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Iniciei este trabalho pela análise de pesquisas realizadas junto a universitários e docentes negros que, evocando antigas lembranças de sua formação escolar e, posteriormente, de sua atuação como professores, apontavam para uma experiência comum: o não reconhecimento da universidade como espaço seu. Pela dificuldade em conciliar estudo e trabalho, quando ainda se é aluno, e o desafio necessário para se manter na universidade e fazer frente aos gastos. Também pela experiência de isolamento, na medida em que poucos são os negros que têm chegado à academia. Quando professores, esses profissionais também se deparam com a falta de parcerias e com a oposição de alunos que, muitas vezes, não os reconhecem como detentores de um saber. Mesmo que enfrentando toda sorte de obstáculos, alunos e professores negros reconhecem na educação um valor diretamente vinculado à condição de liberdade e autonomia.

O olhar para o passado dos primeiros movimentos de grupos negros nos revela que a luta por direito à educação é antiga e pode ser marcada por dois grandes momentos da história desses movimentos. O primeiro deles, iniciado ainda no período de escravidão, representou a luta pelo igual direito de acesso ao ensino escolar, vetada pelo Estado brasileiro aos escravizados e seus descendentes. O segundo marcou a luta por garantir a alunos negros as condições de ingresso na vida universitária, até há pouco tempo reservada às elites no Brasil. Essa luta, invisível na mídia, quando não concretamente proibida pelo Estado brasileiro e suas instituições, não se dobrou às.diferentes formas de silenciamento. O movimento negro manteve sua resistência, nutrindo-se das experiências de seus intelectuais militantes, como Abdias do Nascimento e muitos outros que enfatizaram que o direito à educação não deveria ser apenas ter acesso à escolarização, mas também aos bens culturais e ao reconhecimento do protagonismo na cultura de forma mais ampla. Não apenas conquistá-la como direito inquestionável, mas garanti-la, em sua legitimidade, às futuras gerações, o que não apenas reverteria em benefício dos grupo negros, mas

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promoveria “um melhoramento do quadro global de nossa sociedade” (Junqueira, 2007,p.23).

O resultado dessa luta contínua, a implantação das ações afirmativas e a promulgação da lei 10639/03, trouxe visibilidade às relações raciais, aos processos de discriminação e exclusão vividos no país, e deu maior atenção às condições de ingresso de negros na universidade brasileira, instituição de perfil eurocêntrico e elitizante. O acesso dos negros à universidade, contudo, não encerra esse processo de luta, na medida em que “não é apenas o entrar na universidade”, como lembra APS. Esse acesso envolve outros aspectos que garantem a fixação dos alunos aos cursos, como, por exemplo, a questão da moradia estudantil, que mobilizou alunos e professores da Universidade Federal do Maranhão, conforme o conteúdo veiculado pelas redes sociais ao final de 2013.

Passei a questionar-me se o ingresso de maior número de alunos negros nas universidades e o maior acesso de professores negros na docência universitária provocaria não apenas mudanças nas relações interraciais na academia e um novo olhar sobre questões raciais na sociedade de modo geral, como também uma nova reflexão sobre o conhecimento produzido no interior dessa instituição.

A preocupação inicial foi de identificar e analisar os trabalhos realizados junto a alunos universitários negros, e as referências por eles feitas às experiências vividas no espaço acadêmico, bem como a presença ou não de docentes negros como figuras exemplares para a vida acadêmica desses alunos. Frente aos depoimentos obtidos, pouco a pouco também foi se evidenciando que os conteúdos disciplinares, calcados em uma tradição eurocêntrica e cristã, muitas vezes impediam que alunos negros vissem legitimadas sua presença, sua história e seu saber no espaço acadêmico. A universidade brasileira acolhe, integra e valoriza efetivamente as múltiplas identidades que constituem o povo brasileiro, suas experiências, histórias e culturas, ou as submete a um mesmo saber considerado universal e inquestionável, o saber eurocêntrico? Não seria o momento de se questionar uma prática pedagógica que vem sustentando o seu saber sobre o referencial do homem branco, eurodescendente, masculino, adulto e cristão? Se as práticas raciais da sociedade brasileira, disfarçadas sob o engodo da democracia racial, estão presentes em

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todas as suas instituições, inclusive a universidade, o discurso e conteúdos aí veiculados não serão legitimadores da discriminação? Não deveriam também estar sob a mira de pesquisadores envolvidos com um projeto de transformação da sociedade brasileira?

Desta maneira, cabe indagar: “Não estaria a universidade brasileira alheia às questões etnicorraciais, racionalizando e teorizando sobre o aluno negro, sem estar efetivamente aberta à percepção de que se mantém elitista, branca e alheia à complexidade de condições que vinculam ou não o aluno a ela? Qual o papel do professor universitário negro neste contexto?”Não estaríamos hoje iniciando um terceiro momento de lutas e conquistas, em que o protagonismo está colocado, preferencialmente, mas não só, na mão de professores universitários negros, que, com seu olhar crítico sobre conteúdos e currículos, estimulariam um repensar sobre o saber eurocêntrico de nossas universidades, favorecendo aos alunos de diferentes trajetórias, dentre eles alunos negros, a possibilidade de desconstrução e reconstrução desses saberes, tornando-se, efetivamente, protagonistas de sua formação?” Estas questões direcionaram meu olhar para os trabalhos sobre docentes negros desenvolvidos nos últimos anos em programas de pós-graduação de diferentes universidades do país e para diferentes pesquisas por eles desenvolvidas.

Os dados revelam que vivemos um momento em que o professor negro, consciente de seu papel no interior da universidade, pode representar para seus alunos um referencial, uma personalidade paradigmática, na medida em que, enfrentando toda sorte de obstáculos, galgou sua condição, ocupou o espaço da docência e está particularmente sensível aos grandes obstáculos enfrentados por seus alunos. O olhar militante de professores negros serve de referência e apoio a esses alunos, que também acabam por contar com redes de solidariedade e de ajuda mútua entre alunos, que se articulam e garantem retaguarda (vide ANEXO 3) para a continuidade da vida acadêmica. Muitos desses universitários não contam com recursos para ter acesso à moradia, alimentação e saúde, como também ao material escolar, textos de pesquisa e mesmo a mínimas condições de estudo. Muitos deles são os primeiros da família a ingressar em cursos superiores, como testemunham nossos três entrevistados. Em grande parte dos casos, contam com a

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colaboração de familiares e amigos que veem no seu ingresso, a possibilidade de um futuro melhor para esses alunos.

A presença de docentes negros imbuídos de uma ética antirracismo representa, assim, não apenas a garantia de que alunos negros ingressantes das universidades aí encontrem figuras paradigmáticas, mas interlocutores e parceiros que valorizam o longo percurso trilhado para que lá estejam. “Sei o que foi difícil para a família dela e também

para ela chegar até lá...” A frase de I.C.N. soma-se aos depoimentos de nossos outros

entrevistados, que testemunham essa identificação de professores com a história de vida e de buscas de seus alunos. A.P.S. nos relata, “comecei a pensar, me questionar de qual era o

meu papel ali, sendo uma mulher negra, com uma trajetória muito parecida com a daqueles meninos. Passei a interpretar que a minha presença ali aparecia para eles como uma possibilidade real e assustadora. Então é verdade que você tem que estudar que você chega lá, então seria verdade isso?”. Neste sentido, confirma-se a reflexão de Carneiro

(2005) de que pessoas negras que alcançam excelência em qualquer área de conhecimento encarnam esse paradoxo: as suas vidas e as suas histórias expressam a resistência aos estigmas que distanciam os negros da vida intelectual e acadêmica (p.117). “É possível

chegar lá”!!!!

Não estariam também esses docentes especialmente sensibilizados a identificar o conteúdo racista e estigmatizante presente no conteúdo das diferentes disciplinas, preparados para conduzir e desenvolver trabalhos que se somem à produção de conhecimento sobre a população negra brasileira, a ela dando maior visibilidade, e promovendo o debate sobre relações raciais no interior da academia? São estes professores que podem repensar o conhecimento hegemônico e homogeneizante que vem sendo veiculado pela universidade, emprestando seu olhar negro a uma nova interpretação de nossa realidade64. Entretanto, esse espaço alcançado é muitas vezes questionado dentro da

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Said considera que a universidade ocidental pode ser um espaço em que intelectuais acadêmicos desenvolvam uma reflexão, pesquisa e revisão de conhecimentos, ainda que “sob novos constrangimentos e pressões”(p.86) , e cita o exemplo de Eric Hobsbawn, que, tendo desenvolvido todo o seu trabalho no interior da academia, remodelou o pensamento quanto à escrita da História (p.78).

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universidade por outros docentes, como também por alunos que não reconhecem o professor em seu saber. C.B.R.S relata:

“Muitas vezes encontrei situações de alunos não entrarem em sala de aula por não reconhecerem que eu era professor, mas nessas ocasiões eu aproveitava para trabalhar com os alunos essas questões. Isso aconteceu muitas vezes. Uma vez, um aluno que acompanhara meu curso disse para mim que nunca imaginou que “uma pessoa assim” teria condição de ensinar alguma coisa. Falou desse jeito: “uma pessoa assim”. Em todas essas situações eu aproveitava para refletir com os alunos sobre esses fatos”.

A.P.S. relembra :

“a primeira reação dos alunos e, particularmente, dos alunos negros, era uma reação de muita agressividade comigo. Sempre foi. E aquela coisa mesmo de desqualificar você ali na frente “quem é você que está dizendo isso aí pra gente? “quem é você que está dizendo que a sua experiência é boa?”

A estranheza sobre a legitimidade da presença negra na universidade, seja como aluno ou docente, é a confirmação do racismo tão impregnado na cultura brasileira, que naturaliza com tranqüilidade os obstáculos interpostos a essa presença. Neste sentido, mesmo aqueles professores negros que optam por abdicar de uma postura militante, acabam por se transformar em figuras paradigmáticas pela própria presença, confirmando Said (2005) que diz

no fim das contas, o que interessa é o intelectual enquanto figura representativa – alguém que visivelmente representa um certo ponto de vista, e alguém que articula representações a um público, apesar de todo tipo de barreiras (p.27).

A universidade é hoje um espaço conquistado, mas um espaço ainda a ser ocupado plenamente. Um espaço em que também o negro tome a palavra e construa saber, enfrentando os grandes obstáculos interpostos, já que, como afirma CBRS “a gente traz

uma experiência de vida que faz com que superemos, possamos romper algumas barreiras...”

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Nesta condição, o docente negro assume seu pertencimento ao espaço acadêmico, repensando-o e o recria no fazer educativo e na construção de uma universidade interracial e intercultural. O que se vislumbra é o projeto de construção de novos saberes junto a seus pares, através do diálogo, em um plano horizontal, simétrico e transformador, não apenas desses saberes, mas dos próprios sujeitos envolvidos em sua construção, sejam eles negros ou não. Esse diálogo horizontal entre saberes que se reconhecem em igual valor pode ser a base para a consideração de Said (2003), “a paz não poderá existir sem a igualdade: este é um valor intelectual que necessita desesperadamente de reforço e reiteração” ( p.32).

Nesse sentido, os trabalhos de Gusmão dialogam com os de Boaventura Santos, na medida em que a autora enfatiza a necessidade de uma educação que se faça no encontro horizontal e intercultural de diferentes fazeres e saberes, e Boaventura Santos sublinha o caráter epistemológico da necessária mudança que deve se dar na universidade de hoje.

Se este é um processo em gestação na universidade brasileira, a presença da ABPN, Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, incentivando a produção de pesquisas em diferentes áreas, oferece paradigmas para essa revisão dos saberes, dando visibilidade aos trabalhos inovadores de jovens docentes negros, que começam a se inserir em universidades públicas de diferentes regiões do país. Ao mesmo tempo, não se deve deixar de sublinhar a importância de ONGs e NEABs que participam também desse esforço de reflexão e desconstrução do saber institucionalizado65, preparando educadores e professores de todos os níveis de ensino para uma prática docente comprometida com uma visão crítica da sociedade brasileira.

Talvez estejamos assistindo ao início de uma “revolução simbólica”, nas palavras de Certeau (1994), que coloque em xeque relações sociais e históricas e que mobilize nossa concepção e a “estrutura” de nossa cultura (p.33). Cabe aqui a indagação feita pelo próprio Certeau,

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Não devemos esquecer da importância das casas de cultura, apesar de não terem sido alvo de análise neste trabalho.

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comment peut se reconnaître la nouveauté d´une expérience qui est la chance et peut-être le signe précurseur – mais non pas encore la realité – d´une révolution culturelle?66 (1994,p.48)

Refletir sobre a realidade brasileira a partir de um olhar que nega a opressão, a discriminação e a conformação aos padrões hegemônicos do conhecimento, dessacraliza o conhecimento como saber universal, e prepara as condições necessárias para o diálogo hermenêutico, de modo a que a universidade possa ser “um ponto privilegiado de encontro entre saberes” (Santos, B.S.,2008, p.224), parece ser o grande movimento de resistência e luta empreendido pelos professores negros na universidade brasileira hoje, em que “a experiência é o tomar a palavra” (Certeau, 1994, p.44). Para tanto, como nos lembra Oliveira (R.C.,2006), há de se “transcender o discurso hegemônico, basicamente eurocêntrico, comprometedor da dimensão ética de um discurso argumentativo” (p.194). Ao mesmo tempo, deve-se ter em mente as tramas de poder que em uma sociedade sustentam o discurso hegemônico – e que por ele são alimentadas-, lembrando que a universidade brasileira tem sido o espaço privilegiado das elites, e, como dizia Freire (1995), não se tem conhecimento do suicídio de classes dominantes...

Existe um longo trabalho pela frente...

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Tradução livre: “como se pode reconhecer a novidade de uma experiência que é a oportunidade e, possivelmente, o signo precursor, mas não ainda a realidade, de uma revolução cultural?”

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BIBLIOGRAFIA:

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