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Existem alguns trabalhos voltados para o estudo de vilas residenciais asso- ciadas a indústrias e, entre eles, o de Lopes (1988) analisou as características deste tipo de moradia, apontando o que faz dele um modo específico da forma geral de dominação implicada nas relações patrão/empregado na nossa sociedade. J. Sergio Leite Lopes trabalha com uma fábrica de tecidos localizada no Nordeste brasileiro, proprietária de inúmeras casas construí- das em seu próprio terreno, constituindo um sistema ou, como denomina o autor, um “padrão fábrica com vila operária”. Os trabalhadores podem ser incorporados à usina através do aliciamento feito pela direção da empresa, que envia veículos para transporte coletivo às regiões onde agricultores e suas famílias possam, devido às dificuldades de subsistência, sentir-se atraídos pela mudança de vida. Paralelamente a este tipo de captação de trabalhadores, ocorrido em períodos especiais em que há maior necessidade de empregados, e destinado a uma faixa de baixa especialização como mão-de-obra fabril, também há o recrutamento da força de trabalho mais qualificada. O autor demonstra como essa associação residencial é uma tática de “disciplinari- zação e imobilização da mão-de-obra”, através da qual o patrão subjuga o empregado por duplo vínculo – de trabalho e de moradia. O segmento social em foco no mencionado trabalho, majoritariamente de origem rural, é muito distinto daquele que encontramos nas vilas de Praia Brava e Mambucaba. Este, em que pese sua heterogeneidade interna, pode ser identificado como um misto de representantes das classes trabalhadoras e das camadas médias urbanas brasileiras. A natureza do patronato (no caso de Furnas, o Estado), além de muitas outras discrepâncias sociológicas, dentre as quais vale citar as prerrogativas a que o funcionalismo público tem direito, impedem com- parações amplas entre os entrevistados e os outros trabalhadores. Mas há duas semelhanças bastante significativas, que abrangem também segmentos estudados por Ramalho na Fábrica Nacional de Motores (1989) e por Mo- rel (1989) e Lask (1991) na Companhia Siderúrgica Nacional, cujos perfis aproximam-se mais consistentemente da caracterização dos moradores de

Praia Brava e Mambucaba, tanto devido às histórias dos projetos quanto pela composição social.

A primeira semelhança diz respeito à existência de uma “homologia” entre a disposição das casas da vila e a hierarquia entre os empregados no interior da fábrica. Essa observação é válida tanto para o caso das vilas de trabalhadores de uma usina canavieira nordestina (LOPES, 1976, p. 176), quanto para as da Companhia de Tecelagem Paulista (LOPES, 1988) e também para as vilas de Furnas. O segundo ponto de contato entre estas vilas ligadas a tipos muito diferentes de empresas é a uniformização que paradoxalmente convive com a ênfase dada na distinção hierarquizada, que faz com que a distribuição das casas, mesmo expressando as diferenciações internas entre os empregados, inicialmente provoque uma impressão de uniformidade entre elas:

O aspecto uniforme, marcialmente branco das casas dos arruados que já aparece na foto de vista parcial da vila operária de Paulista, publicada no censo de 1920, contrasta com a policromia das casas enfileiradas dos dias de hoje. Essa alva onipresença da companhia no aspecto exterior mais visível das casas da vila operária como que ilustra, pela disposição espacial e pela uniformização, a inspiração militar e penitenciária das disciplinas sugeridas por Foucault e corporificadas nas vilas operárias de fábricas e das cidades mineiras (LOPES, 1988, p. 121).

É, portanto, interessante notar a recorrência dessas características das vilas que são faces de uma só questão, isto é, materialização espacial das dife- renças e das igualdades entre seus moradores, já que as casas são criadas e mantidas no âmbito do trabalho. Uma observação mais detida de Mambucaba e Praia Brava logo denuncia a existência de uma hierarquia aglutinando as pessoas. O grau de liberdade que gera a possibilidade de opção de habi- tarem ou não as vilas é relativo, apesar de esta opção ser comentada pelos entrevistados como algo racional e bem pensado. Para esses residentes, morar significa assumir o emprego e são muitos os entrevistados que esta- vam desempregados na época em que foram admitidos, o que faz com que a independência necessária para que dispensem o trabalho oferecido seja diminuta. Novamente o estudo de Morel sobre a construção da CSN e da cidade de Volta Redonda ilustra a generalidade do contexto encontrado em Praia Brava:

O planejamento da cidade, seguindo critérios simultaneamente homogeneiza- dores e hierarquizadores, contribuiria para a internalização da hierarquia da empresa por parte de seus habitantes, segregados segundo a ocupação, sexo e estado civil. O traçado da cidade se articulava a um projeto mais amplo de formar trabalhadores, o que implicava em procurar gerir suas vidas dento e fora da fábrica (MOREL, 1989, p. 69).

A casa, cujo aluguel era descontado em folha – a preços abaixo do mercado –, era um elemento fundamental para a consolidação da “família siderúrgi-

ca”, pois colocava o trabalhador e seus familiares sob total dependência da Companhia (MOREL, 1989, p. 129).

A prática da habitação gratuita ou ainda negociada via relação com o patrão/ proprietário, por meio de descontos no salário, tem como contrapartida a falta de mobilidade do trabalhador que, ao ocupar uma das casas de uma vila pertencente a algum tipo de indústria, se compromete com o tipo de serviço a ele imposto. A saída do emprego significa ter de desocupar a casa. Numa entrevista, afirmou-se que a maioria dos moradores das vilas de Furnas estava ali obrigada, por causa do emprego, embora isto soe contraditório com a maneira sistemática de explicar a decisão de ali morar, enumerando- se as vantagens que superariam as desvantagens,11 como se o entrevistado,

aplicando um cálculo do tipo “custo/benefício”, tivesse obtido uma resposta inquestionavelmente favorável para ali permanecer. Residir nas vilas abre espaço para uma constante influência da esfera de trabalho sobre a domés- tica, o que, numa sociedade capitalista e individualista, é visto como uma invasão de domínios, aos moldes da servidão que historicamente antecedeu o trabalho assalariado. Essa influência é explicitamente justificada pelos próprios empregados, quando o trabalho exige o cumprimento de horários noturnos, como acontece na usina Angra I. Este tipo de argumentação tam- bém foi encontrado por Ramalho entre os trabalhadores da antiga Fábrica Nacional de Motores:

Um funcionário graduado da fábrica, reproduzindo sua visão oficial sobre os critérios para a moradia, dizia que “o principal era que o homem podia ser solicitado a qualquer hora para trabalhar” (RAMALHO, 1989, p. 102).

O que vem sendo dito aponta para uma constatação em consonância com a opinião dos próprios entrevistados de Praia Brava e Mambucaba, que insis- tiam no fato de constituírem um grupo igual a qualquer outro, de qualquer vila residencial, sem nenhuma especificidade. Nesse capítulo, o que deverá estar claro é que existem inúmeras características de Praia Brava que a tornam realmente uma vila como tantas outras, com seus problemas cotidia- nos e as vantagens que pode oferecer aos moradores. Fruto de concepções amplamente difundidas sobre tática de dominação da força de trabalho, torna-se, em alguma medida, comparável a vilas inclusive de composição social bastante distinta, já que nelas, há, inevitavelmente, uma superposi- ção dos ambientes de trabalho e de moradia. É importante fazer a ressalva, entretanto, de que minha abordagem sobre o cotidiano das vilas não tem o mesmo enfoque dos trabalhos citados anteriormente, já que não trato aqui das relações estruturalmente estabelecidas entre patrões e empregados; mas certamente sua referência é imprescindível para a compreensão dos alicerces que embasam a concepção e criação das vilas. Meu objetivo é delinear como

11 Alguns funcionários recém-contratados para integrarem o quadro de trabalhadores de

Angra II têm escolhido manter seu domicílio no Rio, alegando que preferiam viajar sempre a deixar que os problemas do trabalho invadissem a casa.

os entrevistados percebem seu próprio local de moradia, e em que medida as noções de hierarquia e segurança são importantes para o entendimento de como o grupo se organiza. Em outras palavras, pretendo evidenciar o que faz dessas vilas, vilas como quaisquer outras, conforme gostam de comen- tar os entrevistados. Neste sentido, o diretor do Departamento Nuclear de Furnas, reiterou, na carta já mencionada, sua convicção de que nada havia de especial ou extraordinário em Praia Brava:

Achei o trabalho um pouco superficial, pois grande parte dos pontos apontados são pontos absolutamente comuns a todas as vilas similares: militares, de outras usinas, hidráulicas e mesmo no exterior, onde Furnas tem projetos, tipo Capanda, em Angola. O tipo de relacionamento chefe/empregado é muito similar. Permito-me até sugerir que a professora Gláucia fizesse uma incur- são por outras vilas residenciais a fim de melhor avaliar a minha afirmativa.

Os mecanismos hierarquizadores e o modo de convívio, que pode ser de- nominado excessivo, desses vizinhos e trabalhadores da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto dispensam um exercício comparativo sistemático, para que se afirme que tudo que será aqui descrito só pode ser compreendido neste contexto; ao contrário, o que percebi aponta para um modo de socia- bilidade passível de ser adotado, com nuances, em outras vilas. Isso parece ter a explicação bastante óbvia de que há nelas algo que atua de forma muito poderosa sobre a sociabilidade, que é sua artificialidade, além de um relativo

isolamento da sociedade abrangente. Esse caráter de instituição total (GO-

FFMAN, 1974), observado por Lopes (1988) e também por Morel (1988), é o que uniformiza o convívio, criando assim certa semelhança entre estas diversas vilas. Entretanto, não deixa de ser curioso o fato de personagens tão importantes na implantação do Programa Nuclear Brasileiro, ligados à única usina termonuclear até então existente no país, não mostrarem em seu dia-a-dia essa condição diferencial de artífices civis do nuclear no Brasil.