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Fundada em 28 de fevereiro de 1957, Furnas, empresa de economia mista, subsidiária da Eletrobrás, recebeu do governo brasileiro, em 1969, a incum- bência de construir a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto. Atualmente, possui em funcionamento seis usinas hidrelétricas – Itumbiara, Furnas, Porto Colômbia, Funil, Peixoto (Mascarenhas de Morais) e Estreito (L. C. B. Carvalho) –, três termelétricas (Santa Cruz, São Gonçalo e Campos) e a nuclear (Angra I). O segmento de Furnas que se localiza em Itaorna é uma Superintendência subordinada à Diretoria Nuclear da empresa, que fica no Escritório Central, Rio, e o presente trabalho contatou apenas os funcionários lotados nessa seção. Quando me refiro a Furnas, estou, portanto, falando do que observei junto aos empregados dessa seção ou da imagem que têm de sua própria empresa.

Furnas, como é comum entre as estatais brasileiras, dá assistência a seus trabalhadores através de uma Fundação, a Real Grandeza, que se encarrega, sobretudo, de auxiliar o empregado nos gastos com atendimento médico e na complementação da aposentadoria, além de outros direitos assegurados constitucionalmente aos servidores públicos. Furnas tem uma boa imagem junto a seus funcionários e é a chance de segurança econômica e ascensão social, para muitos:

Furnas é a melhor coisa do mundo. Tem a Fundação Real Grandeza, que é muito boa. Eu sempre quis ter uma bicicleta, e só consegui ter depois que entrei para Furnas. Quando minha filha deslocou o braço, Furnas arranjou um carro e me trouxe em casa para eu ver minha filha (não-graduado de Furnas).

Furnas é descrita como sendo uma mãe, uma mãe provedora, porém exigen- te na cobrança da retribuição por aquilo que os entrevistados vêem como generosidade. Durante a construção da usina nuclear, um grande número de empreiteiras se vinculou a Furnas, que passou a ser a viga-mestra de toda uma estrutura funcional que envolve uma quantidade bem grande de pessoas. A

mãe exigente tem a ver com o prestígio de Furnas junto às empreiteiras, das

quais ela passa a ser uma cliente de peso e das quais ela pode exigir serviços de qualidade. Todos dizem que basta Furnas direcionar seus esforços para que algo aconteça devidamente. Por outro lado, é generosa porque sustenta toda essa engrenagem cujas peças fundamentais são as vilas e, naturalmente, a usina. Entretanto, esta situação vem mudando paralelamente às modificações que acontecem nacionalmente tanto no plano político como no da economia. Furnas vinha-se desincumbindo de certas tarefas ligadas à administração das vilas há alguns anos e, em 1994, foi criado, através do voto direto e secreto dos vilenses, um Conselho Comunitário, composto pelos moradores, que passará gradativamente a cuidar das vilas:

Reconheço que há paternalismo e que a independência é interessante para Furnas, mas para nós é uma perda. Não vamos conseguir nem a metade do que Furnas faz. Ela é a grande provedora, é absolutamente abrangente. Até as empreiteiras contratadas têm medo de perder Furnas. Ela é a mãe generosa, mas rigorosa também (esposa de graduado de Furnas).

Da mesma forma que comparam o modo de sociabilidade das vilas ao de uma grande família, também o fazem com relação a Furnas, sendo que a empresa assume um papel preponderante, eqüivalendo, na estrutura familiar, ao do

pai ou da mãe. Esperam, portanto, que ela atenda à necessidade daqueles

que seriam seus filhos, adotando procedimentos de proteção e benevolência para com eles. Os entrevistados referem-se ao processo de independência administrativa das vilas como um corte do cordão umbilical e se dividem com relação ao sucesso da mudança. Há os que pensam que isto deveria acontecer de qualquer maneira, pois não vêem motivos para não assumirem suas despesas. Outros temem uma decadência na qualidade de vida e acham que o Conselho não tem chances de manter o bom funcionamento das vilas. Existem ainda os que demonstram uma preocupação maior em prolongar os vínculos estabelecidos pelo mencionado cordão do que com o futuro:

As vilas já estão pagas e já serviram à sua finalidade. Furnas não é Sérgio Dourado, podia vender a casa a preço de custo para seus funcionários, tipo de pai para filho (não-graduado de Furnas).

Alguns autores, como Morel e Da Matta (DA MATTA et al., 1990), ressal- taram essa característica de as “estatais” serem consideradas “mães”, que integram numa só família seus empregados e respectivos parentes. Essa forma de representação ganha especial força com Getúlio Vargas:

Diversos autores já mostraram como a imagem de “família” é recorrente nos discursos oficiais durante o Estado Novo: o povo constituiria a família, protegida pelo presidente, o “pai dos pobres”, expressando a relação de tu- tela e os laços corporativos entre o Estado e a classe trabalhadora (MOREl, 1989, p. 78).

Para muitos, Furnas foi o primeiro emprego e quase todos os entrevistados ingressaram na empresa por concurso, embora esse não seja necessariamente um retrato fiel da proporção dos concursados no quadro geral dos trabalha- dores ligados à usina, porque, dentre estes, há os que foram incorporados sem concurso, como aconteceu com empregados antigos de empreiteiras, que passaram a pertencer ao corpo funcional de Furnas. Há mais ou menos 20 anos, os primeiros recrutados eram atraídos pela possibilidade de ascenderem profissional e economicamente e, no caso dos operadores, pela perspectiva de trabalharem com uma tecnologia de ponta. A atividade nuclear associada à usina, que na época começava no Brasil, era uma fonte de prestígio, mesmo aos olhos daqueles que não sabiam ao certo do que se tratava. Os primeiros profissionais a ingressarem nesta Superintendência de Furnas afirmam que a maioria deles não tinha noção do que fosse Programa Nuclear Brasileiro

ou uma usina nuclear. Lembram que não havia, na época, divulgação ou informação sobre o assunto, e o que seduzia era a quantidade de promessas existentes sobre a possibilidade de galgar posições e de fazer parte de um grupo privilegiado pelo acesso a uma tecnologia de Primeiro Mundo:

Não tinha a menor idéia. Sabia que era uma usina, mas nem sabia que existia Programa Nuclear. Eu tinha experiência de usina de açúcar em Campos e sabia que aqui tinha chance de ascender. Me disseram e era verdade, tanto que me adaptei bem aqui (não-graduado de empreiteira).

Estava desempregado com filha pequena, um parente me chamou e vim para trabalhar na obra, que era ótima oportunidade, que estavam precisando, e nunca mais saí. Não sabia nada do assunto, o que era uma usina nuclear, não tinha idéia (graduado de Furnas).

Era operador da usina de Santa Cruz. Me convidaram para vir e aceitei porque era uma oportunidade de lidar com uma tecnologia de ponta, de Primeiro Mundo (não-graduado de Furnas).

Os entrevistados freqüentemente se referem aos militares ou ao tempo dos

militares, dando a impressão de que, no passado, tanto as vilas quanto a usina

e Furnas eram por estes comandadas. Devido à importância que os militares sabidamente tiveram na implantação do Programa Nuclear, inicialmente não tive dúvidas sobre a militarização da Central, o que era coerente também com a influência marcadamente militarizante das histórias da implantação da CSN e da FNM. Várias entrevistas concorriam para isso: por exemplo, um operador lembrou que, há 20 anos, quando a turma pioneira estava-se formando profissionalmente para começar a trabalhar em Angra I, um gru- po de técnicos foi enviado para um curso no exterior subdividido em duas pequenas turmas, que viajaram em aviões separados. Tratava-se, segundo me disseram, de uma tática preventiva costumeira entre os militares: se algum desastre atingisse uma das aeronaves, haveria ainda outra, de modo que parte do investimento intelectual estaria salvo. Os militares também são responsabilizados pela aura de mistério que envolve os procedimentos internos à usina:

Vim de Minas procurando oportunidade. Me pegaram a laço quando passei por aqui. Fica, fica, você tem que ficar, aqui é bom. Fiquei e não me arrependi. No início foi difícil, porque não sabia nada. Aqui tinha muito militar, era tudo muito secreto e a gente vivia desinformado. Até ônibus a gente pegava errado (não-graduado de empreiteira).

A direção, entretanto, se preocupou em dar outra versão para a presença marcante que os militares tiveram, pelo menos na lembrança da maioria dos entrevistados. Um dos trechos da carta a que me referi anteriormente, assinada pelo Diretor da área nuclear, comenta o assunto:

Em vários trechos do trabalho há uma referência a militares gerenciando o processo. Isso trata-se de um jargão onde determinadas falhas passadas eram

atribuídas à ditadura e à época dos militares. Nunca houve na área nuclear de Furnas militares gerenciando qualquer coisa – à exceção de um Coronel reformado do Exército que era Chefe da Segurança, área hierarquicamente bastante subalterna às demais. Os gerentes do passado são exatamente os mesmos do presente, apenas promovidos a funções superiores, como é o meu caso, por exemplo, e o do atual superintendente.

Quando a usina entrou em operação, Furnas aproveitou a mão-de-obra da Usina de Santa Cruz, que também é termelétrica e utiliza óleo como com- bustível. Eram técnicos de nível médio que tinham feito o CBOUT (Curso Básico de Operação de Usina Termelétrica) e que, para atuarem na área nuclear, tiveram que fazer um outro curso, o NPPT – Nuclear Power Pre- paratory Trainning, ministrado no Centro de Treinamento de Mambucaba, com duração de dois anos. Ele incluía um estágio de seis meses nos Estados Unidos, onde os técnicos aprenderam o funcionamento deste tipo de reator num simulador, e tiveram aulas de várias disciplinas, como Física, Física Nuclear, Química, Matemática etc. Em maio de 1974, foram formadas as duas turmas mencionadas acima, com 13 pessoas cada, que são a memória viva da usina. Como essas pessoas acompanharam a construção de Angra desde o início, puderam acumular uma vivência muito grande de todas as atividades que ocorreram na usina; além de uma boa formação, têm uma visão global de seu funcionamento, adquirida na prática. Em 1991/1992, este contingente foi aposentado compulsoriamente devido à reforma adminis- trativa implantada pelo Governo Collor. Porém, estes profissionais tiveram de ser readmitidos para que o conhecimento que eles puderam acumular ao longo do tempo não fosse dissipado. Passaram então a ocupar posições importantes para a formação de novos quadros, tanto nas equipes de plane- jamento, quanto como professores do Centro de Treinamento.

É comum se ouvir dizer que Furnas é uma instituição muito política. Isto significa que acreditam que o meio mais eficaz e explorado para se conse- guir as coisas é o conhecimento, ou seja, a amizade com a pessoa certa, a troca de favores e agradar os chefes. Assim, conseguir uma determinada casa em uma das vilas depende também desse conhecimento, além dos critérios comumente enumerados como número de filhos, nível de instru- ção, antigüidade e posição que ocupa na usina. Segundo os entrevistados, há muitos chefes; os engenheiros ocupam a maioria dos postos de chefia e é difícil encontrar alguém que se refira a um deles só pelo nome, sem mencionar o título profissional (engenheiro), que passa a valer como um distintivo hierárquico. A cerimônia no tratamento dos que estão acima na escala funcional é um aspecto da “etiqueta”, entendida como um conjunto

de regras de convivência (Elias,1987), cujo seguimento traduz a aceitação dos papéis desempenhado8 por cada ator.

No âmbito do trabalho, os funcionários comentam que até há poucos anos havia um clima de humilhação entre chefes e subordinados. Explicam isto pelo fato de os coronéis das estatais – isto é, os militares que ocupavam altos postos funcionais nas empresas estatais – terem imbuído os chefes ci-

vis de seu militarismo, que consiste na adesão acrítica à hierarquia. Vários

entrevistados se referiram à existência de uma cultura militar na empresa e o esforço atual é no sentido de modificar esta maneira de trabalhar. Os

militares saíram do papel que tinham no cenário nacional e, portanto, das

empresas, e os engenheiros que ocupam as posições de chefia são os res- ponsáveis pela reprodução – ou mudança – do estilo. Alguns empregados se referiram à engenheirada como um obstáculo ao bom desenvolvimento do trabalho, acusando os diplomados de serem bem relacionados mas não terem o conhecimento necessário sobre o cotidiano da usina. Em contra- partida, alguns engenheiros usam sua posição de chefia para humanizar e dinamizar as relações entre funcionários, e demonstram preocupação com a qualidade dos serviços internos à usina. Cada modalidade funcional tem suas características, mas a relação chefe/subordinado parece ser problemática em todas as divisões da superintendência.9

Um técnico comentou que antigamente toda atitude de um funcionário deveria estar em concordância estrita com o conjunto de procedimentos estabelecidos para o funcionamento da usina. Ocorria que, em determinadas situações específicas, a conformidade ao procedimento não era o mais sensato a ser feito e o profissional se via optando pela obediência em detrimento do bom senso, para não se aborrecer. Hoje, segundo os entrevistados, há maior flexibilidade na ação e, conseqüentemente, maior responsabilidade individual pelas tarefas. Contudo, a rigidez no cumprimento dos procedimentos não atingia a todos os trabalhadores igualmente. Havia a prática de certos chefes, no intuito de ver seu trabalho reconhecido, expor o subordinado a situações até perigosas, atribuindo-lhe tarefas para as quais não estava qualificado. Com a organização dos funcionários em sindicatos e comissões trabalhistas

8 A primeira vez em que ouvi falarem do engenheiro fulano, achei que, dado o tom coloquial

da conversa na qual seu nome era citado, o prefixo era para se diferenciar a pessoa de que se falava de outra homônima, mas que não ocupava a mesma função. Mas a repetição do termo engenheiro deixou evidente que se tratava de uma maneira cerimoniosa de se referir àquela pessoa. Em outra ocasião, uma entrevistada disse, sob o olhar reprovador do marido, que não ligava para hierarquia, que não chamava o engenheiro fulano de engenheiro e sim de fulano. Porém, o orgulho que ela demonstrou ter pelo fato acabou desmentindo a premissa de que ela não partilhava dos valores hierarquizantes daquela comunidade. Estes estão tão presentes que até mesmo negá-los é uma forma de reconhecer sua força.

9 Alguns funcionários que têm acesso à Área Controlada, local onde há risco de

contaminação, constantemente afirmaram que o que dá pique cardíaco nos empregados não é a lida com a radiatividade, mas a relação com os chefes.

e, atualmente, com a preocupação da chefia geral da usina em desestimular este tipo de hábito, o dia-a-dia da usina, segundo afirmam nas entrevistas, vem-se alterando.

Dois casos que me foram narrados ilustram o que foi descrito acima. Primei- ro, o de um empregado que se recusou a fazer um serviço a ele destinado por seu chefe imediato, alegando que não tinha meios nem conhecimento suficientes para fazê-lo. Como seu imediato tivesse insistido para que ele fizesse a tarefa, o empregado escreveu seus motivos numa carta, que enviou ao chefe de seu chefe. A direção soube do ocorrido e elogiou publicamente a atitude do trabalhador; coerentemente com esta maneira de trabalhar, vi placas espalhadas pela usina lembrando aos empregados que não se deve fazer nenhuma tarefa sem consciência do que está sendo realizado. Outro caso é o do trabalhador que percebeu que sozinho não poderia fazer deter- minado conserto; quando comunicou o fato ao chefe, este respondeu: “dá seu jeito”. O funcionário pediu ao chefe que escrevesse e assinasse o que tinha dito; como ele se recusou, o próprio empregado escreveu o ocorrido e pediu a um colega de trabalho que assistira a tudo que assinasse como testemunha. Mais uma vez a diretoria apoiou o empregado.

Um entrevistado afirmou que existe um recalque dos técnicos antigos, por- que vêem recém-formados, que nada sabem, chegarem dando ordens, em posição de chefia. Acrescentou que podia ter terminado a faculdade, mas viu que a graduação não ia fazer diferença alguma no seu salário. O cargo máximo de um técnico é o de encarregado, e o de um diplomado é chefe ou

supervisor. Para alcançar estas posições, um engenheiro deve ter de quatro

a cinco anos de empresa, e o técnico deve ter muito mais de 10 anos de operação. Porém, a carreira de técnico de operação vai até o nível funcional 57, enquanto o engenheiro já começa no nível 53. Esta distância é o motivo para o mencionado recalque. Alguns afirmam que há uma pressão do grupo para que as pessoas não ascendam e um deles esclareceu: “ninguém gosta de

ver um colega virar chefe e ter que obedecê-lo”. Mas, quando isto acontece,

a regra é esquecer que é colega e tratá-lo como chefe. A justificativa para um

chefe ganhar mais é a de que a ele cabe maior responsabilidade; isto quer

dizer que, pelo menos em tese, se algo der errado, a chefia deve responder pelo erro e, se houver uma situação de perigo, é o chefe quem deve tomar a atitude adequada, mesmo que isto signifique assumir para si o risco – seja de exposição à radiatividade, seja de contaminação etc. Essa fórmula pressupõe que apenas o chefe tenha uma existência própria, enquanto os

subordinados são repetidores. Isto se complica ao imaginarmos que todos

os chefes são subordinados a outros chefes.

Os subordinados ficavam tão nas mãos de seus chefes, inclusive na pos- sibilidade de ascensão, que a subserviência passou a ser uma instituição, cultivada por algumas pessoas. Alguns entrevistados se divertiram contando casos que denominaram de puxa-saquismo. Entre estes, um dos mais tradi-

cionais é ouvir o que o chefe está dizendo para repetir depois bem alto, com o ar de distraído, quando o chefe estiver passando por perto. No entanto, a forma de puxa-saquismo que mais revolta os que não compartilham esta maneira de conseguir as coisas é dar um passe para o chefe marcar o gol, que já estava praticamente feito, durante uma partida de futebol. A direção da usina afirma estar revisando os aspectos das relações de trabalho que comprometem a qualidade do serviço e favorecem a subserviência como prática. Por exemplo, a avaliação dos empregados normalmente feita pelos

chefes, e cujo objetivo é a progressão funcional do avaliado, não é mais

secreta, o que diminui o peso da subjetividade do processo. É uma tentati- va de restringir o poder dos chefes, que ficavam resguardados de terem de se indispor com seus subordinados, mas ao mesmo tempo dispunham da possibilidade de prejudicá-los.

Não é raro as pessoas entrevistadas chamarem Praia Brava e Mambucaba de vila militar ou quartel. Isto, em parte, reflete a própria origem militar do Programa Nuclear, a concepção e a primeira administração das vilas, cuja segurança ficou muito tempo sob a responsabilidade de um militar, que soube imprimir, durante sua gerência, um estilo próprio, calcado no padrão da caserna, e que até hoje, quase dez anos depois de ter deixado sua posição, ainda é muito lembrado nas entrevistas. No trecho abaixo, o entrevistado é claro na comparação de um dos aspectos da hierarquia – a passagem de um nível a outro – comum à caserna e empresas:

Galgar posições. Era essa a promessa de chefes na época. Hoje sou encar- regado e quem não é engenheiro pode chegar até chefe de divisão. Eu servi quartel. Aqui é como se fosse um quartel. Se você entra soldado, nunca chega a oficial. (...) Por exemplo, se eu fizesse curso para engenheiro, isto poderia não adiantar. Só adiantaria se, se [enfático] a empresa quiser me aproveitar como engenheiro. Se ela precisar de mim como mecânico, não vai adiantar eu ser engenheiro (não-graduado de Furnas).

Entretanto, isto não é exclusividade dessas vilas de Furnas. O projeto da Fábrica Nacional de Motores, concebido durante a Segunda Grande Guerra e tendo por principal idealizador um brigadeiro, tem muitas semelhanças com o processo inicial da construção e implantação da usina e suas vilas. A FNM, fábrica criada para ser uma cidade dos motores, situada longe da cidade do Rio, e que mantinha seus funcionários morando em alojamentos próximos dela, foi igualmente comparada a um quartel por um pesquisador (SALLES apud RAMALHO, 1989). Embora isto evidencie que também aos funcionários da FNM os militares impuseram a hierarquia a que estavam acostumados (RAMALHO, 1989), afirmar que este padrão hierárquico é exclusivamente um produto do legado militar pode significar um menos- prezo para com aspectos culturais brasileiros, responsáveis por semelhantes tipos de hierarquização nas relações sociais em geral e não só de trabalho. Entretanto, a hierarquia que está em questão para os entrevistados é de um

tipo específico, pressupondo poder e subordinação e perpassando os espaços domésticos e de trabalho. A explanação sobre outras formas de hierarquia, magistralmente trabalhadas por Dummont (1966 e 1977), e que podem ser explicativas da “cultura brasileira” como um todo (DA MATTA, 1980), estão fora dos propósitos do presente trabalho, que somente deve reconhecer a existência de fatores hierarquizantes externos às empresas, e de natureza diversa daqueles característicos de hierarquia militar (LEINER, 1995).