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As atividades com material radiativo, que podem ser denominadas nucleares, vêm freqüentemente associadas a uma idéia de apocalipse, explicável pelo seu uso bélico e, também, pelos efeitos dramáticos provocados por alguns acidentes graves em usinas nucleoelétricas, ou mesmo acidentes radioló- gicos como o de Goiânia, aqui no Brasil (Gabeira, 1987). As centenas de usinas nucleares espalhadas pelo mundo – e, sobretudo, pelos territórios dos países industrializados – nem sempre são bem-vistas pelas populações das regiões nas quais são implantadas. A elas são atribuídas finalidades sociais pacíficas, mas este argumento deixa de lado o importante fato que as vincula com a vertente bélica da utilização da energia nuclear, que é a geração de um subproduto da queima de combustível, aproveitável para confecção de artefatos. No Brasil, a liderança dos militares para os acordos e construção das usinas torna esta ligação ainda mais evidente.

Angra I apresenta problemas estruturais, de falha de projeto inclusive, e a forma de contrato turn key é apresentada como a responsável por estes defeitos terem sido encobertos até o momento de seu funcionamento. Ela tem sua operação interrompida durante longos períodos e, embora os técni- cos lembrem que as paradas são obrigatórias para qualquer usina nuclear, algumas delas se devem a problemas judiciais, incidentes operacionais e enguiços. A população circunvizinha passa a ver essas interrupções como sinais de que algo não vai bem, e a falta de seriedade, que popularmente pode ser atribuída ao Brasil como nação, passa a se inserir também no imaginário construído pela população angrense sobre a usina. Angra I, que se apresentou inicialmente como uma promessa de desenvolvimento e progresso, consegue

aglutinar tanto a frustração do que ela parecia prometer e não honrar, quanto estar perfeitamente de acordo com a expectativa segundo a qual um símbolo de modernidade ficaria, de qualquer maneira, sem sentido num país pouco

sério; ou seja, a extensão da falta de compromisso para com a população

brasileira, e que se aponta nas instituições nacionais e na esfera do poder público, resulta no questionamento de como uma tecnologia de efeitos tão perigosos pode ser manipulada com seriedade por profissionais nacionais. Por outro lado, seus técnicos, que há muitos anos dedicam esforços profis- sionais e pessoais, porque fazem de suas casas uma extensão do trabalho, a Angra I, mantêm a usina em funcionamento, com todas as críticas e percalços. Formados no Brasil e nos Estados Unidos da América, eles se ressentem de encontrar reconhecimento profissional apenas fora do país onde nasceram e moram, lamentando também uma certa marginalização dentro da própria empresa, Furnas, que administra várias termoelétricas. Eles viveram – e vivem – um sonho “moderno”, tal como Giddens define, de progresso e tecnologia de ponta; convictos de que a Ciência encontrará brevemente soluções para a alocação de rejeitos, eles esperam que o Governo brasileiro volte sua atenção para o seguimento do Programa Nuclear para

fins pacíficos. Eles rebatem as acusações que recebem afirmando que a falta

de informação é a causa de grande parte da oposição. Acreditam então que, com a prática que vêm adotando de desmistificar as atividades da usina, conseguirão reverter as opiniões desfavoráveis. Os empregos oferecidos pela Central Nuclear constituem uma fonte de troca com a população local, que se sente desprestigiada pelos trabalhadores de Furnas e vilenses. A oferta de serviço é a função social de Angra I mais lembrada pelos moradores da

periferia e também pelos habitantes de Praia Brava, ficando a produtividade

secundarizada. A questão da produtividade também fica em segundo plano com relação à segurança; esta é a marca inicialmente ressaltada quando eu perguntava sobre as características de Angra I, tanto para vilenses quanto para os técnicos.

Dentro da usina, as tarefas requerem um constante movimento de medição e separação, de tudo que é quente ou radiativo e contaminado daquilo que é

frio. Esse movimento é a base da segurança que os profissionais necessitam

no trabalho para minimizar doses e contaminações. Não acham adequado classificar a usina como perigosa, porque isto sugere uma possibilidade de risco iminente, e consideram o risco que experimentam controlado. O controle é dado pelo conhecimento, a que Giddens denominou “perito”, e as taxas, na medida em que manifestam a possibilidade deste controle, são percebidas num limiar entre o que é permitido e o que é inofensivo. A po-

luição produzida pela usina também se torna um conceito ambíguo por este

motivo. A radiatividade lançada no mar e no ar, como está dentro de limites considerados baixos, não provoca contaminações ambientais detectáveis, favorecendo a que alguns técnicos afirmem que a usina não polui.

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É bem comum as usinas nucleares serem comparadas às bombas atômicas. Essa aproximação faz das usinas nucleares algo passível de explodir. Os técnicos brasileiros explicam que o que aconteceu em Chernobyl foi uma explosão térmica, e não radiativa, e o material radiativo se espalhou, im- pulsionado pela explosão porque, diferentemente de Angra I, que possui uma Contenção, lá não havia nada que protegesse aquele triste Reator 4. No acidente de Three Mile Island, houve uma explosão dentro do Reator, que não chegou a romper o Vaso, e não foi o combustível que explodiu, já que ele derreteu, e sim o gás hidrogênio. Alguns técnicos afirmam que

não explode, outros afirmam que não explode como uma bomba, porque o

combustível usado na usina não é tão enriquecido quanto aquele necessário para explodir como uma bomba.

Os vilenses ficam divididos com relação à possibilidade de uma explosão, preferindo a hipótese do vazamento, que acham um pouco menos impossível. Com relação à poluição, são praticamente unânimes em afirmar que a usina

não polui, concordantes que estão com o papel das taxas. Essa consonância

com taxas e doses permitidas faz com que moradores e técnicos minimizem ou banalizem o risco. Dito de outra forma, eles vêem o risco por uma outra óptica. Nem tudo que é uma ameaça é percebida como fonte de risco. A

estrada, a periferia e a usina trazem perigos, eles admitem; mas a última

permite mecanismos de controle e de convívio, ao contrário dos anteriores. Seguindo Mary Douglas, uma comunidade hierarquicamente otimista e confiante no ser humano como produtor de conhecimento, tecnologia e

progresso vê os riscos tecnológicos com menos temor. As ameaças sociais

e de perdas pessoais representadas pela periferia e estrada, sobre as quais os moradores muito pouco podem fazer, oferecem um risco mais visível, ou melhor, uma ameaça que se transforma em risco para os vilenses.

As inscrições nos cantos Sul e Norte de Praia Prava, indicando os Pontos de Embarque, caso seja necessário o abandono da vila, passam despercebidos aos olhos dos moradores para os quais o risco é só no papel. Mas o medo existe e é visível quando uns decidem manter o carro com o tanque cheio, outros passeiam pela praia para ver se o barulho que vem da usina é normal, e outros ainda afirmam que há quem nada compre para nada ter de deixar para trás; os trabalhadores não são exceção e sentem medo da contaminação interna. O que chamo de minimização do risco não é a ausência de medo, porque eles também afirmam que nada se compara a um acidente nuclear. A minimização do risco é um processo de torná-lo aceitável, através de “ce- gueira”, como descreve Zonabend, de reificação das taxas e doses, e ainda de equiparação com outras fontes de perigo. Expressar o risco de forma pessoal, sem levar em consideração que ele atinge parcelas da população e das gerações seguintes, é tanto uma maneira de fazer com que ele se torne aceitável, quanto um modo de o morador tornar mais confortável o papel de pró-nuclear, que ele assumiu ao trabalhar na usina ou lá habitar.

Por parte dos técnicos, esse risco é visto tal como Giddens analisa. O risco como uma quantidade ou percentagem com a qual se lida em relações cons- truídas sobre a confiança depositada nos sistemas de conhecimento perito. Isto caracteriza uma noção de risco, baseada em princípios “modernos”, de onde a idéia de Deus foi expulsa. Mas, para os demais moradores, as téc- nicas de monitoração e de conhecimento pessoal trazem a garantia de que este perigo não cause tanto medo e permita os mecanismos de minimização; eles vivem o risco através de uma hierarquia cujos rostos são conhecidos e que garante que a eles nada venha a acontecer. Eles confiam na confiança daqueles que sabem. Mesmo não vivenciando o risco como “modernos”, falam com se fossem, ao saberem que, por eles, há Furnas na Terra e, para quem reza todos os dias, Deus no Céu.

REFERÊNCIAS