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HABITAR O OLHAR: LITERATURA, FOTOGRAFIA E

Lugar sem comportamento é o coração. Ando em vias de ser compartilhado. Ajeito as nuvens no olho. A luz das horas me desproporciona. Sou qualquer coisa judiada de ventos. Meu fanal e um poente com andorinhas. Desenvolvo meu ser até encostar na pedra. Repousa uma garoa sobre a noite. Aceito no meu fado o escurecer. No fim da treva uma coruja entrava. Manoel de Barros, O livro das ignorãças

Está petrificado na fotografia o instante que nunca mais poderá existir. Nela vemos o movimento calcinado em repouso, uma máscara a desfilar, em silêncio, a desordem que nos olha de volta, enquanto que vagamos o olhar pelo panorama, ou somos fisgados pelo detalhe. Segundo o relato no livro A câmara clara: nota sobre a fotografia, com a sua “resistência apaixonada a qualquer sistema redutor” (BARTHES, 2012, p. 17), Roland Barthes sabia que, para escrever sobre a fotografia, não podia partir de uma noção cômoda e superficial, pois “eu sentia, pela força de meus investimentos, sua desordem, seu acaso, seu enigma, que a fotografia é uma arte pouco segura [...]” (BARTHES, 2012, p. 25, grifo do autor).

Ao tomar a realidade sem predicados, o referente e o significado na fotografia são ambos irmãos nessa tautologia, “ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento: estão colados um ao outro, [...] como que unidos por um coito eterno” (BARTHES, 2012, p. 15). Um não pode descolar do outro sem o destruir, assim como “a vidraça e a paisagem, e porque não: o Bem e o Mal, o desejo e seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não perceber” (BARTHES, 20112, p. 15). A sua essência é, assim, desviante porque é privada de um princípio de marcação e acumulação, pois “as fotos são signos que não prosperam bem, que coalham, como leite” (BARTHES, 2012, p. 15), por se dar no imediato e a ele remeter sem o substancializar.

Segundo Barthes, diante da câmera “não sou nem um sujeito nem um objeto: vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro. (BARTHES, 2012, p. 21-22). Destarte, o fotógrafo é o Operator dessa morte, enquanto que nós somos o Spectator desse Spectrum (BARTHES, 2012), já que o ser não está ali, mas a sua imagem inventariável. Diante de uma fotografia de si mesmo, diz Barthes:

O que vejo que me tornei Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa; os outros – o Outro – desapropria-me de mim mesmo, fazem de mim, com ferocidade um objeto, mantêm-me à mercê, à disposição, arrumado em um fichário, preparado para todas as trucagens sutis. (BARTHES, 2012, p. 22)

Destarte, embora real, a imagem teatraliza traços mortos, pois não é nem uma quimera ou uma especulação, por mais que nos esforçamos em concebê-la como viva, o que não passa de, segundo Barthes, “[...] a denegação mítica de um mal-estar de morte” (BARTHES, 2012, p. 36), logo, adianta-se incontestavelmente a falar daquilo que se foi. Isto se dá porque o referente fotográfico, diferente de outros sistemas de representação, não pode negar a coisa que estava diante da câmera e que agora não está mais e isto constitui a essência da fotografia, a conjunção entre realidade e passado, o seu noema, como denomina Barthes8. Por este anseio de morte:

A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado. (BARTHES, 2012, p. 75)

Então, o fato de que a personagem Ângela Lúcia sempre carregar suas fotografias numa pequena caixa de plástico chamada de esplendório, revela a ambição de guardar radiações de tempos mortos, mas ao mesmo tempo uma segunda pele feita de “luzes,

8 Noema: uma concepção da denomenologia husserliana que refere-se ao traço inimitável de algo.

clarões, exíguos lumes, presos entre um caixilho de plástico, com as quais vai alimentando a alma nos dias de sombra.” (AGUALUSA, 2004, p. 55). Cada fotografia partiu de uma experiência, de um ambiente específico, ao qual procura dar a cada espaço uma alma da luminosidade, pois:

Mesmo nos céus mais improváveis Ângela Lúcia descobrira brilhos a merecerem ser salvos do esquecimento; antes de ter visitado os países escandinavos julgava que, por lá, nos meses eternos de inverno a luz fosse uma mera conjectura. Mas não, as nuvens acendiam-se por vezes em largos clarões de esperança. (AGUALUSA, 2004, p. 54)

Ângela afirma que reconhece os lugares do mundo apenas pela luz e assim os descreve: a luz de Portugal no fim da primavera como uma rapariga a debruçar-se alucinada sobre as casas. É branca, úmida e salgada como o mar. Como se estivesse entorpecida pelo andamento dramático de um fado. Já no Rio de Janeiro é melancólica “como que um fulgor de seda, acompanhada por vezes de uma cinza úmida, que encobre as ruas, e desce depois lentamente, tristemente, sobre as praças e os jardins (AGUALUSA, 2004 p. 54). Pode-se dizer que o recorte musical à essa descrição seria a melodia de uma bossa nova ao fundo, surgindo de um bar mediano da capital carioca. Decadente, mas ao mesmo tempo elegante, sexualizada e misteriosa e por isso a descrição também envolve uma sedução.

No Pantanal é uma luz em preguiçosa que “pouco a pouco pousa sobre as águas, cresce e se propaga, e parece cantar” (AGUALUSA, 2004, p. 54). A luz faz parte de um processo, ela ganha narrativa como se fosse um corpo etéreo que transmite a placidez sentida pela personagem. A luz não só desce na superfície reflexiva das águas, mas no estado poético que move levando consigo o traço indelével do pantanal, próprio da lírica de Manoel de Barros, aquele que criançava as coisas, desaveçava as palavras afins de serem mais menino/rio/destroço.

Já “na floresta de Taman Negara, na Malásia, a luz é uma matéria fluida, que se cola à pele e tem sabor e cheiro. Em Goa, é ruidosa e áspera. Em Berlim o sol está sempre a rir-se (AGUALUSA, 2004, p. 54) quando vence as nuvens pesadas da capital alemã, e, da mesma forma que os adesivos ecologistas contra a energia nuclear, o sol é um protesto, um deboche.

Mas é de Eça de Queiros que ela toma inspiração para descrever a luz do Egito. Para ela, junto às pirâmides, “a luz cai magnífica, tão forte, tão viva, que parece pousar sobre as coisas como uma espécie de névoa luminosa” (AGUALUSA, 2004, p. 55). Artimanha que Félix percebe com deleite, já que o autor foi o seu primeiro berço, literalmente.

As luzes fotografadas pela personagem do romance O vendedor de passados, recebem roupagens diferentes em consonância com os aspectos dos locais em que foram fotografadas de acordo com a personagem. A luz não diz o que é, mas o que pode ser. A sua descrição diz mais sobre a perspectiva da personagem do que pode ser computado. Segundo o geógrafo Donald Meinig a apreciação ambiental “é uma arte, é holística, particularista, peripatética, qualitativa, sensual e finalmente idiossincrática e profundamente emocional. (MEINIG, 1971, apud HOLZER, 2008, p. 140). Assim, Ângela Lucia exerce um poder de captação particular que dá ao espaço poderes qualitativos quase humanos ou sobrenaturais das quais a fotos restam como ícones desses momentos.

Assim, como paisagens flutuáveis, elas manifestam um deslizamento ao qual Roland Barthes, abordou no curso sobre o neutro e suas diversas figuras, publicado no livro O neutro. Nas suas anotações, o neutro é tido como categoria de um discurso, um comportamento e uma subjetividade, não como uma ausência, mas como aquilo que coloca os fatos além dos seus dilemas. Dentro do insustentável, o neutro exerce um poder, o neutro, volátil como desejo, suspende a ordem e a sua contestação, com pontua Barthes: “O neutro é suspensão da violência; como desejo é violência” (BARTHES, 2003a, p. 30), uma aporia. O neutro burla o paradigma. Por sua função torna-se um elemento cáustico, que se desdobra para além da gramática.

Na formação do sentido há escolhas entre uma coisa ou outra, mas o neutro é a figura que desestabiliza oposições e determinações, arrogâncias, exigências, não pela contestação, mas pelo deslizamento das imagens. No discurso, a imagem, fata morgana de signos sobre a realidade, não esconde a ânsia a si mesma. (BARTHES, 2003). Destarte, as descrições que não descrevem, mas agem, são figuras que buscam e demonstram o neutro (BARTHES, 2003a). A figura de Ângela Lucia é o satori: desvio de sentido que é a “desestabilização da lógica do eu-social, desestabilização da pertinência, Procura,

sistematizada, praticada pelo Zen, de produzir na consciência essa espécie de flash vazio [...] (BARTHES, 2003a, p. 241).

É a descoberta súbita de um “insight”, do qual Barthes anota “insight = prolongar para fora do quadrado [...]” (BARTHES, 2003a, p. 355). Num cálculo comparativo, é como prolongar o satori, termo budista para o momento de iluminação como escorregamento no vazio, para fora da fotografia, se fazer presente por este traço ao mesmo tempo vivo e morto. É em Cachoeira, no Recôncavo Baiano que Ângela explicita essa relação:

O sol corria rente ao chão, cor de cobre, até bater de encontro àquela imensa parede de nuvens negras, para além dos velhos casarões coloniais. É um cenário dramático, não acha?” – suspirou”. Tinha a pele iluminada, os belos olhos rasos de lágrimas: - E então vi o rosto de Deus! (AGUALUSA, 2004, p. 56)

Pelo espaço se dá o satori, uma catástrofe em que aparece “breves clarões, talvez com uns tons de romantismo” (2003, p. 358), em que “o satori rompe com a visão corrente que aclimata, domestica o acontecimento fazendo-o caber numa causalidade, numa generalidade, que reduz o incomparável ao comparável” (BARTHES, 2003, p. 359).

A substância isolada é banal, comum, fora de qualquer casualidade, mas sob o olhar atento vira exaltação trágica, pois o satori, antes de tudo, é o mergulho no vazio essencial.Como a luz, ele é insustentável. Como neutro, contamina o ser. De forma que segundo Barthes:

“Não estou onde me esperam”: rompo a identidade – a complexidade – da mensagem que pretende que na mensagem haja também mensagens de localização (onde vejo o outro, onde ele me vê etc.): realiza uma atopia da linguagem (mas nada de cantar vitória: essa atopia será cooptada com a denominação “estapafúrdio”). (BARTHES, 2003a, p. 249)

As fotografias são sombras dessa presença divina, na qual Ângela busca incessantemente. Com isso, é possível fazer um paralelo com a inspiração de Barthes em fundamentar o seu curso sobre o neutro só com autores mortos. Ao carregar a sua coleção

consigo, ela se distancia do momento presente para vê-lo melhor, criando uma distância criadora: desvia pela morte da fotografia, por contar essa suspenção, como Barthes confessa: “faço pensar os mortos em mim: os vivos me cercam, me impregnam, me prendem justamente num sistema de ecos – mais ou menos consciente, mas só os mortos são objetos criadores" (BARTHES, 2003a, p. 24).

Ou seja, “trata-se de desfazer o tempo do sistema, de nele pôr momentos de fuga, de impedir que o sistema pegue.” (BARTHES, 2003a, p. 350) O que implica numa “[...] filosofia cuja a instância não é a Verdade” (BARTHES, 2003a, p. 350), mas o fenômeno que coloca à validade uma sensibilidade. Não obstante, pode ser ao mesmo tempo “um acesso de incandescência do kairós, do momento em sua pura exceção, seu poder absoluto de mutação = o satori” (BARTHES, 2003a, p. 356).

Para Barthes, o kairós é o tempo oportuno. Pelo kairós, a neutralidade toma a vida como guia, sem evitar o que for e sem constituir sistema ou ilusão, “os fenômenos existem, pelo menos como fenômenos [...] no entanto, o ser manifestado, que é um ser verdadeiro, decorre do não-ser” (BARTHES, 2003, p. 352). O kairós remete a uma mundanidade na contingência, mas a escrita expulsa a mundanidade. De acordo com Jacques Rancière, a escrita destrói a instituição direcionada das palavras e as posições dos corpos, já que “circula por toda parte, sem saber a quem deve ou não falar” (RANCIÈRE, 2005, p. 17).

As luzes escrevem. O peso da atmosfera é uma escrita, mesmo que seja só descrito, ele é sensível. Ao final do romance, as polaroides tiradas no Brasil que Ângela mandara a Félix escrevem um caminho que, pregadas num mapa colado a parede, “formam uma espécie de vitral [...]. Predominam os tons de azul.” (AGUALUSA, 2004, p. 182). O conjunto, segundo Eulálio, lembra as experiências de David Hockney9 com polaroides (ver anexo 2).

9 David Hockney, nascido em 1937 em Bradford, Inglaterra, produziu algumas das imagens mais vívidas

deste século. Suas produções refletem uma busca ambiciosa que se estende através de uma vasta gama de meios de comunicação, de colagens fotográficas e de desenhos de fax, para um estudo histórico intensivo de arte dos dispositivos ópticos e encerram uma verdadeira explosão de cores em torno dos temas que maravilham o artista em seu percurso: o espaço próprio da sua casa, os seus caminhos, as suas relações sociais.

Com elas ele traça uma rota das passagens de Ângela Lúcia e percebe que ela está indo para ao sul. Planeja encontrá-la em Fortaleza baseando-se na mesma tese dos 6 graus de separação. Escrita e fotografia exibem:

[...] o entrelaçamento igualitário das imagens e dos signos na superfície pictural ou tipográfica, a promoção da arte dos artesãos à grande arte e a pretensão nova de inserir arte no cenário de cada vida em particular, trata-se de todo um recorte ordenado da experiência sensível que cai por terra (RANCIÈRE, 2005, p. 23).

É um entrelaçamento que cria uma interface política, ou seja, democrática, pois abole a hierarquia de temas, própria do regime estético das artes. Rancière recorda que “a revolução técnica vem depois da revolução estética. Mas a revolução estética é antes de tudo a glória do qualquer um – que é pictural e literária, antes de ser fotográfica e cinematográfica.” (RANCIÈRE, 2005, p. 48).

A fotografia, ao transformar o sujeito em objeto, de acordo com Barthes, “permite ter aceso a um infrassaber; fornece-me uma coleção de objetos parciais e pode favorecer em mim um certo fetichismo: pois há um ‘eu’ que gosta de saber [...].” (BARTHES, 2012, p. 34). Assim, Barthes identificou que a subjetividade que atrai ou repelia numa foto flutuava no simples critério de gosto/não gosto que, disposto à perquirição, o levou a distinguir uma diferença a qual ele adotou como regra.

Há em certas fotografias elementos que se assemelham aos objetos e seres humanos, mas são incapazes de despertar animação: são apenas objetos que despertam um “[...] afeto médio, quase que um amestramento.” (BARTHES, 2012, 31). São elementos que possuem a função de “informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade” (BARTHES, 2012, p. 34). Este elemento é o studium, que corresponde a um investimento geral de um estudo sobre algo:

É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, quer as receba como testemunhos políticos, quer as aprecie como bons quadros históricos: pois é culturalmente [...] que participo das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das ações. (BARTHES, 2012, p. 31)

Já há certos detalhes nas fotografias que provocam um estalo de desejo, admiração ou debate, uma aventura que permite fazer a fotografia existir apesar da morte (BARTHES, 2012). Somos transpassados por essa marca. Como uma ferida da fotografia que na verdade é nossa, o punctum, “[...] picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (BARTHES, 2012, p. 33, grifo do autor). É, portanto, um ponto sensível que o diferencia da generalidade studium. Imerso nessa estática, como uma digital criminosa, o punctum é a corrente elétrica que transpassa a massa apática e morta da fotografia.

Às vezes o punctum expande para o detalhe que ocupa a foto toda. “Por mais fulgurante que seja, o punctum tem, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão. Essa força é frequentemente metonímica” (BARTHES, 2012, p. 49) que faz lembrar do nosso próprio passado através remissões parciais feita pela memória. Mas o punctum também pode não ser situável em algo, “é certeiro e no entanto aterrissa em uma zona vaga de mim mesmo; é agudo e sufocado, grita em silêncio. Curiosa contradição: é um raio que flutua” (BARTHES, 2012, p. 56). Observação curiosa, pois o punctum é um suplemento, já está na imagem como um ponto cego (BARTHES, 2012). “O punctum é, portanto, uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (BARTHES, 2012, p. 58). O fotógrafo que consegue isso encontra o “bom momento, o kairós do desejo” (BARTHES, 2012, p. 60, grifo do autor).

Como um paratexto, a fotografia transporta outros espaços e outras relações. Mas a escritura, ao contrário, “pela ação repentina de uma única palavra, pode fazer uma frase passar da descrição à reflexão” (BARTHES, 2012, p. 34). A escrita seria, então, um tipo de vida, enquanto que a fotografia canaliza a morte do instante. A junção desses dois elementos no romance O vendedor de passados inscreve um mútuo desafio, pois “no fundo, a fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa” (BARTHES, 2012, p. 41, grifo do autor).

A interface pictural e escrita, revela a ficção de um espanto reconhecível, palpável, como quando Félix apresenta as fotografias dos pais fictícios de José Buchmann:

Numa outra, um casal abraçava-se, junto a um rio, contra um horizonte largo e sem arestas. O homem tinha os olhos baixos. A mulher, num

vestido estampado, florido, sorria para a objectiva. José Buchmann segurou a fotografia e levantou-se, colocando-se diretamente sob a luz o candeeiro. A voz tremeu-lhe um pouco:

- São meus pais?

O albino confirmou. Mateus Buchmann e Eva Miller, numa tarde de sol, defronte ao rio Chimpumpunhime. Devia ter sido ele próprio, José, então com onze anos, a fixar aquele instante. Mostrou-lhe um antigo número da Vogue com uma reportagem sobre caça grossa na África Austral. O artigo reproduzia uma aquarela com uma cena da vida selvagem – elefantes banhando-se numa lagoa – assinada por Eva Miller.” (AGUALUSA,2004, p. 42)

Neste momento José Buchmann sofre um abalo sensorial que o conduz ao arrebatamento. Nas fotografias ele vê um passado de verdade e assume tão certeiramente como assume a morte, então:

Pela marca de alguma coisa, a foto não é mais qualquer. Esse alguma coisa deu um estalo, provocou em mim um pequeno abalo, um satori, a passagem de vazio [...]. Coisa estranha: o gesto virtuoso que se apossa das fotos “cultas” (investidas por um simples studium) é um gesto preguiçoso [...]; ao contrário, a leitura do punctum (da foto partilhada, se assim podemos dizer) é ao mesmo tempo curta e ativa. Encolhida como uma fera. (BARTHES, 2012, p. 51, grifos do autor)

Uma fera, escondida nas sombras do passado, salta da foto e engole-o como se o repatriasse. Esta fera nada mais é do que o desejo, pois, segundo Barthes, as paisagens que os nossos olhos desejam, provocam uma sensação de pertencimento:

Tudo se passa como se eu estivesse certo de aí ter estado ou de aí dever ir. Ora, Freud diz do corpo materno que “não há outro lugar do qual possamos dizer com tanta certeza que nele já estivemos”. Tal seria, então, a essência da paisagem (escolhida pelo desejo): heimlich, despertando em mim a Mãe (de modo algum inquietante) (BARTHES, 2012, p. 43)

Condição de verdade dada pela foto, pelo real que escapa e transporta para a familiaridade de quase um útero obscuro, ao qual o leitor não tem acesso, mas flutua entre palavras e fotos. Destarte, de ambos “[...] deveríamos falar de uma imobilidade viva:

ligada a um detalhe (a um detonador), uma explosão produz uma estrelinha no vidro do texto ou da foto: nem o Haiku nem a Foto fazem “sonhar” (BARTHES, 2012, p. 53). Pois desse abalo, desencadeará os jogos de José Buchmann, cada vez mais angolano, cada vez mais apropriado do seu passado inventado. Ao fotogravar Huíla, Buchmann retrata exatamente a comunidade:

5 Casas Baixas.

6 Ruas diretas, abertas com largueza para uma paisagem verde. 7 Ruas diretas, abertas com largueza para a paz imensa de um céu

sem nuvens.

8 Galinhas ciscando em meio à poeira vermelha.

9 Um velho (mulato), sentado à mesa triste de um bar, o olhar pousado numa garrafa vazia.

10 Flores murchas num vaso.

11 Uma enorme gaiola, sem pássaros.

12 Um par de botas, muito gastas, aguardando à soleira de uma casa. (AGUALUSA, 2004, p. 60-61)

A coleção antipirética torna visível as profundezas de angola. O que encontramos é um tempo específico, escrito nas ruas e nos abandonos de uma cidade em silêncio que desabrocha o vazio para o céu. Vestígio inegável de que Buchamann tenta reconstituir mundos a partir dos seus vestígios. Assim:

O pulo para fora da mímesis não é em absoluto uma recusa da figuração. O seu momento inaugural foi com frequência denominado realismo, o qual não significa de modo algum a valorização da semelhança, mas a destruição dos limites dentro dos quais ela funcionava. Assim, o realismo romanesco é antes de tudo a subversão das hierarquias da representação (o primado narrativo sobre o descritivo ou a hierarquia dos temas). (RANCIÈRE, 2005, p. 35)

Com a destituição das hierarquias de representação, Rancière declara o desejo de “que uma época ou sociedade possa ser lida nos traços, [...] que o esgoto do fazendeiro e a mulher do banqueiro sejam capturadas pela mesma potência do estiolo como ‘maneiras absolutas de ver as coisas’ (Flaubert)” (RANCIÈRE, 2005, p. 47). Pois ai está a partilha do sensível, a partilha de um comum na comunidade heterogênea, pois não foi imitando

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