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Angra I passou, ao longo de sua história, a significar coisas opostas: para seus funcionários é o Primeiro Mundo, enquanto que, para os seus opositores, é submundo, e ainda, para aqueles com uma visão apocalíptica do nuclear, é o fim do mundo. Já foi dito que, no momento da implantação da usina, o investimento foi visto como algo extremamente positivo pela população local, pois havia a promessa de progresso para a região, incluída nas obras que começavam. Com o passar do tempo, o isolamento da usina em relação ao município (ROSA et al., 1988) foi frustrando esta expectativa, e Angra I passou a ser vista negativamente. Esta alteração do significado da usina para a população angrense, analisada no trabalho de Rosane Prado (Prado, 1990), é expressa pelos próprios moradores de Praia Brava que afirmam

irritados com a oposição à Angra I: “No início, não havia ninguém contra a usina.” Moradores e técnicos consideram que o isolamento, isto é, o impe- dimento de que a população em torno compartilhasse do progresso trazido por aquela indústria nuclear, é o que está por detrás da desconfiança e do desdém subentendido no nome vaga-lume.

Essa promessa de desenvolvimento associada às implantações de usinas e sua frustração é um duplo movimento vivenciado em outros lugares do mundo. Um exemplo é o que ocorreu em Plymouth, nos EUA:

O processo de licença para usinas nucleares excluiu a participação do público, a despeito da clara determinação do Ato de 1954 da Comissão de Energia Atômica, porque a tendência é de os cientistas e legisladores assumirem o processo. (...) Uma das mais importantes lições que tiramos do caso de Plymouth é a necessidade de obtermos a participação dos moradores locais desde o início do processo de implantação, antes mesmo de se obter a per- missão de construção ou da licença de operação. A segunda lição concerne os encargos que as comunidades locais são forçadas a assumir entre os supostos benefícios econômicos trazidos pelas usinas nucleares (oferta de trabalho e impostos pagos ao município) e os problemas de segurança e de impacto ambiental que elas acarretam. Plymouth, como muitas outras comunidades anfitriãs de usinas nucleares, experimentou a maior crise fiscal e econômica quando foi iniciada a construção da usina nuclear (DAVID, 1981, p. 90).

Embora a implantação de usinas nucleares sem a consulta da população, e também, até contrariamente à sua vontade, quando manifesta, aconteça em países democráticos (Zonabend, 1989 ; David, 1981), na época em que a usina foi implantada no Brasil, estava em vigor um governo militar que não foi eleito, sendo fácil de se entender que, havendo ou não desaprovação por parte da população com relação à usina, não havia espaço para uma reação contrária a qualquer projeto deste governo. Na verdade, o que existia era o

desconhecimento do que se tratava, inclusive entre os profissionais que iam

chegando. Tudo era novo para todos. As pessoas contam que se engajavam no projeto e sentiam que pertenciam a uma elite, que constituíam um grupo

privilegiado. O nuclear, com o passar do tempo, na condição de indústria,

ficou distante da realidade a que ele, como símbolo, remetia. Com a oposi- ção da sociedade e o isolamento político e social da comunidade de Furnas na região, a empresa teve que se adaptar a esta mudança enfrentando mais respeitosamente o medo da população circunvizinha, criando relações mais democráticas de trabalho e se despedindo do sonho do Primeiro Mundo para encarar a realidade brasileira, para, assim, desmistificar a usina como

bode expiatório.

As usinas nucleares que mudaram de significado aos olhos da população que as hospeda, com suas especificidades locais de história e contexto cultural, e que são acusadas de frustrar um progresso que acenavam trazer, parecem evidenciar o malogro da era que representam e seu respectivo quadro de

valores, subentendido na palavra progresso. O que quer que ele signifique, desenvolvimento tecnológico ou maior acesso aos bens de consumo, acaba por não se apresentar como foi esperado e, até inversamente, acaba por pro- vocar crises, como observou Shelton David em trecho citado anteriormente. O progresso, como é compreendido desde o fim do século passado, tem dois aspectos, conforme analisa Lévi-Strauss em Raça e História (LÉVI-S- TRAUSS, 1976). Esses dois lados estão presentes nas suas materializações, e as usinas nucleares estão aí incluídas. As frustrações locais que elas causam são definidas por cada localidade segundo os signos regionais, mas ocultam uma só, que é o fracasso dos propósitos da era da qual foram estandarte. A mudança de significado observada pelos pesquisadores em Angra dos Reis, no Hague e em Plymouth, pode ser entendida como traduções locais para um desencantamento global.

Além disso, o mistério de que elas se cercam parece querer velar por sua ambigüidade. Ele abre espaço para a imaginação, que tanto pode fabricar um futuro perfeito, quanto o apocalipse. O futuro perfeito seria o da energia

limpa, não-poluente, e que resguarda o mundo de uma grave crise energética

na qual populações inteiras poderiam, sem esta indústria garantindo a ener-

gia necessária, morrer de fome ou frio. O apocalipse seria a guerra nuclear

para a qual o plutônio está garantido como subproduto das usinas nucleares para a farta confecção de artefatos. Essa dubiedade entre energia para a prosperidade ou plutônio para o holocausto é um segredo constantemente desvendado pelo imaginário leigo. Como afirmam os entrevistados de Praia Brava, a energia nuclear se apresentou ao mundo explodindo, e pode-se acrescentar que o nascimento das usinas nucleares não foi, de modo algum, dissociado do contexto bélico; seu produto foi e é a garantia de suprimento de matéria para artefatos. A classificação dentro dos usos pacíficos da energia nuclear fica então inconsistente, o que fica explícito nas palavras das crianças de Chernobyl, que associam os efeitos do acidente da usina nuclear aos da bomba atômica. Elas afirmam viver uma guerra (TOKURIKI, 1996). As usinas nucleares, funcionando para a produção de energia elétrica, revelam seu lado bélico no momento em que nascem, isto é, historicamente, e no momento em que morrem, ou seja, quando acontece um acidente.

O imaginário associado à tecnologia nuclear, pelos fatores já mencionados, que incluem aspectos mais gerais e, por isso, aplicáveis a toda e qualquer usina nuclear, relativos à origem da utilização desta forma de energia, e às características da radiatividade, juntamente com aqueles relacionados especificamente a Angra I, derivados dos percalços do Programa Nuclear Brasileiro, e problemas estruturais da usina importada dos EUA fazem com que a única usina nuclear em funcionamento no Brasil tenha uma relação difícil com a segurança. Dito de outra forma, a usina é apresentada priori- tariamente, enfocando-se a segurança, que ganha mais importância do que a produtividade. É comum ouvir-se que a usina gera empregos, ficando sua função básica, que é a de produzir energia, em segundo plano, sugerindo que

dissociado da geração elétrica. Percebi nas entrevistas que, a despeito de quão vaga fosse minha pergunta a respeito de Angra I, a resposta começava pela segurança; isto também é explicável pelo fato de ter-se tornado impo- pular, de tal forma que seus funcionários trabalham sob o olhar atento dos representantes da população localizada a sua volta. A usina transformou-se em um prédio suspeito, e seus trabalhadores, bem como os demais mora- dores de Praia Brava a ela ligados, se esforçam para defendê-la, já que eles desenvolveram meios de nela confiar:

A usina tem pontos positivos, porque gera empregos, e negativos, para o PV e o Movimento Ecológico, que tratam a usina como se fosse um monstro, contaminando o mar (adm./graduado de Furnas).

Angra I tem acrescidas às ambigüidades comuns a todas as usinas nucleares do mundo questões específicas originadas de ter sido apresentada como um símbolo de progresso em um país em desenvolvimento e ter ficado com uma auto-imagem negativa. Enquanto os entrevistados vivem algo que os aproxima do Primeiro Mundo, tanto em termos de serviços prestados nas vilas, quanto em termos de tecnologia manipulada no trabalho, a população que os cerca encara a usina como algo que já deu errado. Os apelidos, os comentários pejorativos, as desconfianças, tentativas de desmoralização por parte de seus opositores, tudo isso cria um sentimento de discriminação que, paradoxalmente, convive com a sensação de superioridade, traduzida na alusão ao Primeiro Mundo, partilhada pela “comunidade nuclear”. Parece que o inverso do Primeiro Mundo é o submundo que alguns consideram existir no sítio da Central. Um bom exemplo deste pensamento é dado por um trabalhador de Angra I que, antes de trabalhar na usina, a via com descaso:

Achava perigosa uma usina nuclear. Nós sabemos como é nosso país. Difícil você ver nesse país algo sério, e eu achava que aqui era submundo; vim para cá trabalhar e fiquei tranqüilo. Não sei se eu mudei ou a realidade mudou (manutenção/não-graduado de Furnas).

A propósito desta mudança, foi dito numa entrevista que: “hoje há uma cultura nuclear; hoje temos que ter a consciência de que somos tupiniquins”. Com esta frase, o entrevistado não abre mão de pertencer à elite intelectual, que é a responsável pela disseminação de uma cultura nuclear, mas aceita a condição de ter que lidar com segmentos de população, anteriormente ignorados por Furnas, e com alguns de seus próprios colegas, incluídos no adjetivo tupiniquim, que designa o que é contrário ao Primeiro Mundo. Re- conhece, assim, a necessidade de novas fórmulas para a convivência pacífica do passado tupiniquim com o futuro das superpotências. O submundo, para conviver com o Primeiro Mundo, deve compartilhar certas instituições que nem sempre combinam com atividade de risco; é o exemplo do jeitinho brasileiro (DA MATTA, 1980 ; BARBOSA, 1992), bem ilustrado no caso já mencionado dos mecânicos:

Os mecânicos são os mais indisciplinados. Eles querem acabar rápido o servi- ço, acham que o pessoal da radiologia está bloqueando o serviço deles e vão lá e dão o jeitinho, acabam se contaminando (graduado/Furnas/Prot. Rad.).

No curso de reciclagem, o professor de Segurança Industrial falou:

Tem que trabalhar com segurança! Esquece o jeitinho brasileiro. Nós esta- mos numa usina nuclear e não na quitanda do “seu” Joaquim (graduado da Prot. Ind.).

Entretanto, esta maneira de proceder tem suas vantagens, mesmo em se tratando de uma usina que exige, pelos riscos que oferece, procedimentos rígidos. Quando o jeitinho deixa de ser um drible nas normas para a obtenção de uma vantagem pessoal, para ser criatividade, ele torna-se útil:

Os técnicos antigos já sabem dar aquele jeitinho da experiência; já criou soluções alternativas (não-graduado ligado à operação).

Este grupo de técnicos mais experientes e que usa o jeitinho, não como questionamento das regras, mas como criatividade, é a já mencionada

elite intelectual que, no momento da implantação da usina, personificou a

vanguarda do mais contundente símbolo de progresso a que o governo da época aspirava:

Isso daqui é Primeiro Mundo. Você vai numa reunião social, você só ouve: quando estive em N. Y., Londres, Berlim. Aqui as coisas funcionam. Somos mais respeitados lá fora do que aqui. Eu e mais dois colegas fomos chamados pela AIEA, que é um organismo da ONU, para fazermos auditoria em usinas de vários países do mundo. Nos enche de orgulho termos uma plaquinha na frente escrito Brasil. Lá fora nos ouvem e respeitam (graduado ligado à operação).

Essas pessoas viveram um sonho que começou na primeira metade da década de 70 e foi se desfazendo ao longo da década de 80. Prefiro a palavra sonho a projeto porque o que embasou a construção de Angra I foram promessas e expectativas em torno de um símbolo, paralelamente a toda inconsistên- cia que caracteriza as políticas brasileiras estabelecidas há décadas sobre a “questão nuclear”, como atestam os autores que escreveram sobre a história do Programa Nuclear Brasileiro (MALHEIROS, 1993, 1996 ; OLIVEIRA, 1989 ; FÜLLGRAF, 1988). A necessidade de energia nuclear para o Brasil até hoje não é algo claramente estabelecido até mesmo na opinião dos tra- balhadores de Angra I. A este propósito, um funcionário graduado ligado à operação disse que não achava que tal necessidade existisse, embora visse outras motivações para a construção desta e de outras usinas nucleares. Outro afirmou que considerava a tecnologia nuclear “supérflua num país como o nosso, onde há tanta fome e miséria”. A forma de contrato também ajudou a manter este projeto distante de sua concretização, pois se comprou uma usina cujas reais condições eram desconhecidas.

Os entrevistados foram peças fundamentais do segmento idealizador do Programa Nuclear, composto pelos militares. Quando esta aliança se des- fez, a comunidade ficou sozinha, isolada, enfrentando problemas de ordem técnica, política, social e, por que não dizer, psicológica, esta decorrente do modo de vida já descrito. Nas entrevistas, surgiram reclamações nostálgicas destes tempos em que contavam com os poderosos aliados:

A década de 80 foi uma fase negra para o país. A questão nuclear foi sendo esquecida a ponto de um ex-Presidente da Nuclebrás me confidenciar que não via futuro para a empresa (graduado de Furnas/ operação).

Se houvesse um golpe militar, Angra II estaria pronta porque ela está prati- camente pronta, falta só decisão política (adm/ graduado de Furnas).

Necessária ou inútil, Angra I está operando, e seus opositores, que não têm como saber exatamente o que se passa lá dentro, fazem a aposta como se a usina fosse uma metáfora do Brasil: algo pouco sério, submundo, como um funcionário disse considerar a usina antes de lá trabalhar, e que é, também, como nós brasileiros geralmente nos referimos ao nosso país. A expressão “país do futuro” vem sendo ironizada por revelar um constante adiamento de desenvolvimento, mas preferivelmente é utilizada com o desdém de quem não acredita nem no presente, nem no devir. Algo que já não deu certo. Um entrevistado disse: a usina virou bode expiatório. A explicação para isto tem a ver com o fato de ela ter características que fazem dela um símbolo privilegiado do Brasil como nação como, por exemplo, as suas grandes dimensões, desproporcionais com o que produz.

Esta vila se considera tão “humana” quanto qualquer outra, mas isolada e discriminada em relação à sociedade brasileira, e se pensa privilegiada, porém doente, vítima do tédio. Quando os pioneiros desta empreitada chegavam para iniciar as obras da primeira usina nuclear do Brasil, suas histórias pessoais passavam por um ponto de inflexão, para então dar lugar à história comunitária, num aglomerado profundamente hierarquizado,

competitivo e autoritário. Aqui, alguns que vinham do interior poderiam

começar a ter nesta nova sociedade uma posição mais central, mais urbana. Outros deveriam compor esta pirâmide permanecendo na base, para que o topo existisse. Por isso, cada qual no seu lugar era a maneira de organizar

hierarquicamente esta mistura, termo de referência também usado pelos

entrevistados ao descreverem a confraternização dos primeiros tempos do erguimento da usina, que aglutinava mineiros, paulistas, cariocas, flu- minenses, nordestinos, engenheiros, peões, militares, técnicos para tudo, fugitivos do extinto presídio da Ilha Grande, secretárias... Acredito que nela houvesse alguma coisa em comum: o sonho de construir algo diferente para si, melhorar, progredir. Para os técnicos especializados, era o sonho da modernidade, da era nuclear, do progresso tecnológico, da tecnologia

assinou com a Westinhouse. Com o tempo, a resposta ao excesso de convívio foi que, depois de um período inicial de grande ebulição, surgiram as tenta- tivas de se resguardarem, gerando a prática conhecida por individualismo, ou seja, o medo de se relacionar, o cuidado em se expor. A preferência atual da comunidade por se relacionar através de grupos pequenos e fechados, declinando de comparecer a atividades maiores, envolvendo parcelas grandes das vilas, é um aspecto do marasmo ou doença de que alguns se ressentem. Acompanhando o quadro de modificações gerais no país, que busca afirmar sua opção democrática, reformular opções na área da economia, privatizar empresas estatais, redimensionar o Programa Nuclear etc., Furnas e as vilas passam também por mudanças. Porém, pode-se dizer que o fim da ditadura militar, a paralisação do Programa Paralelo durante o governo Collor e a reforma administrativa feita pelo mesmo governo foram marcos anteriores que começaram a mexer profundamente com o modo de vida vilense. Nas vilas, a hierarquia começa a ser discutida, as comemorações comunitárias do passado ficaram escassas, e as famílias se retraíram. As vilas parecem tentar descobrir novas fórmulas de convivência, só que, desta vez, na década de 90. Tempos mais claros que os idos de 70, quando tudo começou para Praia Brava e Mambucaba, e que, por isto mesmo, não têm sombras que ajudem a conciliar o sono dos sonhos desfeitos.

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