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O jardim dos espaços que se bifurcam

3 O BARCO: LITERATURA E NARRATIVA

3.1 O jardim dos espaços que se bifurcam

Os sonhos são desertos Com navios encalhados

(Paula Tavares)

Existe na palavra ambiguidade um sentido de espaço: do latim ambiguitas, vem de ambiguus, aquilo que tem duplo sentido, duvidoso, mutável, de ambigere, feito por ambi-, que significa ao redor, somado à agere, que significa levar a, atuar, guiar. A partir da presença de outro elemento, no espaço da palavra há dois caminhos que podem levar a sentidos diferentes. Ambíguo se faz a partir da presença da diferença que quebra a unidade, que muitas vezes o estilo metafórico de Agualusa o fará por espaços ambíguos, mostrando o seu falseamento, o seu simulacro. Mas também, ao girar ao redor, essa influência irá se mostrar na composição de outros elementos do romance.

Para Carlos Fuentes, o romance contemporâneo, “não mostra nem demonstra o mundo, senão que acrescenta algo ao mundo; cria complementos verbais do mundo”

(FUENTES, 2007, p. 19). O romance cria uma relação crítica com o mundo, e com ele mesmo, de forma que “[...] se oferece como fato perpetuamente potencial, inconcluso: o romance como possibilidade, mas também como iminência: o romance como criador de realidade” (FUENTES, 2007, p. 20). Portanto, a ficção é mestre em ser imigrante, mutável, girando ao redor si mesma e do mundo.

Dessa forma, a experimentação na literatura moderna evidencia o agenciamento de operações específicas. Para Maurice Blanchot (2011) essas operações são de natureza espacial, que tencionam a polaridade do espaço objetivo e subjetivo para pensar a condição do “fora”. Ao passo que também explora as relações entre literatura, infinito e descontinuidade, Blanchot pondera que, em relação a obra, o artista, “não sendo capaz de lhe por fim, é capaz, no entanto, de fazer dela o lugar fechado de um trabalho sem fim” (BLANCHOT, 2011, p. 12), no qual a escrita poética especializa. Sobre tal condição Blanchot é generosamente poético:

Aí onde estou só, o dia nada mais é do que a perda de permanência, a intimidade com o exterior sem lugar nem repouso. A vida faz aqui com que aquele que vem e pertença à dispersão, à fissura em que o exterior é a intrusão que sufoca, é a nudez, é o frio daquilo em que se permanece a descoberta, onde o espaço é a vertigem do espaçamento. Reina então o fascínio. (BLANCHOT, 2011, p. 23)

Como encarnação dessa fascinação, as atividades de espaçamento funcionarão como vetores de dispersão. Então, “na narrativa de ficção preservam-se as categorias básicas de tempo, espaço e sujeito, mas elas passam a ser utilizadas como dínamos, incentivos a que se indaguem, se simulem, se experimentem regimes de temporalidade, espacialidade e subjetividade”. (BRANDÃO, 2013, p. 210). E a arena do encontro dessa diversidade é a cidade moderna, pois a cidade e o livro são “dois dos mais representativos signos da modernidade ocidental.” (BRANDÃO, 2013, p.38). Ambos conjugam mobilidade, fixidez e diversidade, podem ser modelos que influem na narrativa contemporânea, “englobando os desdobramentos empíricos e imaginários dessa narrativa” (BRANDÃO, 2913, p.39). Mas sobre a crise da cidade e do livro cabe à modernidade esmiuçar o problema de apagamento e simplificação do destoante.

No ensaio “Jorge Luís Borges: a ferida de Babel”, Fuentes observa que na obra do escritor argentino, ambientada na Buenos Aires ditatorial, “a cidade e seus habitantes estão ausentes porque não cessam de desaparecer e não cessam de desaparecer porque são sequestrados, torturados, assassinado e reprimidos pelo aparato demasiado presente dos militares e da polícia.” (FUENTES, 2007 p. 46). O que torna o escritor, um “desesperado verbalizador de ausências” (FUENTES, 2007, p. 53), as quais verificará na obra de Borges ambientada em Buenos Aires.

Mas, além disso, há outra ausência que, não só Borges, mas os escritores latino- americanos procuram resolver: o fracasso do sonho europeu de tornar a América uma comunidade cristã perfeita. Para Fuentes, esta foi uma “terrível operação de transferência histórica e psicológica: a Europa se liberta da necessidade de cumprir sua promessa de felicidade, mas a impõe, sabendo de sua impossibilidade, ao continente americano” (FUENTES, 2007, p. 47). Este mesmo projeto insípido recaiu também nas colônias no continente africano, perpetuando a mesma ausência. Tais projetos partilham do mesmo desafio e da incógnita de construir uma sociedade civil, mesmo provenientes da violência de desmantelamento do colonialismo.

Para denunciar esse jogo de ausências, Agualusa projeta Angola como um duplo, um fac-símile da democracia baseada no modelo estrangeiro e por isso, herdeira de todos os seus vícios, como o totalitarismo. Então, essa democracia é o resultado da loucura, da desordem do comunismo que se estabeleceu e não vingou como sistema. (FUENTES, 2007). Assim, Agualusa, sabendo dessa multiplicidade espalha a simbologia do duplo e do falseamento ao longo do romance, pois toda palavra é espaço e “a linguagem literária coloca em primeiro plano a sensorialidade dos signos que a compõem; concedendo-lhes o poder de se projetarem como espaço.” (BRANDÃO, 2013, p. 254).

Como exemplo da fluidez do que pode ser considerado verdadeiro ou não, Agualusa cita as ameias falsas do Castelo de São Jorge, em Portugal: “O que hoje há de falso no Castelo de São Jorge é que o torna verossímil. [...] Se fosse autêntico ninguém acreditaria nele” (AGUALUSA, 2004, p. 139). O que é falso, mas representativo, é que dá o sentido de verdade ao castelo, logo é o que dá a ideia do castelo como representação do seu tempo.

Esta concepção apresenta uma operação particular na personagem de José Buchmann. Na perspectiva de Eulálio, quando ele entra pela primeira vez na casa de

Félix, foi como se anoitecesse por dentro da residência, por causa da sua presença desconhecida e antiquada, da qual, a fala soava como a “soma de pronúncias diversas, uma subtil aspereza eslava, temperada pelo suave mel do português do Brasil” (AGUALUSA, 2004, p.16). Sem anunciar o seu nome, ele logo é chamado de estrangeiro. Tudo nele corresponde a essa alcunha, pois sua figura é irônica assim como as suas falas. E, de fato, ele estava à procura de enganar o passado comprando uma ficção que realmente acreditasse, mesmo que pelos rastros mais pobres dados e inventados por Félix: uma fotografia do avô, Cornelio Buchmann, uma fotografia do pai e da mãe, e uma aquarela da mãe publicada numa edição antiga da Vogue numa matéria sobre a caça na África Austral.

E seis ou sete meses depois não é o mesmo homem, é uma nova persona que vai aos pouco se angolanizando. Eulálio o percebe, observando que “algo, da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem operando no seu íntimo. É talvez, como nas crisálidas, o secreto alvoroço das enzimas dissolvendo órgãos.” (AGUALUSA, 2004 p. 59). Seu sotaque, as roupas estampadas e sapatos esportivos estão mais luandenses, assim como o jeito mais expansivo: o riso já é angolano.

No capítulo “ilusões’ Eulálio faz interessantes analogias. Ao ver dois rapazes imitando o canto das rolinhas enquanto roubavam frutos no quintal de Félix, “exorcizando com o vigor do seu canto as sombras derradeiras” (AGUALUSA, 2004, p. 65), ele julga que se não tivesse visto o episódio talvez julgasse que as rolinhas estavam arrulhando na madrugada e não os rapazes a saquear os frutos. A mesma conclusão é direciona a José Buchmann:

Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira. (AGUALUSA, 2004, p. 65)

A transformação de Buchmann em relação à sua identidade e ao seu passado corresponde a fixação e separação quanto aos objetos que fotografa. Da sua persona que neutraliza tudo, ele encarna o passado inventado e desenrola o fio da sua história

inventando espaços e coincidências, sem deixar de deslizar o seu xadrez ensanguentado de mentiras. Consequentemente, “havia em todas as fotografias algo de crepuscular. Era o fim, ou era quase o fim, só não se percebia de quê” (AGUALUSA, 2004, p. 61). Num dos sonhos de Eulálio, Buchmann compara a sua manobra ao do camaleão para enganar as vítimas:

Diz falar inglês nos seus vários sotaques, dialetos do alemão, francês, italiano, árabe e romeno. Consegue até se comunicar com os camelos pelo blaterar, com os javalis pelo arruar, zunzum, o grilar, até o crocitar. Segundo ele num jardim deserto seria capaz de discutir filosofia com as magnólias (AGUALUSA, 2004, p. 133).

Considerando que, como fotógrafo de guerra ele morou em diversos países, Buchmann está para a concepção superlativa de identidade flutuante do ser contemporâneo. Em consonância, a Cidade do Cabo, local de uma das suas visitas à procura de Eva Miller, passa a ser um suplemento ao mostrar o falseamento de forma diferente. Buchmann, ao falar-lhe da cidade, inicia o relato da seguinte forma:

[...] É um lugar estranho. Imagine um grande shopping center, com palmeiras altas decorando os salões. Palmeiras são belíssimas. São de plástico, mas só é possível perceber isso quando tocamos nelas. A Cidade do Cabo lembra-me uma palmeira de plástico. Cidade impressionante, digo-lhe eu, muito limpa, muito arrumada. É um logro no qual apetece acreditar. (AGUALUSA, 2004, p.147)

Ou seja, não é só quanto ao personagem, à localidade que também engana o olhar, pois o que ele retrata é uma cidade decorativa que angaria do capitalismo uma imagem de estabilidade. Há também o duplo na descrição do apartamento de Eva Miller, mãe fictícia de Buchmann. Nas palavras de Félix, segundo o relato de um amigo que a encontrou em Nova Iorque, ela tinha as paredes cobertas de espelhos:

[...] eram artefatos de feira popular, cristais perversos, concebidos com o propósito cruel de capturar e distorcer a imagem de quem quer que se atravessasse à sua frente a alguns fora dado o poder de transformar a

mais elegante das criaturas num anão obeso; a outros, o de esticar. Havia espelhos capazes de iluminar uma alma opaca. Outros que reflectiam não a face de quem os encarava, mas a nuca, o dorso. Havia espelhos gloriosos e espelhos infames. Assim, sempre que entrava no seu apartamento, Eva Miller não se sentia sozinha. Entrava com ela uma multidão. (AGUALUSA, 2004, p. 45)

Assim como as palavras, os espelhos têm a propriedade de revelar a materialidade, mas também de enganar a percepção ao seduzir o olhar e mesmo de distorcê-lo. A imagens brilham para nós, mas, como observadores, nós é que a criamos como imagens possíveis. Então, o duplo implica na coexistência de uma face substancial e uma face que mascara o vazio, o vazio impossível, vazio absoluto, vazio como potencialidade são ativados pela vocação metafórica que é projetada em certos campos semânticos e de conhecimento, de forma que todos esses vetores compõem a noção de vazio (BRANDÃO, 2013).

Para Brandão, “paradoxalmente, é por terem consciência absoluta de tal ausência, e por a tomarem como ponto de partida que essas sombras, esses espectros incorpóreos adquirem estranhíssimo, inexplicável, fantasmagórico poder: eles nos tocam. Por seu excesso de morte, eles vivem.” (BRANDÃO, 2013, p. 243-244). Ou seja, é uma fantasmagoria que serve bem à composição da personagem para Félix distrair o estrangeiro.

O falseamento se repete pela história do presidente falso contada por Edmundo Barata Reis, que corrobora com a ideia de democracia falsa, pois, ele afirma: “Temos um governo de fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia.” (AGUALUSA, 2004, p. 160). Segundo ele, um sósia era treinado para substituí- lo vez ou outra, até tomar o seu lugar por completo. Bastava comparar filmagens e fotos para ver as mudanças de traços e comportamentos. Ele explica que:

O velho nunca aparecia em público. Eram os duplos dele quem apareciam. Aquele, o três, foi sempre o melhor. [...] O três era um caso especial, um talento raro, um verdadeiro actor, assisti à formação dele. [...] Ficou perfeito ou quase – o maudiê tinha um problema, quero dizer, tem um problema, é canhoto. Até nisso parece com a imagem do presidente no espelho. (AGUALUSA, 2004, 161)

Novamente, a referência ao espelho metaforiza a trapaça arquitetada para esconder do real. Assim, expulso à marginalidade, o objetivo da personagem Edmundo Barata é escancarar essas feridas da democracia.

Nesta análise não poderíamos deixar de comentar como Angola e, consequentemente Luanda, são retratadas neste contexto. A primeira citação relativa a angolanidade aparece na introdução da personagem Esperança. Ao observá-la, Eulálio comenta que tem aprendido muito sobre a vida em Angola, “que é a vida em estado de embriaguez, ouvindo-a falar sozinha, ora num murmúrio doce, como quem canta, ora em voz alta, como quem ralha, enquanto arruma a casa” (AGUALUSA, 2004, p. 11).

A voz de Esperança, oscilante como o mar, lembra da origem do nome Luanda, que refere-se aos trabalhos no mar, da rede, dos recifes e dos búzios. Segundo Tânia Macêdo, “[...] Luanda traz inscrita no traçado de suas ruas, nos edifícios mais antigos e na forma de ocupação do espaço urbano, a história do colonialismo português na África. É, portanto, cidade emblemática que permite pensar também no Império colonial português” (MACÊDO, 2008, p. 15). Sob o governo português, foi projetada para ser um núcleo do sonho europeu na África, que nos primeiros tempos da sua fundação “[...] nasceu para ser uma base de rapina. Um acampamento de trânsito, fator que vai marcar indelevelmente o seu caráter nos três séculos seguintes.” (PEPETELA, 1990, p. 18, apud, MACÊDO, 2008, p. 80).

Em 1872 Luanda recebeu o etnónimo de "Paris da África" (YETWENE, 2017), assim como a Argentina na América Latina. No entanto, gozou de muito menos glamour. No começo do século passado, foi colônia penal, para a qual eram enviados os condenados por delito comum e presos políticos no regime salazarista. Depois do desmantelamento da guerra de libertação e da guerra civil, vive hoje em prosperidade econômica, o que resulta no apagamento do seu passado conflituoso com a reconstrução da capital feita por construtoras portuguesas, brasileiras e chinesas.

Com uma história entre construções e destruições, a cidade posteridade do núcleo dominante da elite portuguesa sempre foi intocável, a qual corresponde uma região especial na capital: é a região da baixa, a cidade colonial, por onde o pai adotivo de Félix, andava malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. (AGUALUSA, 2004). De acordo com essa descrição, ele sustenta a figura

do bom vivant, flâneur, ex-funcionário colonial e alfarrabista, que gozava de tempo e dinheiro, como o próprio diz: “todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio.” (AGUALUSA, 2004, p. 25). Mas, não é gratuitamente que alguém vive bem e goza de tempo, , principalmente num contexto colonial, no qual o luxo de uns foi comprado com as vidas de tantos outros escravos.

Como polo de exportação de escravos para outras colônias, a cidade arquitetou as suas ausências. Essa diferença resultou na divisão da cidade em diferentes segmentos, que são projetados na escrita dos últimos cinquenta anos. De acordo com Macêdo, existe uma Luanda da escrita, que faz parte de um projeto dos escritores angolanos como “um processo de paulatina reafricanização de Luanda, [...], corresponderia, no plano político, a construção não apenas da Nação, mas também de uma especificidade nacional, ou seja, da ‘angolanidade’”. (MACÊDO, 2008, p. 16). Assim, a cidade transforma-se em signo de uma ideologia, de uma cultura, na qual os escritores dão forma artística a um projeto nacionalista, que se materializa na criação de um espaço ficcional na literatura angolana marcado pelo imaginário urbano: periferia; cores, ritmos, trabalhadores.

Politizar os espaços implica constituir espaços públicos e as suas diferenciações de centro e periférico por mecanismos coletivos de identificação e pertencimento. A tecnologia diminuiu essa distância em que tudo se sobrepõe, perde seus limites, vira um plano fora do espaço e do tempo, “tudo é estrangeiro e nada o é” (BRANDÃO, 2013, p. 40). Sempre houve periferias, mas na colonização ela é traçada mesmo na distância entre a colônia e metrópole: o todo colonizado é a periferia do colonizador, a qual estabelece nichos dentro dessa colônia.

Trazer esses elementos tem como objetivo dar voz às marcas da cidade que era o centro das ações nacionalistas, onde, por entre as suas ruas e musseques, a resistência contra a colonização nasceu. (MACÊDO, 2008). A relação literatura/história tenciona abordar questões ainda não digeridas, em que a escrita é uma forma atuante de desmascarar suas raízes e suas marcas. Evocando o Angelus Novus de Walter Benjamin, Carlos Funtes argumenta que assim, como o escritor, “a meditação do Anjo sobre o passado redime a cidade ao vê-la em ruínas; e estar em ruínas significa ter sobrevivido e poder mostrar-nos seus ossos despojados. Sua ruína é sua eternidade e, portanto, sua perfeição.” (FUENTES, 2007, p. 133). Ou seja, referenciar Luanda ao fotografar suas ruinas, inserir a casa num dos bairros pobres, mas ao mesmo tempo em comunicação com

a contemporaneidade movente, expõe os seus combates, as suas marcas indeléveis que falaram por ela silenciosamente.

Se o espaço se politiza entre “subjetividades individuais e referências coletivas, o tratamento do espaço não prevê que se dissocie de sua materialidade uma dimensão intensamente simbólica” (BRANDÃO, 2013, p. 31), que estão intrincadas na composição simbólica do espaço:

O ‘espaço da identidade’ sem dúvida, é marcado não apenas por convergência de interesses, comunhão de valores e ações conjugadas, mas também por divergência, isolamento, conflito e embate. Se, como o espaço, toda identidade é relacional, pois só se define na interface com a alteridade, seu principal predicado é intrinsecamente político. (BRANDÃO, 2013, p. 31)

O espaço, como pertencente ao tecido social de identificações relacionais, é sinônimo de cultura no sentido de que corresponde ao movimento fragmentário em que as identidades e as subjetividades são porosas a uma determinada geografia na qual mesclam projeções e funções.

Said, desviando da tentativa de generalizações de um texto, autor ou movimento, afirma que “cada texto tem seu gênio próprio, assim como cada região geográfica do mundo, com suas próprias experiências que se sobrepõem e suas histórias de conflitos que se entrelaçam.” (SAID, 1995, p. 104). Então:

O sentido geográfico faz projeções – imaginárias, cartográficas, militares, econômicas, históricas ou, em sentido geral, culturais. Isso também possibilita a construção de vários tipos de conhecimento, todos eles, de uma ou outra maneira, dependentes da percepção acerca do caráter e destino de uma determinada geografia. (SAID, 1995, p. 118)

Portanto, ao considerar o problema do espaço como imbricação de planos (BRANDÃO, 2013), é essencial verificar como estas representações são construídas, quem as faz circular, do que são compostas, visto que é preciso debater o que se entende por cultura fora dá lógica eurocêntrica e seus valores de dominação. Assim, cada plano permitirá leituras diversas, recortes que envolvem perspectivas abertas à

interdisciplinaridade e multidisciplinariedade, que corresponde o seguinte apontamento de Said:

A experiência cultural, ou na verdade toda forma cultural, é radicalmente, quintessencialmente hibrida, e se no ocidente o costume tem sido, desde Immanuel Kant, isolar o campo estético e cultural do domínio mundial, agora é tempo de voltar a uni-los. Não é nada simples, pois pelo menos desde o final do século XVIII, creio eu, a essência da experiência no Ocidente tem sido não só implementar uma dominação a distância e reforçar a hegemonia, como também dividir os âmbitos da cultura e da experiência em esferas aparentemente isoladas. (SAID, 1995, p. 95)

Nessa conjuntura, o romance é como uma varanda no sentindo agualusiano: a sua função é ser visitado e estar aberto para as sinfonias de heterogeneidades sempre à passagem e ao mesmo tempo à contemplação. Todas as fronteiras são corruptíveis e o objeto literário por si só, pode ser um desbravador delas. Por isso a varanda, assim como a casa não possui fronteiras: “limite é aqui utilizado como parâmetro de instabilidade – consonantemente, pois, à literatura que se lança na aventura de perturbar as determinações da espacialidade literária.” (BRANDÃO, 2013, grifo do autor, p. 261)

Agualusa torna-se um griot da atualidade, no caso, denunciando o seu falseamento. Ele participa de uma proposta dada por Said quanto às intervenções no espaço pós-colonial:

Segundo Hegel, Marx e Lukács, Smith define a produção desse mundo cientificamente ‘natural’ como uma segunda natureza. Para a imaginação anti-imperialista, nosso espaço doméstico na periferia foi usurpado e utilizado por estrangeiros para seus próprios fins. Portanto, faz-se necessário buscar, mapear inventar ou descobrir uma terceira natureza, não prístina e pré-histórica [...], mas derivada das carências do presente. (SAID, 1995, grifo do autor, p. 285)

Além disso, Said coloca a possibilidade de “não aceitar a política da identidade tal como é dada, mas mostrar como todas as representações são construídas, qual é sua finalidade, que são seus inventores, quais são seus componentes.” (SAID,1995, p.385)

Numa entrevista à Filipa Ramos (2017), o artista plástico de angola, Fernando Alvim7, afirma que mesmo vivendo no estrangeiro, o angolano consegue transmitir a angolanidade, pois o angolano é móvel desde os tempos da escravatura. Assim, Luanda é móvel por essência pois está inserida numa Angola aberta e itinerante. Em José Eduardo Agualusa, como escritor em constante trânsito, está os marcos da sua ligação à terra são

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