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A cena do encontro final na casa transcorre cinematograficamente pela câmera- olho de Eulálio. Ângela vai para o banheiro de Félix se lavar, mostra estranhas marcas nas costas, seios e barriga – as cicatrizes da tortura que sofreu logo ao nascer –. Félix sonha na cama. A campainha toca. Félix e Ângela ficam atordoados, já é quatro e vinte da manhã, de acordo com seus olhos precisos para as luzes do céu. Pancadas soam pela casa enquanto uma voz chama Félix. É Edmundo Barata dos Reis, que, como um furacão, entra apavorado na casa, alegando que alguém o persegue, que o querem matar. Félix, vai a cozinha para ver se um chá o acalma. Ângela Lúcia chega a cozinha procurando saber o que sucede. A campainha volta a tocar. O homem que entra enfurecido é José Buchmann. Armado, ignora Félix, e corre à cozinha, onde a moça barra a entrada com os braços abertos. Na cozinha, Edmundo, emite grunhidos de aflição, “a camiseta brilha, vermelha, sobre o peito magro. O gume da foice o oiro do martelo, cintilam, um instante. Depois escurecem” (AGUALUSA, 2004, p. 175)

Num instante, Buchmann vence a barreira e começa a espancar Edmundo, que revela a verdade sangrenta: Buchmann, na verdade se chama Pedro Gouveia, era um contra-revolucionário que foi preso por ele nos anos 1970. Edmundo confessa que torturou a sua esposa enquanto ela estava em trabalho de parto. Buchmann, ou Gouveia, chora, enquanto Félix tenta expulsar o homem. Neste momento a narrativa descarrilha de suas linhas prosaicas:

Então, como

num

bailado lento: Ângela atravessa a cozinha,

passa rente à mesa,

com a mão direita recolhe a pistola, com a mão esquerda afasta Félix, aponta ao peito de Edmundo

e dispara. (AGUALUSA 2004, p. 178)

O tiro que perfura a página é a quebra da narrativa, e seu anticlímax. Ambos são partícipes de uma problematização da separação entre poema e narrativa, pois tanto se afirma como “[...]exercício de possibilidades, de formas, no qual se coloca em primeiro plano a concretude da palavra” (BRANDÃO, 2013. p. 210), quanto exercício de referenciar a narrativa. A imbricação entre tais referências da narrativa nos guiou para o desafio de analisar como o espaço é afetado por esse deslizamento. Abraçando a provocação de analisar um romance que já foi objeto de vários estudos, procuramos traçar um olhar singular na análise das figurações espaciais do romance.

Para isso, nos servimos de contribuições basilares para o estudo do espaço na literatura, como Brandão (2013), que promoveu a oportunidade de pensar o espaço e o espaço literário que podem tanto dar forma quanto desmanchar a si mesmos pela palavra, pois “a voz torna rítmico o silêncio. Recursivamente, a fala diz do que não é fala. É esta a operação da literatura. Eis o espaço literário.” (BRANDÃO, 2013, p. 108). Nesta abertura, verificamos que entre matéria e percepção existe uma linguagem, e é sobre esse diálogo que a configuração dos espaços do romance irá tratar.

Na casa vive-se a reclusão, mas não o isolamento, vive-se o trânsito, não o desconhecimento do outro. Deixam-se marcas na casa, no entanto, é por meio dessa “sabedoria da partida, do desterro, da distância e do choque cultural, que pode enriquecer e complicar o saber sobre a margem social e as transgressões” (CANCLINI, 2008, p. 327). Como arte que amplia a experiência no seu ofício imaginativo, logo vivido, a potência de interioridade dos espaços se coaduna para depois disjungir, não sem carregar a memória de outras vivências que “nos surpreendem com sua verdade, que nos comovem e nos sustentam, que abalam o edifício do hábito até os alicerces” (WOOD, 2011, p. 208) dos sentidos fazendo compreender algo da experiência do outro e do que não é entendível, mas sentida (COMPAGNON, 2009).

Consequentemente, a fenomenologia bachelardiana foi fulcral para compreender a relação como lugar central do romance, a casa, que possui uma grande simbologia: como o útero do devaneio da imobilidade, a relação tensiva entre interior e exterior e a associação ao barco, ou seja, conceitos que realçam a sua condição heterotópica. Porém,

a narrativa é uma tapeçaria em que os seus fios entrelaçam entre si e refletem outros espaços (LINS, 1976), que:

[...] constituem uma ilustração das suas possibilidades, reforçam, simultaneamente, a importância que pode ter na ficção esse elemento estrutural e indicam as proporções que eventualmente alcança o fator espacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns casos, o móvel, o fulcro, a fonte da ação. (LINS, 1976, p. 65)

Para avançar no presente estudo, nos guiamos pela “estrutura que a multiplicidade constrói” (MACÊDO, 2008, p. 168). Consequentemente, utilizamos da geografia humanista para discutir não só categorias geográficas, mas a relação com o ser humano e o espaço, pois “[...] o conhecimento geográfico deve buscar os signos ocultos da Terra, os quais revelam o próprio homem na sua condição propriamente humana.” (NABOZNY, 2012 , p. 59)

Destarte, verificamos que a casa traça uma relação também com a temporalidade, pois não poderíamos negligenciar a necessidade de esclarecer termos como: contemporaneidade, modernidade, supermodernidade. Trata-se de um espaço híbrido que incorpora os novos tempos. Assim, o híbrido remete ao que viola as leis naturais, como Guy Scarpetta pontua: “O que um termo como impureza me parece caracterizar não é apenas a heterogeneidade dos registros ou dos materiais utilizados, mas a maneira de tratar estes choques, esta multiplicidade ativa” (SCARPETTA, apud BERND, 1998, p. 17, apud MACÊDO, 2008, p. 168).

Consequentemente, analisamos o poder da narrativa, na composição do estilo espacializante de Agualusa. Na investigação do romance encontra-se “[...] ruas metaforizadas e becos de linguagem, acabando por percorrer estradas de signos que se bifurcam em leituras ideológicas e se desdobram em novas esquinas” (MACÊDO, 2008, p. 20). Deste modo, encontramos uma “‘leitura do intervalo’ (para usarmos a feliz e expressão de João Alexandre Barbosa) -, ou seja, apreender a tensão criada entre a formalização estética e a história de um lado, e os valores sociais veiculados na obra literária, por outro” (MACÊDO, 2008, p. 20).

Por valores sociais entendemos que, evocando o pensamento de Jacques Rancière, o fazer artístico mostra as marcas pelas quais fala os silenciados da História e por eles se partilha o extrato sensível unitário na comunidade heterogênea. Essa escrita, então, é democrática pela quebra da hierarquia daqueles que devem ou não falar, pois, pela materialidade das nuvens, ruas e fotografias, fala a todos.

Verificamos, pois, desde terceiro capítulo, que na mediação improvável das fotografias, a opacidade dos elementos cotidianos indica o peso da história, da cultura e da subjetividade posta em suas evidências. É no locus privilegiado da casa que as fotografias entram e comunicam o fora e a sua indeterminação, seja pelas iluminações de Ângela ou as sombras de Buchmann. Portanto, sua contingência na contemporaneidade revela o romance como transporte, ao passo que apresenta também o seu contraste ao encapsular uma individualidade inflamada, mas contaminante e contaminada pela ânsia de transcendência dos próprios limites, já que é o sujeito pós-moderno que se espacializa. Concluímos que, longe de encerrar a discussão iniciada no presente trabalho, apenas nos debruçamos sobre essa configuração específica, que, como objeto literário permite novas leituras e releituras, pois como afirma Lins:

Move-se o homem e recorda o passado. Nada disso o pacifica ante o espaço e o tempo, entidades unas e misteriosas, desafios constantes à sua faculdade de pensar. Acessíveis à experiência imediata e esquivos às interrogações do espírito, sugerem – espaço e tempo – múltiplas versões, como se monstros fabulosos. (LINS, 1976, p. 63)

Por isso, as possibilidades de estudo estão abertas, assim como o conceito de espaço, que pela sua configuração plurimodal ativa a relação entre sujeito e materialidade, entre narrativa e o corpo da letra. Como afirmou Bachelard “o conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado” (BACHELARD, 2008, p. 88), e, como atividade crítica, não deixamos de circular a substância poética que perturba a ordem se desejamos que circule inclassificada. Indagamos apenas sobre ela, mas nada podemos classificar.

REFERÊNCIAS

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ANEXOS ANEXO 1

António Ole, instalação “Margem da Zona Limite”, de 1994.

ANEXO 2

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