdisciplinar96. Com a metodologia tópico-sistemática se permite adequar a norma ao problema posto para ser interpretado e não o inverso.

95 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, op. cit., p.153.

96 Conforme o pensamento de Zabala, em argumentos dispersos ao longo de seu livro, três formas de

relações disciplinares podem ser trabalhadas: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Pela multidisciplinaridade, a organização dos conteúdos é apresentada por matérias independentes uma da outra; na interdisciplinaridade, há interação entre duas ou mais disciplinas, com integração recíproca de conceitos, metodologia, teoria do conhecimento etc...; e, na transdiciplinaridade, busca-se o grau máximo de relações entre as disciplinas, de forma globalmente integrada, no contexto de um ambiente totalizador. ZABALA, Antoni. A Prática Educativa: Como

Embora se possa conferir importância à afirmativa de que a questão central da metodologia jurídica é a racionalidade da decisão judicial, com que se há de concordar com a devida ressalva, não devemos ignorar que o processo decisório deve ter substância, de tal modo que o procedimento a ser utilizado seja o mais adequado para conferir efetividade aos princípios e direitos fundamentais, como o direito de não ser negativamente discriminado, que deriva do princípio de moralidade política de que todos devem ser tratados com consideração e respeito.

Para melhor ilustrar o raciocínio expendido, volvemos para a sentença judicial exarada em face do pleito da reclamante por indenização por danos sofridos em face da dispensa por ser portadora do vírus HIV. Consoante a decisão judicial da Vara de Trabalho, a reclamante aidética só faria jus ao pleito indenizatório se estivessem presentes três elementos conjugados: o fato ilítico, o dano e o nexo causal.

A partir dessa premissa, certamente se poderá construir uma decisão pautada na racionalidade jurídica, mediante um raciocínio dedutivo de enquadramento do problema controvertido aos lindes da lei. Mas, essa pode não ser a melhor racionalidade jurídica que justifique o fundamento do Direito.

O magistrado decidiu pautando-se nas provas produzidas, máxime o laudo pericial que constatou a existência do vírus HIV, afirmando a possibilidade de controle da doença e a capacidade laborativa da reclamante.

As provas devem ser consideradas, não há qualquer dúvida quanto a isso, a questão reside na valoração das mesmas, que deve considerar que a discriminação negativa tem fulcro moral, razão pela qual os argumentos morais não podem ser desprestigiados.

O pensar problemático do magistrado, tendo por pressuposto a norma existente sobre reparação do dano, primou pela pesquisa em torno da existência conjugada do fato ilícito, do dano e do nexo causal, capazes de ensejar a reparação.Em contraponto a isso, a racionalidade da decisão judicial poderia ser construída a partir da problematização sobre a melhor forma de se apurar com acuidade, tendo por baliza os princípios e direitos fundamentais, a dispensa discriminatória. Certamente, a apuração deve passar pela fluência dos argumentos de princípios com base na moralidade sem a preocupação com filtros procedimentais de algumas regras processuais.

O raciocínio dedutivo, em resposta à questão levantada pelo magistrado de primeira instância, seria de que, tendo um laudo pericial, que é uma prova técnica processualmente robusta, atestando que não houve dano que possa ser imputado ao empregador, não há fato ilícito, logo, não há que se falar em reparação, pois assim determina expressamente a regra jurídica. Logo, por essa percepção dogmático-racional, não houve e jamais haverá discriminação no trabalho. Realmente, há uma crise de percepção.

Diferentemente, o acórdão partiu da premissa de que há preconceito com relação ao aidético pelo indivíduo, pelo grupo e pela sociedade, de tal modo que o portador de HIV é detentor implícito da garantia de emprego, o que caracteriza a sua dispensa, ainda que sem justa causa, como de natureza discriminatória, o que confere direito à reparação pelos danos sofridos.

A melhor aferição da postura discriminatória deveria envolver profissionais especialistas de diversas áreas do conhecimento, pois, no laudo pericial que serviu de lastro à decisão de primeira instância, não se faz referência aos danos psicológicos sofridos, só para exemplificar, ou seja, é possível que houvesse alguma pré-compreensão sobre isso por parte do magistrado, que, como um ser humano, é portador de valores construídos pelas experiências vividas, impeditivas do pensar tópico-sistemático, que deve ser sustentado por uma teoria da interpretação jurídica de natureza substantiva. Mas, para confirmarmos essa afirmação, precisamos perpassar de forma crítica pelo discurso judicial pautado na racionalidade legitimada pelo procedimento.