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Corpo de refúgio: perspectiva, tempo e espaço

2 A CASA

2.1 Corpo de refúgio: perspectiva, tempo e espaço

A visão da personagem é naturalizada como indício do seu aspecto psicológico e íntimo, assim como também do espaço material na qual está inserida. Segundo Brandão,

O espaço configurado/apreendido pela visão é aquele que, em princípio, exige a distância entre o observador e observado. É essa distância que define a própria nitidez da visibilidade resultante. Tal espaço é prioritariamente o espaço das formas, aparentes ou supostas, e não das matérias, pois um forte componente de abstração (em muitos casos, de idealização) necessariamente está presente. (BRANDÃO, 2013, p. 179)

Ou seja, é o espaço conjecturado a partir de alusões ao entorno pelo olhar da personagem. E a perspectiva mais predominante no romance O vendedor de passados é a de Eulálio, como narrador testemunha (BONNICI, 2009). Por viver percorrendo as paredes e escondido entre os móveis e objetos, ele tem uma visão bastante ampla dos acontecimentos na casa, como de uma câmera vigilante. Isto proporciona ao leitor a sensação de que não estamos lendo, mas assistindo o que é relatado, no caso, narrado pela testemunha em primeira pessoa (BONNICI, 2009). Este tipo de narrador só sabe daquilo que presencia, ao que limita-se a fazer inferências, deduções e suposições, em

contrapartida, ele narra de uma proximidade que lhe permite uma posição parcial e ao mesmo tempo participativa no enredo.

Apesar de que a perspectiva de Eulálio esteja situada em um ponto central em relação ao redor, o que tende a eliminar a “enfocação coerente e sucessiva de uma personagem central” (ROSENFELD, 1969, apud LINS, 1976, p. 93). Segundo Osman Lins, na narrativa contemporânea está cada vez mais constante a visão não perspectívica, expansão e transfiguração do narrador onisciente de modo que evoca uma espiritualização, em que “uma percepção mais profunda do mundo logo irá provocar recursos mais sutis de inserção do espaço” (LINS, 1976, p. 94). Consequentemente, estas estarão condicionadas por uma visão subjetiva e pessoal do espaço.

Ou seja, o espaço revelará a si mesmo quem o observa e habita, uma função a qual, para Bachelard, implica em preencher um refúgio vazio, em que “o refúgio devolve uma primitividade feliz” (BACHELARD, 2008, p. 104). Novamente, nos remetemos ao espaço feliz no qual o primitivo é um convite à imaginação, que retira o ser do automatismo. Quem imagina nota (BACHELARD, 2008), lembra da casa primordial, a casa das solidões, dos cantos e refúgios. A casa não só evita a dispersão do ser, mas organiza um universo, no qual vivemos fixações de felicidade. Assim, ela é um grande berço, um bem-estar da consciência. Levados pelo devaneio, esses espaços de solidão são constitutivos do ser. Regiões de reverberação em que “lembrando-nos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos” (BACHELARD, 2008, p. 20).

Então, o devaneio do mundo exterior partindo da segurança da casa, e animado por valores e ações, é uma potência que Eulálio sorve pelo corpo diminutivo, como podemos verificar no trecho a seguir:

[...] Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espetáculo idêntico. Todas as tardes divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira vez. [...] lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda. (AGUALUSA, 2004, p. 3)

No final da tarde, o sol se despede do céu como numa pintura renascentista de uma batalha épica. O céu ganha movimentos dramáticos: as nuvens são violentas e oscilantes como chamas que antecipam a personificação angelical e infernal talhada pelas asas e cabelos rubros que dão o tom barroco à cena.

Mas esta contemplação também torna-se banal e cômica pela focalização na nuvem solitária que se desgarrou da legião e flutua como um cachorro perseguindo a própria calda. Percebe-se, na casa, que o “sonhador vê o mundo através da vidraça, mas de toda parte faz surgir o irreal, o insólito. Apresenta-nos um átomo de ‘universo em multiplicação” (BACHELARD, 2008, p. 165). Um universo que possui seus elementos dramáticos e cômicos.

Podemos ver que no ambiente o imaginário se move por figuras, imagens poéticas que transformam a experiência e desencadeiam uma repercussão interior. Para Maurice Merleau-Ponty (1964 apud NEGREIROS, 2012, p. 13):

O espaço não é mais aquele de que fala a Dióptrica, rede de relações entre objetos, como o veria uma terceira testemunha de minha visão, ou um geômetra que a reconstruísse ou a sobrevoasse, é um espaço considerado a partir de mim como ponto ou grau zero da espacialidade. Eu não o vejo segundo seu invólucro exterior, eu o vejo de dentro, sou aí englobado. Afinal de contas, o mundo está ao meu redor, não diante de mim.

Segundo Bachelard, a imagem, como produto de uma consciência feliz, atinge as profundezas do ser para depois evoluir à superfície das memórias palpáveis que a imagem colore. Ou seja, a imagem é um devir da expressão, logo, um devir do nosso ser, pois,

Ao recebermos uma imagem poética nova, sentimos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que a repetiremos para comunicar o nosso entusiasmo. Considerada na transmissão de uma alma para outra, uma imagem poética foge à pesquisas de causalidade. As doutrinas timidamente causais, como a psicologia, ou fortemente causais, como a psicanálise, não podem determinar a ontologia do poético. Nada prepara uma imagem poética: nem a cultura, no modo literário, nem a percepção, no modo psicológico. (BACHELARD, 2008, p. 8)

No espaço feliz, de acordo com Bachelard, atrair e repelir não são efeitos de experiências contrárias, mas onde o ser depara-se no exterior como matéria e não como vazio. Desta matéria ele prova o medo do próprio ser que perde seus esconderijos e escapatórias. Ele vaza, mas não se perde. Então, Eulálio, em seus passeios de Deus noturno (AGUALUSA, 2004), é arrastado pela integração com a casa, realçada principalmente na tessitura entre o interno e o externo. Logo no início do capítulo “A casa”, Eulálio afirma que:

A casa vive. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. As largas paredes de adobe e madeira estão sempre frescas, mesmo quando, em pleno meio-dia o sol silencia os pássaros, açoita as árvores, derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como um ácaro na pele do hospedeiro. Sinto, se as abraço, um coração a pulsar. Será o meu. Será o da casa. Pouco importa. (AGUALUSA, 2004, p. 9)

A casa é humana: ela respira, pulsa. É um organismo hospedeiro que alimenta e protege o hóspede, o parasita que a percorre. Suas paredes de adobe prolongam a sabedoria da terra, já que é feito artesanalmente de argila e outros compostos. Este é um material durável que faz parte da habitação tradicional angolana pois tem a capacidade de manter o interior das residências em uma temperatura mais baixa, protegendo os habitantes do calor escaldante4. Portanto, nesta interioridade, vemos que “o repouso é dominado necessariamente por um psiquismo involutivo. O ensimesmamento nem sempre pode permanecer abstrato. Ele assume a feição de enrolamento em si mesmo, [...]” (BACHELARD, 2003, p.4). Enrolamento no corpo de terra da casa, uma comunhão em que o corpo abandona as suas limitações preconcebidas e se torna parte da materialidade inanimada, reelaborando a sua noção de existir, de habitar.

Então, Eulálio, no seu corpo diminuto apreende o mundo pelo olhar. Como agente de imensidão, ele faz circular imagens poéticas num diálogo entre grandezas e minúcias, entre o todo e a parte já que “as grandes imagens têm ao mesmo tempo uma história e uma pré-história. São sempre lembranças e lendas ao mesmo tempo. Nunca se vive a imagem em primeira instância.” (BACHELARD, 2008, p. 50), o que podemos verificar no trecho abaixo:

4 http://kimangola.blogspot.com.br/2011/06/habitacao-tradicional-angolana.html , Acessado em

O estrangeiro comia com um apetite radiante, como se saboreasse não a carne firme do pargo, mas a vida inteira dele, anos e anos deslizando entre a súbita explosão dos cardumes, o turbilhão das águas, os densos fios de luz que, nas tardes de sol, caem a prumo sob o abismo azul. (AGUALUSA, 2004, p. 39)

A expressão assume um tom espacial, cósmico, integrador. É uma narrativa sobre o outro, sobre a existência do produto consumido que sai da apatia para o olhar cinético descrito por Eulálio. Esse olhar carrega o peso da empatia pela vida silenciosa do animal. Mais do que isso, pela capacidade fabulatória dele, já que, como pontua Bachelard: “só conhece o suficiente quem primeiro conhece o excesso” (BACHELARD, 2003, p. 69). É pelo excesso de vida que Eulálio narra a si e ao mundo, pois “seja na polêmica, seja mesmo na exuberância, a imagem literária é uma dialética tão viva que dialetiza o sujeito que vive todos os seus ardores” (BARCHELARD, 2003, p. 71).

Como todo canto de refúgio é para a imaginação uma oportunidade de solidão, o canto privilegia a Eulálio a vivência onde primeiramente é experimentada a individualidade (BACHELARD, 2008). Do seu canto, Eulálio intuía o mundo exterior:

[...] para além do muro do quintal, a algazarra luminosa dos musseques, depois um largo abismo negro e as estrelas. O abismo negro era o mar. Fiquei um bom tempo a olhar para ele. Imaginei-me a afundar no silêncio, às cegas, como antigamente, o coração em sobressalto, as mãos abrindo a água, um frio agradável nos pés, que ascendia pelas pernas até alcançar a cintura. (AGUALUSA, 2004, p. 169)

Musseque, que em quimbundo (mu seke) significa terra vermelha, é o nome que é dado aos bairros pobres e sem infraestrutura à margem da cidade – o que no Brasil é chamado de favela ou comunidade –, para onde os colonizados foram empurrados, a medida que a cidade se metropolizava (PEPETELA, 1990, apud MACÊDO, 2008). Segundo Tania Macêdo, no livro Luanda, cidade e literatura, os musseques, juntamente com o centro da cidade de fundação colonial, onde concentra-se o centro administrativo e empresarial e os subúrbios de luxo no qual a burguesia habita, formam a tríade de três cidades diferentes dentro de Luanda. As três são facetas simbólicas de uma cidade de terceiro mundo que reflete na sua multiplicidade as contradições e desigualdades da modernidade.

Mas a Luanda que Eulálio compreende é limitada ao musseque, além dele está um mundo desconhecido como o céu à noite, como um mar que desperta sensações da sua outra vida em contato com as águas misteriosas. Um torpor que ascendia seu coração, entregue ao silêncio. Logo, torna-se um mar de lembranças, pois “toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores particulares” (BACHELARD, 2008, p. 50).

É a partir da personagem que vemos a correspondência entre o ser e o universo dissolvidos numa corporeidade tributária à uma visão integradora em que o eu-cósmico relança esses valores no corpo animal. Essa superfície é dolorosa de imensidão, na qual “a imagem literária torna a alma bastante sensível para receber a impressão de uma sutileza absurda” (BACHELARD, 2008 p. 212). Assim, “A casa da lembrança, a casa natal, é construída sobre a cripta da casa onírica. Na cripta encontra a raiz, o apego, a profundidade, o mergulho dos sonhos. Nós nos ‘perdemos’ nela. Há nela um infinito” (BACHELARD, 2003, p. 77).

Todavia, quando se aventura ao exterior, o mundo o aterroriza pelo “céu sem nuvens, o silêncio pesado de luz, um bando de pássaros voando em círculos” (AGUALUSA, 2004, p. 181), voo característicos dos urubus. Já não é o mundo de encantos percebido do seu refúgio: o céu sem figuras que o responda e conforte com uma simulação qualquer, no qual a luz se faz terrivelmente presente com cenário de anunciação do voo de morte, o círculo da vida.

O universo entra na casa por todas as frestas na qual, “uma poeira de séculos, ácaros, almas velhas de escritores, soltavam-se dos grossos livros e dançavam no ar, como uma neblina, como um vago sonho, iluminadas pelos relâmpagos da televisão.” (AGUALUSA, 2004, p. 169). Se “Toda grande imagem simples revela um estado de alma” (BACHELARD, 2008, p. 84), o seu exterior fala de uma intimidade em hipérbole, densa, em que “é ao sonhar com essa intimidade que se sonha com o repouso do ser, com um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa imobilidade inteiramente externa reinante entre as coisas inertes.” (BACHELARD, 2003, p. 4). Ou seja, a intensidade em diálogo com o ambiente, com os signos que captam o movimento do mundo. A intimidade, quanto mais fechada, mais propicia a sua expansão sensível. Então “o conceito de terra como texto revela ao humano seu destino, cuja apreensão remete a uma linguagem poética, sem deixar de ser também ciência. Contudo,

a Terra possui seu próprio léxico: o líquido, o rochoso, o luminoso, o aéreo. (NABOZNY, 2012, p. 61).

No seguinte excerto, vemos que a dialética entre o interior e o exterior em observações que demonstram uma relação cósmica: “O calor ascendia do chão. Entrava num sopro úmido pelas frinchas das portas, em lentas vagas, carregando o cheiro salgado do mar e o seu rumor, o assombro dos peixes, a luz débil do luar” (AGUALUSA, 2004, p. 169). O calor, como que partindo de um mundo inferior e misterioso, do inferno ou apenas do seu núcleo, mimetiza os movimentos do mar, do qual carrega os seus elementos. Portanto, o espaço se torna um ambiente hiperbolizado no qual cada figura carrega o seu passado terrestre. A terra relembra o seu núcleo, o vento lembra o seu percurso e dele o mar transporta o seu mistério e com estes:

[...] a casa perdida na noite dos tempos sai da sombra, parte por parte. Nada fazemos para reorganizá-la. Seu ser se reconstitui a partir de sua intimidade, na doçura e na imprecisão da vida interior. Parece que algo fluído reúne as nossas lembranças. Fundimo-nos nesse fluido do passado. (BACHELARD, 2008, p. 71)

A casa, como um barco, navega imagens à desordem do desejo íntimo e integrador entre ser e espaço. Consequentemente, a casa traça uma relação de homologia com elementos tensivos da noite, com as suas agitações imperceptíveis (rumor, assombro, luz débil). A integração do ambiente exterior é severa, pois este vai anunciar a quebra da normalidade e da segurança da casa. Na noite, os contornos tão abstratos ganham volume, já que:

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo. (BACHELARD, 2008, p. 190)

Eulálio sustenta essa expansão do seu corpo frágil e ao mesmo tempo dinâmico. Sua vida solitária o permitiu sentir todos esses movimentos anunciadores e oníricos.

Mesmo acordado ele elide as tramitações do real e da consciência e já não carece do mundo cartesiano. Livre do jugo racional, a concatenação dessas figuras progride para um ambiente carregado de simbologias, que dramatizam a “sinergia entre ação e natureza” (BORGES FILHO, 2008, p. 5). Segundo Bachelard, na dialética do interior e do exterior, “fazemos dela, sem o percebermos, uma base de imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo” (BACHELARD, 2008, p. 216), mas a relação entre interior e exterior não é uma mera reciprocidade, pois “o exterior e o interior são ambos íntimos, estão sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade” (BACHELARD, 2008, p. 221).

Este fundo onírico é também simbólico prenhe de associações sensíveis. Não só na sua vida na casa, mas também na outra vida humana, Eulálio é acometido pela abertura ao devaneio da imobilidade. Ao recordar de quando desejou se suicidar na outra vida, a humana, a fluidez da noite novamente congrega esses elementos, Eulálio lembra que:

Era como se chovesse noite. Explico melhor: era como se do céu caíssem grossos fragmentos desse oceano escuro e sonolento no qual navegam as estrelas. Fiquei à espera de as ver cair, quebrando-se depois, com grande brilho e clamor, de encontro às vidraças. Não caíram. Apaguei o candeeiro. Encontrei o revolver à nuca, e adormeci. (AGUALUSA, 2004, p. 69)

Fazendo a menção de mar às avessas, a chuva, como elemento fantástico inspira a fascinação, na qual a água lembra da fluidez da vida, pois “[...] somos feitos não de carne e osso, mas de tempo, de fugacidade, cuja metáfora imediata é a água” (BORGES, 1984, apud BRANDÃO, 2013, p.120). Assim, o plano suicida falha diante do tempo que escorre do céu vestido de mar, de águas infinitas e desconhecidas. Águas que salvam, movem-se entre os sonhos e também entre passados. Por fim, Félix resume a reflexão sobre Eulálio ao afirmar que “passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à agua: flui. Hoje está um rio. Amanhã estará mar. A água toma a forma do recipiente. Dentro de uma garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa” (AGUALUSA, 2004, p. 198). Eulálio será sempre Eulálio, seja qual for a sua encarnação.

Mas é também a chuva que faz Félix recordar da infância, o seu outro refúgio. Transportado pela contemplação da forte chuva, ele conta à Eulálio que costumava passar

as férias com o pai adotivo numa Fazenda em Gabela, cidade que fica ao sul de Luanda. Segundo ele:

[...] era como visitar o paraíso. Brincava o dia inteiro com os filhos dos trabalhadores, mais um ou outro menino branco, dali mesmo, meninos que sabiam falar quimbundo. [...] Vejo chover assim e lembro-me de Gabela. As mangueiras, rodeando a estrada, mesmo à saída da Quibala. [...] A minha infância está cheia de bons sabores. Cheira bem a minha infância. (AGUALUSA, 2004, p. 93-94)

O espaço da infância surge, primeiramente, da evocação de uma memória de gostos e cheiros, o que é um recurso recorrente na narrativa de Agualusa, como interpreta o mesmo no romance Milagrário pessoal (2010), ao associar a noção de pátria à “[...] um buquê de cheiros. Pitangas, terra molhada, o capim macerado.” (AGUALUSA, 2010, p. 83). Ou seja, ela é primeiramente caracterizada por aspectos sensoriais que remetem ao espaço natural dessa infância, que, como veremos a seguir, também é tensionado.

A chuva o lembra da infância, mais pela chuva de gafanhotos do que propriamente da água. Ele fala de um enxame que assolou a localidade fazendo escurecer o horizonte:

A escuridão avançava, cobria tudo, e no instante seguinte transformava- se numa coisa ansiosa e múltipla, num alvoroço, e nós corríamos para casa, a procurar abrigo, enquanto as árvores perdiam as folhas e o capim desaparecia, em poucos minutos, devorado por aquela espécie de incêndio vivo. (AGUALUSA, 2004, p. 94).

A descrição progressiva desse quadro só piora pois também os quissondes, formigas guerreiras “[...] desciam da noite, de alguma porta na noite com acesso ao inferno, e multiplicavam-se, aos milhares, aos milhões à medida que os matávamos” AGUALUSA, 2004, p. 94). Atacavam tudo numa fome cega e ancestral (AGUALUSA, 2004), que nem a névoa do pesticida aplacava. Ou seja, os insetos são descritos como uma catástrofe infernal incontrolável, como uma força misteriosa da natureza que matava as plantações e os animais. É ela que traz o infortúnio infantil ao atacar os cães que lá viviam. Em meio ao terror os bichos arrancaram nacos das patas, o que fez com que o pai de Félix, Fausto Bendito, os sacrificasse.

Em contraponto, Félix conta que na infância em Gabela, depois das chuvas vinham os salalés, formigas brancas aladas que “volteavam a noite inteira em redor das lâmpadas como uma bruma, num zumbido doce, até perderem as asas, e pela manhã os passeios acordavam cobertos por um leve tapete transparente” (AGUALUSA, 2004, p. 96). Aqui a infância não poupa os seus excessos em metaforizar as asas no chão em um tapete delicado que antagoniza a carnificina da cena anterior.

É um cenário ao mesmo tempo idílico e invadido, devastado, povoado de agentes externos imprevisíveis e incontroláveis que vão reverberar na composição dos espaços imaginários e sociais num tom indissociável, evidenciando que na infância, “as forças no infinitamente pequeno são sempre sonhadas como cataclismos” (BACHELARD, 2003, p. 12). Os insetos são sonhados como exércitos sanguinários e agentes de transformação da paz esperada no lugar.

Para Félix, a infância é um espaço de refúgio que ele associa à noção de infinito, um tempo imobilizado onde o ser criança fabulava e fantasiava o mundo, em que na égide de sua criação habitava a eternidade, da qual ele pontua que “só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.” (AGUALUSA, 2004, p. 96). E a este saudosismo pode ser corroborado com as palavras de Bachelard: “[...] a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão, mas também tem necessidade de concentração, de intimidade. [...] quando a vida proporcionou ‘maus sonhos’, sentimos saudade da intimidade da felicidade perdida.” (BACHELARD, 2003, p. 13)

Destarte, o tempo da infância é um lugar e é um estado sempre recorrente. Segundo Bachelard, “[...] não é uma coisa que morre em nós e seca uma vez cumprido o seu ciclo. Não é uma lembrança. É o mais vivo dos tesouros” (BACHELARD, 1988, p. 130). Isto é confirmado por Félix, já que ele conclui o seu relato com a afirmação de sua felicidade infante: “eu fui feliz para sempre na minha infância, lá em Gabela, [...] Fui feliz

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