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2 A CASA

2.2 Os sonhos

Para Bachelard, a imagem poética sempre propõe um novo tipo de consciência sobre o mundo, para ele se “a linguagem traz em si a dialética do aberto e do fechado. Pelo sentido, ela se fecha; pela expressão poética, ela se abre” (BACHELARD, 2008, p. 224). As poeticidades dessas imagens conduzem para a abertura não só de outras dimensões paralelas que se comunicam com o presente, mas dos sentidos. Deste modo, a casa receberá as tribulações conduzidas pela narrativa realista e imaginativa que a constitui como um espaço transitivo e subjetivo. A casa adere outras peles, olhares, cheiros, rumores.

Tomando a linguagem como corpo de liberdade, a imagem poética, segundo Gaston Bachelard, “arrasta a imaginação como se esta criasse uma fibra nervosa” (BACHELARD, 2008, p. 12), ataca o seu flanco, no qual os conceitos não germinam em meio ao convulsionado de metáforas. Deposto pela sublimação,

[...] é preciso que o saber seja acompanhado de um igual esquecimento do saber. O não-saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação do conhecimento. E é a esse preço que uma obra é a cada instante essa espécie de começo puro que faz de sua criação um exercício de liberdade. (BACHELARD, 2008, p. 16)

Numa intimidade entre passado e presente, a rara osga da Namíbia sente esses espaços com a vida humana ainda plasmada no seu olhar melancólico e fabulista, mas é na criação de um outro espaço, o espaço do sonho, que essa expressividade terá o seu suporte e a sua locomoção. São seis sonhos separados em capítulos numerados intercalando com outros capítulos do livro, distribuídos na seguinte ordem: Eulálio sozinho numa metrópole movimentada; num local indeterminado à noite encontra um rapaz e um cachorro; numa praia Eulálio encontra com Félix; depois joga xadrez com José Buchmann num vagão luxuoso de um velho comboio a vapor em movimento; por fim, depois Eulálio visita o mesmo num quintal tradicional em Chibia.

No primeiro sonho Eulálio relembra que tinha esse mesmo sonho na outra vida. Ele anda por ruas só que invisível aos muitos olhos da multidão de todas raças, crenças e sexos. Segue a descrição:

Homens de negro, óculos escuros, segurando pastas. Monges budistas, rindo muito, alegres como laranjas. Mulheres diáfanas. Gordas matronas com carrinhos de compras. Adolescentes magras, em patins, breves aves esgueirando-se entre a multidão. Meninos em fila indiana, com fardas escolares, o de trás segurando a mão do que vai na frente, na frente de todos uma professora, atrás de todos, outra professora. Árabes de djelaba e soliléu. Carecas passeando pela trela cães assassinos. Policias. Ladrões. Intelectuais absortos. Operários em fato macaco. Ninguém me vê. Nem sequer os japoneses, e grupos, com máquinas de filmar, e olhos estreitos atentos a tudo. (AGUALUSA, 2004, p. 31)

Ele descreve os executivos e operários indo para o trabalho, adolescentes se divertindo, crianças num passeio escolar, mulheres de vários biótipos. Monges alegres na sua simplicidade, árabes com os seus trajes, enquanto carecas (com são chamados os neonazistas), convivem no mesmo espaço com o policiamento, o crime e a intelectualidade. A rua é local onde tal miscelânea de identidades, hábitos e crenças convivem e essa descrição, apesar de diversidade, não especifica onde está situado esse ambiente público. No entanto, o fato de não haver uma descrição detalhada desse espaço,

podemos inferir que a mesma pode caber em qualquer metrópole contemporânea abarrotada de turistas, na qual há um intenso trânsito de diferentes identidades. Na contemporaneidade, o espaço é caracterizado como vetor de multiplicação do cruzamento de pessoas e coisas que resulta, segundo o etnólogo e antropólogo Marc Augé no livro Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (2004) na abundância de espaços transitórios,

a que chamaremos “não-lugares”, por oposição à noção sociológica àquela de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta. (AUGÉ, 2004, p. 36)

Como território retórico, o trânsito de identidades cria a noção de integração e, ao mesmo tempo, institui tensões solitárias (AUGÉ, 2004), por isso já não é espaço residual de discursos que controlam e educam o olhar para a formação do consumidor mediano, sempre em movimento, sempre deslocado. Ao observar esses modos de trabalho, lazer, e circulação, esses modos de reagrupamento percebe-se que o mundo da supermodernidade em que:

[...] nem a identidade, nem a relação, nem a história fazem realmente sentido, onde a solidão é sentida como superação ou esvaziamento da individualidade, onde só o movimento das imagens deixa entrever, por instantes, àquele que as olha fugir, a hipótese de um passado e a possibilidade de um futuro. (AUGÉ, 2004, p. 81-82)

A tessitura do passado e futuro sinaliza também a relação com a vida passada de Eulálio, no que antes era uma premonição, é agora uma confirmação da sua incomunicabilidade com as pessoas enquanto animal. No entanto essa posição dá a Eulálio “o poder absoluto, reivindicado pela consciência individual” (AUGÉ, 2004, p. 85), em narrar os fatos e perceber os contrapontos que dinamizam a narrativa. Estar à parte o coloca na mesma posição do poeta invisível que se perde na multidão, que, de passagem, vê a contemporaneidade.

Destarte, no corpo da osga, ele entra num estado de conformação feliz, porque goza da liberdade de devanear e observar o que se passa pela casa sem ser solicitado. O mundo diminutivo ressignificou sua existência e proporcionou a percepção à escuta total dos objetos e das pessoas. Da sua vida diminuta, Eulálio apreende e incorpora o movimento da vida de forma que vaza todo germe de dispersão. No segundo sonho, o mais enigmático, ele encontra-se com um rapaz perto de um muro escondendo entre as mãos,

[...], “Pirilampos”, segredou. Um rio deslizava atrás do muro, opaco, poderoso, arfando fatigado feito um mastim. Atrás dele começava a floresta, o muro, baixo, em pedra bruta, deixava ver a água negra, as estrelas correndo no seu dorso, a densa folhagem ao fundo – como num poço. (AGUALUSA, 2004, p.49)

Envolvido pela água negra do medo cósmico, ele confronta-se com imagens de uma natureza robusta e pesada como a de um mastim, um cão caracterizado pelas malhas de pele que lhe cobrem o rosto, dando-lhe uma face carrancuda e pesada. O tecido também dá assemelha-se com a superfície ondulante do rio e suas pequenas ondas sobrepostas. Como um animal cansado, o rio ainda é capaz de carregar na sua obscuridade reflexiva as estrelas. Defronte a ele está o desconhecido imerso no rotundo silêncio ancestral de todas as florestas, em profundidade não só do ilimitado e desconhecido, pois “a paz da floresta é para ele a paz da alma. A floresta é um estado de alma (BACHELARD, 2008, p. 192).

Aqui, todos os elementos fluem pelo espaço numa superfície integradora, como quando fala da pele do rapaz: “a pele dele era mais negra que a noite, lisa e lustrosa, e também nela, como no rio, rodopiava um carrossel de estrelas. Vi-o avançar pelo metal das águas até desaparecer.” (AGUALUSA, 2004, p.49). Nota-se que o negro e a luminosidade realçam-se mutuamente, já que o negro é a origem verdadeira e íntima das cores (BACHELARD, 2003). No encantamento da água como superfície mais metalizada do que espelhada, não deixa de ser o espaço metafórico do próprio ser (NABOZNY, 2012), visto que o

Dimensionamento além-superfície no espaço telúrico desdobram profundidades, prolongamentos que nos chegam pelas sensações táteis,

imagens, e que nos atraem para elevações e/ou profundezas da experiência do homem com a Terra. É também espaço da possibilidade, de linha de fuga, de liberdade [...]. (NABOZNY, 2012, p. 61-62)

Toda cor meditada por um poeta das substâncias imagina o negro como solidez substancial, como negação substancial de tudo que tinge a luz. (BACHELARD, 2003, 21- 22). O mistério escoa: “Ajoelhei-me na lama e o rio veio lamber-me as mãos. [...] O rio deitado aos pés da floresta, tinha finalmente adormecido” (AGUALUSA, 2004, p. 49). No início do livro, quando Eulálio ri ao admirar o crepúsculo, Félix coloca uma música e senta também diante da janela. A música é de uma cantora brasileira que fez sucesso nos anos 70, “‘Dora, a Cigarra – acalanto para um Rio – O grande Sucesso do Momento’. A voz dela arde no ar.” (AGUALUSA, 2004, p. 3), aponta Eulálio que sabe a letra de cor:

Nada passa, nada expira O passado é

um rio que dorme e a memória uma mentira multiforme

Dormem do rio as águas

e em meu regaço dormem os dias dormem

dormem as mágoas as agonias,

dormem.

Nada passa, nada expira

O passado é um rio adormecido parece morto, mal respira acorda- o e saltará num alarido.

(AGUALUSA, 2004, p. 4)

Na primeira estrofe há a permanência da associação da memória ao rio, esteio de água constante, mas nunca o mesmo: “multiforme”. A segunda estrofe contrasta com a primeira pois aborda o estado de letargia que os dias, mágoas e agonias assumem no rio dormente. Novamente, “nada passa, nada expira”: o rio sedimenta as experiências que dormem na lama dos dias, mas como abordado na terceira estrofe, assalta o presente numa agilidade e vigor que rompem a quase-morte do sono. Em síntese, de acordo com a letra

da música, as memórias não estão afundadas no esquecimento, mas são um corpo de água denso potente, tanto para permanecer adormecido quanto para perfurar o presente.

Toda essa projeção leva a crer que o rio do sonho está associado ao passado da música: ele sepulta no seu leito toda matéria, escondida da luz, mas sempre à espreita entre os dias e entre a memória, e, como um cão dormente, se perturbado ele logo põe-se a mover. Ironicamente, a noite o devolve ao mundo no trocadilho de um Deus trocista:

[...] quando vi emergir das sombras, mesmo à minha frente, um perdigueiro magro, com um pequeno rádio, desses de bolso, preso ao pescoço. O aparelho estava mal sintonizado. Uma voz de homem, profunda, subterrânea, lutava com dificuldade contra o tumulto elétrico. - O pior pecado é não amar - Deus, a voz macia de um cantor de tango: - Esta emissão tem o patrocínio das Padarias União Marimba. (AGUALUSA, 2004, p. 50)

Neste sonho é demonstrado que o inconsciente faz recortes das experiências vividas, associando lembranças e pensamentos num caldeirão, a princípio indecifrável, pois, assim como o sonho remete à música escutada, a frase “o pior pecado é não amar” remete à vivência humana de Eulálio. O passado personificado no cão, repete a frase que Eulálio lembra no final do capítulo “Alba”. Neste capítulo ele relata como perdeu a virgindade aos 18 anos no seu primeiro encontro traumatizante com a cafetina “Alba, Aurora ou Lúcia, à tarde, Dagmar, à noite Estela” (AGUALUSA, 2004, p. 35), que era justamente a amante do seu pai. No quarto dela coberto de espelhos, teve a apavorante visão da mulher com o seu pai do qual jamais esqueceu. Sobre esse fato, ele conclui que:

Ocorre-me às vezes um infeliz verso cujo autor não recordo. Provavelmente sonhei-o. Será talvez o refrão de um fado, de um tango, de algum velho samba que escutei em criança:

O pior pecado é não amar. (AGUALUSA, 2004, p. 36)

E de fato, Eulálio confessa que nunca amou uma mulher a não ser pela paixão da carne, o que o faz intrigar se isto não seria a causa do seu castigo. Ao que parece, este sonho evidencia que “[...] uma noite íntima que guarda nossos mistérios pessoais entra

em comunicação com a noite das coisas.” (BACHELARD, 2003, p. 20). Nessa dialética da intimidade,

Ao sonhar a profundidade, sonhamos a nossa profundidade. Ao sonhar a virtude secreta das substâncias sonhamos com nosso ser secreto. Mas os maiores segredos do nosso ser estão escondidos de nós mesmos, estão no segredo de nossas profundezas. (BACHELARD, 2003 p. 39)

O inconsciente, assim, conjuga-se com a natureza fluvial. É o mesmo rio que Eulálio visualiza quando Félix confessa que imagina cortar um rio lamacento dentro do seu velho barco, sua casa cheia de livros. Enquanto isso, no seu devaneio, Eulálio afirma: “podia ouvir a noite a deslizar lá fora, Latidos, garras arranhando os vidros. Olhando pelas janelas não me era difícil adivinhar o rio, as estrelas girando no seu dorso, aves esquivas escapando ente as ramagens.” (AGUALUSA, 2004, p. 24). É a tessitura interior que advinha o assombro do exterior num jogo de acontecimentos.

A maquinaria da noite é lembrada metonimicamente pelo animalesco, como que em recortes de perturbações próprias da noite. Destarte, podemos averiguar que “a imagem está em nós, incorporada em nós [...] Todo esse universo se anima no limite dos temas abstratos e das imagens sobreviventes, nessa zona em que as metáforas adquirem o sangue da vida e depois se apagam na linfa das lembranças.” (BACHELARD, 2003, p. 77). A sintaxe subjetiva de Eulálio é imagética, pois adquire, como no exemplo supracitado, o sangue da noite e seu pulsar, incorporado nas imagens hostis emolduradas pelo tempo em repouso.

Interessante notar que Padarias União Marimba é o nome de uma rede de padarias que uma das personagens chamado de “O ministro” possui e que foi construída com o dinheiro arrecado quando no pasado era “Mestre Marimba”, curandeiro que tratava espiritualmente as mulheres mal casadas e infelizes. Ele visita Félix com propósito de conseguir para si um passado ilustre, como descendente de Salvador Correia de Sá Benevides e combatente contra Portugal na guerra colonial. Segundo a “biografia” fajuta, ele fundou a padaria “com o firme propósito de contribuir para a reconstrução do país. Queria dar ao povo o pão nosso de cada dia” (AGUALUSA, 2004, p. 141). Escondendo, assim, que ganhou dinheiro com charlatanice e firmou seus negócios com acordos políticos e subornos.

Os ambientes dos sonhos seguintes serão em lugares de trânsito e encontros. No terceiro sonho ele encontra com Félix num café onde conversam sobre Buchmann e a literatura:

Sucedia isto num salão amplo, ao estilo art nouveau, com as paredes cobertas por austeros espelhos emoldurados a jacarandá. Uma claraboia, com um belo vitral representando dois anjos de asas abertas, deixava passar uma luz feliz. (AGUALUSA, 2004, p. 73)

Novamente, os anjos adornam a cena como um fragmento da interpretação de Eulálio frente ao espetáculo das luzes ao cair da tarde. Mas, a luz surge como protagonista neste espaço europeu, povoado de elementos católicos. Neste sonho, as pessoas sentadas ao redor só existiam para, segundo o murmurinho que produziam, dar ao local uma verossimilhança parcial da imagem de si que ele vê num desses espelhos e que destaca o “desdém mal disfarçado pela restante humanidade” (AGUALUSA, 2004, p. 73).

Como “dois cavalheiros, dois bons amigos, vestidos de branco num café elegante” (AGUALUSA, 2004, p. 74), eles conversam sobre a ficção de José Buchmann que a cada dia se apodera mais do corpo do estrangeiro, tornando-se mais verídico. Neste âmbito burguês, no qual ambos estão integrados aos seus hábitos e trajes, Félix conta que num debate entre um escritor da diáspora, que nas suas obras vendia os horrores do país para construir uma carreira no exterior, e outro poeta local, mais famoso pelo seu passado de revolucionário do que pela atividade literária (AGUALUSA, 2004) questionou:

– Nos seus romances você mente propositalmente ou por ignorância?” [...]

– Sou mentiroso por vocação –, bradou – Minto com a alegria. A literatura é a maneira que um verdadeiro mentiroso tem para se fazer aceitar socialmente.

Acrescentou a seguir, [...], que a grande diferença entre as ditaduras e as democracias está em que no primeiro sistema existe apenas uma verdade, a verdade imposta pelo poder, ao passo que nos países livres cada pessoa tem o direito de defender a sua própria versão dos acontecimentos. A verdade, disse, é uma superstição. (AGUALUSA, 2004, p. 75)

O espaço do sonho, que oportuniza o debate sobre a literatura, projeta o âmbito das belas-letras no qual a literatura estava associada às obras burguesas, aos dominadores da linguagem, pois era o ofício exclusivo dos intelectuais. Neste ambiente relacionado aos eruditos ele coloca uma discussão bastante atual: a literatura que circula pelas margens das metrópoles e a sua relação com as turbulências políticas das ex-colônias. Tal discussão atinge propriamente a relação política do escritor com o seu entorno de modo que dá visibilidade ao seu papel social transformador ou enganador.

Mas de fato, a literatura tem compromissos com a verdade? De acordo com Jacques Rancière, não. A literatura propõe estruturas inteligíveis das quais lê-se a sua relação com o conceito de democracia. Rancière argumenta que:

No princípio da democracia, há o próprio poder da literalidade. Entendamos com isso a aventura da vida banal agarrada pela escrita, arrancada, pelo poder de algumas palavras e algumas frases, à obscuridade do mundo onde são produzidos e reproduzidos os modos de viver e os corpos vivos. (RANCIÈRE, 1995, p. 13)

No fazer democrático, há um desvio da letra sem pai que as legitime, para os modos de ser, dizer e fazer de um povo. No trajeto da escrita, “há democracia – e política, consequentemente – porque há palavras sobrando, palavras sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de correspondência entre a ordem das palavras e das coisas.” (RANCIÈRE, 1995, p. 15)

Assim, as palavras vagam pelo sentido posto à disposição, selado na exterioridade sensível. Aberta a essa disponibilidade, qualquer coisa resultará materialmente a esta relação, em que a “a impropriedade nunca é senão imagem, a imagem nunca é senão sentido vindouro.” (RANCIÈRE, 1995, p. 32). Assim, “uma figura não é uma imagem a ser convertida em seu sentido, ela é um corpo que anuncia outro corpo, aquele que a realizará ao apresentar corporalmente sua verdade.” (RANCIÈRE, 1995, p. 48).

A fabulação excessiva do escritor da diáspora mostra essa arbitrariedade a qual anuncia o corpo delirante da literatura. Ao não ter compromissos com a realidade ele mostra a possibilidade de autodenunciar o terreno superlativo e democrático da literatura. Destarte, segundo Rancière, “o ‘próprio’ da literatura é a ausência de regra fixando uma

dupla relação: a relação entre o enunciador e seu enunciado, a relação entre o enunciado e aquele que o recebe.” (RANCIÈRE, 1995, p. 38). Ele pontua que:

O ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos. (RANCIÈRE, 1995, p. 28-29)

Então, a literatura efetua esta perturbação das hierarquias assim como a democracia coloca a diversidade em visibilidade. O sentido vai agregar-se à materialidade fugaz das coisas, pois, o destino do livro está em aberto. Tratando da definição de literalidade, Rancière ressalta que:

Há literatura segundo a maneira como se opera ou se interpreta essa relação do corpo com a letra, segundo a maneira como a lógica da literalidade pratica ou interpreta a ruptura das regras que dividem os domínios da realidade e da ficção, as formas da palavra comum e as da palavra trabalhada pela arte. (RANCIÈRE, 1995, p. 99)

Há literatura nos passados de Félix, que, de acordo com suas próprias palavras, faz “[...] uma forma avançada de literatura [...] também eu crio enredos, invento personagens, mas em vez de os deixar presos dentro de um livro dou-lhes vida, atiro-os para a realidade.” (AGUALUSA, 2004, p. 75). Portanto, os seus enredos rompe a realidade, bebendo da materialidade que lhe é oferecida e a recompondo a sua maneira.

No quarto sonho Eulálio encontra-se novamente com Félix, no entanto, não mais no espaço urbano aburguesado, mas sim partilhando do espaço aberto e natural de uma praia. Enquanto caminhava por uma passadeira suspensa que serpenteava pelas dunas, enquanto que o mar a direita dele “[...] era liso e luminoso, de um azul-turquesa, como só existem nos cartazes turísticos, ou nos sonhos felizes, e dele ascendia um aroma quente a algas e a sal” (AGUALUSA, 2004, p. 85). Do lado, vinha ao seu encontro Félix Ventura. Sentam-se num banco ali próximo, espreitados pelo mar calmo e preguiçoso, enquanto que a pele do albino sofria com o sol.

Félix o confessa que o problema dele não a exposição ao sol, mas a sua falta de melanina pois, na sua opinião, a natureza tem horror ao vazio, e questiona ao amigo: “ – Já reparou que tudo o que é inanimado descolora ao sol – mas o que é vivo ganha cor?” (AGUALUSA, 2004, p.86). A pergunta revela que ele compara a si como objetos inanimados que padecem ao contato com sol, enquanto que a matéria orgânica sobrevive, cresce e floresce. Esse ponto de vista tendencioso revela o desprezo por si mesmo, pois esta condição representa mal agouro em algumas crenças populares, na qual os albinos até são usados como sacrifício humano e provavelmente foi o motivo para ser abandonado ao nascer.

Portanto, revela que, assim como Eulálio, a sua relação com o mundo é tencionada. Ao fim do diálogo, observando a angústia do amigo, Eulálio o observa:

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