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Figurações contemporâneas do espaço em José Eduardo Agualusa

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM. FIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO ESPAÇO EM JOSÉ EDUARDO AGUALUSA. ISABELA HELENA RODRIGUES COELHO. NATAL 2017.

(2) ISABELA HELENA RODRIGUES COELHO. Figurações contemporâneas do espaço em José Eduardo Agualusa. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.. NATAL 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes CCHLA Coelho, Isabela Helena Rodrigues. Figurações contemporâneas do espaço em José Eduardo Agualusa / Isabela Helena Rodrigues Coelho. - 2017. 109f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, 2017. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.. 1. Espaço e literatura. 2. Agualusa, José Eduardo, 1960-. O vendedor de passados. 3. Políticas da escrita. I. Gonçalves, Marta Aparecida Garcia. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 911.3:316.47.

(4) ISABELA HELENA RODRIGUES COELHO. Figurações contemporâneas do espaço em José Eduardo Agualusa. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.. BANCA EXAMINADORA. _____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves ORIENTADORA Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). _____________________________________________________________ Prof. Dr. Mauro Dunder Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). _____________________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Fernandes de Oliveira Neto Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA).

(5) À memória do meu pai, Orlando Coelho, que sempre me mostrou o caminho do estudo, da paciência, da compaixão e do amor incondicional..

(6) AGRADECIMENTOS. À minha mãe, pela paciência e dedicação descomunal em me ajudar nos momentos mais difíceis e ao meu irmão, por manter a nossa união sempre firme no nosso percurso de lutas. À minha orientadora, Marta Gonçalves, que na graduação, na iniciação científica e no mestrado me estimulou a vencer meus limites e buscar novos caminhos. Às profundas amizades, os irmãos e irmãs de coração que tiveram paciência, acolhimento e respeito diante das ausências que a escrita requer. Sei que estão torcendo por mim e estão ansiosos pela finalização dessa etapa. À eterna turma X-barra, turma de guerreiros e guerreiras, contraventores que eu continuo a adorar como pessoas. Fui feliz para sempre no nosso convívio. Aos companheiros e companheiras do mestrado, pelo convívio harmonioso e pelas as discussões profícuas onde reconhecemos nossos desafios, adversidades e limitações. Aos professores do mestrado, que realmente contribuíram para a minha formação. Em especial à Tania Lima por ter me dado a mão de forma tão especial. Aos professores Mauro Dunder e Ana Laudelina Ferreira Gomes pelas contribuições no momento da qualificação. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração deste trabalho..

(7) RESUMO. Considerando a representação espacial como ato político de interferência, dinamização, provocação e desestabilização, neste trabalho procuraremos investigar na obra O vendedor de passados (2004), de José Eduardo Agualusa, a presença de vetores espaciais por diferentes abordagens. Como introduz Brandão (2013), o conceito apresenta uma adaptabilidade particular na teoria literária, por isso objetivamos traçar um recorte que envolva a análise fenomenológica (BACHELARD, 2008), a semiótica (BARTHES, 2003a), a da geografia humanista (HOLZER, 2008), entre outras. Como ponto rotacional prenhe de elucubrações sobre o espaço, também investigamos uma conversação entre outras formas de arte, como a fotografia (BARTHES, 2012). Nessa tônica, a literatura possibilita o que Jacques Rancière denomina “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005): a refração das sensibilidades que, pela diversidade, fundam uma estética democrática, pois estes espaços perfuram o “lugar-comum” fazendo circular heterogeneidades inerentes às relações sociais, ou seja, são espaço de ressignificação (FOUCAULT, 2009). Portanto, enquanto a escrita literária provoca fissuras pelo poder alquímico, as figurações espaciais questionam territórios simbólicos e identitários no romance.. Palavras-chave: Espaço e literatura, José Eduardo Agualusa, O vendedor de passados, Contemporaneidade, Políticas da escrita..

(8) ABSTRACT. Considering the spatial representation emerges like a politic act of interference, dynamisation, provocation and destabilization, in the present work we pursue investigate in the book O vendedor de passados (2004), from José Eduardo Agualusa, the presence of spatial vectors in different approaches. As Brandão introduce (2013), the concept presents a particular adaptability in literary theory, therefore we aim to draw a section that involves a phenomenological analysis, (BACHELARD, 2008), the semiotic (BARTHES, 2003a), the human geography (HOLZER, 2008), among others. As a rotational point filled with lucubration about the space, we also investigate a conversation with others forms of art, like the photography (BARTHES, 2012). In this substance, the literature will possibility Jacques Rancière’s “Distribution of the Sensible” (RANCIÈRE, 2005): the refraction of sensibilities that, through diversity, establish a democratic aesthetic in unity, because this spaces puncture the commonplace making circulate the heterogeneities inherent to social relationships, in other words, they are spaces of resignification (FOUCAULT, 1984). Therefore, while the literary writing provokes fissures by the alchemic power, the space figurations questioning symbolic and identity territories.. Key Words: Space and literature, José Eduardo Agualusa, The book of chameleons, Contemporaneity, Politics of literature..

(9) 9. SUMÁRIO. 1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................10 2 A CASA.....................................................................................................................20 2.1 Corpo de refúgio: perspectiva, tempo e espaço...................................................33 2.2 Os sonhos.............................................................................................................44 3 O BARCO: LITERATURA E NARRATIVA..........................................................57 3.1 O jardim dos espaços que se bifurcam................................................................66 4 HABITAR O OLHAR: LITERATURA, FOTOGRAFIA E CONTEMPORANEIDADE......................................................................................77 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................98 REFERÊNCIAS......................................................................................................102 ANEXOS.................................................................................................................107.

(10) 10. Through this place of love move (with brightness of peace) all places. (E. E. Cummings) [...] E assim nos precipitamos e queremos cumpri-lo. Queremos contê-lo em nossas simples mãos, no olhar mais intenso e no coração silencioso. Queremos sê-lo. – A quem dá-lo? Melhor seria guardar tudo para sempre… Para o outro reino – ai – o que levar? Não o contemplar, aqui com paciência apreendido, nem o aqui acontecido. Nada disso. Portanto as dores. Portanto o peso da existência, portanto a longa experiência do amor, – portanto: tudo o que é indizível. Mas, depois, entre as estrelas, o que dizer? Indizíveis, elas o são muito mais. O andarilho não traz, das encostas das montanhas, um punhado de terra, indizível para todos, mas uma palavra adquirida, pura: genciana amarela e azul. Talvez para isto estamos aqui; para dizer: casa, ponte, fonte, porta, jarra, árvore, janela, – ou ainda: coluna, torre… mas dizer – entende bem, dizê-lo assim – o que mesmo as coisas nunca imaginariam ser, intimamente. Não será o secreto estratagema da terra, o de pressionar os amantes, para que os seus sentimentos, um a um, fossem de júbilo? Soleira: o que significa para dois amantes que eles usem, também, a soleira gasta da porta após os muitos outros que por ela já passaram e, antes do que ainda virão…, levemente. Rainer Maria Rilke “It’s coming through a hole in the air From those nights in Tiananmen Square It’s coming from the feel That this ain’t exactly real Or it’s real, but it ain’t exactly there From the wars against disorder From the sirens night and day From the fires of the homeless From the ashes of the gay Democracy is coming to the USA It’s coming through a crack in the wall” Leonard Cohen – Democracy.

(11) 11. 1. INTRODUÇÃO. Quadros, livros e jornais velhos, várias fotografias antigas espalhadas nas paredes, romances de autores desconhecidos abarrotam corredores e cômodos, fitas cassete organizadas em ordem alfabética formam pilhas e mais pilhas. A voz de um vinil antigo corta o silêncio e o tempo. Nas páginas do livro O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa, o espaço interpela a unidade da casa de Félix Ventura, um albino em terras angolanas, que ganha a vida vendendo passados à pessoas convictas de que podem fundar uma nova vida. Como um genealogista moderno e clandestino, ele cria passados com mães e pais humildes ou gloriosos para preencher futuros mais prósperos, heroicos ou menos fúnebres, já que muitos foram assolados pelo recente processo de descolonização e subsequente guerra civil em Angola. É nesse panorama social e político que a casa assiste os avanços da memória, ao mesmo tempo em que desperta os seus valores de dispersão. Não só como espaço que incorpora a história de Angola, a casa que habita é permeada de identidades heterogêneas formando uma epiderme por onde passeia Eulálio, a osga1 ̶ batizado por Félix com esse nome pois tem o verbo fácil (AGUALUSA, 2004) ̶ , que respira suas histórias e nos transporta para a perspectiva clandestina de observador diminuto e participante indireto. Quando um peculiar estrangeiro entra pela sua porta e pede para criar um passado angolano, Félix não suspeita que o passado que criará com fotografias e certidões falsas (apesar dos protestos do genealogista) trará coincidências absurdas e encontros que transformaram para sempre a sua vida. O passado vendido a altos custos era o de José Buchmann, fruto de um colono, Mateus Buchmann, caçador famoso em Chibia e guia por entre as savanas, com uma artista americana chamada Eva Miller, que havia desaparecido depois de uma viagem à Cidade do Cabo, deixando o filho aos cuidados do pai. Na ausência da figura paterna, o filho ganha o mundo como fotógrafo profissional. Todo este enredo justifica o porquê de um caucasiano com sotaques e trejeitos estrangeiros aparentar estar entranhado em Angola. Consequentemente, quanto mais Buchmann. 1. O animal em questão é uma rara lagartixa oriunda do deserto da Namíbia a qual possui a pele listrada como um tigre. Além disso, emite um som como um riso humano e pode viver duas décadas ou mais. (AGUALUSA, 2004)..

(12) 12. investiga este passado, cada vez mais ele se transforma num angolano superlativo, assumindo traços que antes não possuía. Enquanto busca pela mãe desaparecida, José Buchmann fotografa os lugares e leva à Félix as provas de que a sua história comprada era verossímil: existia uma lápide em Chibia com o nome de Mateus Buchmann, vestígios da mãe em Nova Iorque, suas aquarelas na Cidade do Cabo e, por fim, um recorte de jornal com a notícia de sua morte na mesma cidade. Tais evidências escandalizam Félix pois, primeiramente, ele desobedecer a sua ordem de jamais procurar comprovar seu passado e por apresentar provas materiais do que encontrou. Entre as coincidências avassaladoras está a aparição da fotógrafa Ângela Lúcia e, posteriormente, do morador de rua Edmundo Barata Reis, que desperta o interesse de Buchmann enquanto fotografa as ruas de Luanda. Com uma cabeleira e uma barba longa e vestindo uma camisa surrada com o símbolo socialista estampado ele “Lembra um príncipe antigo caído em desgraça” (AGUALUSA, 2004, p. 105) nas fotografias pelas partes arruinadas da cidade. Aparentemente, a sua decadência orgulhosa atrai a curiosidade de Buchmann que o leva à casa de Félix. Lá descobre-se que, assim como Félix, ele fora aluno do professor Gaspar, que procurava resgatar palavras antigas colocando-as de volta na vida e em sala de aula. Isto é descoberto porque “os seus alunos começaram por utilizar esses vocabulários, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. (AGUALUSA, 2004, p. 26). Ele fora também ex-agente do Ministério da Segurança do Estado, “excidadão exemplar, expoente dos excluídos, excremento existencial, excrescência exígua e explosiva. Em duas palavras: vadio profissional” (AGUALUSA, 2004, p. 157), segundo o mesmo. Um comunista, que:. [...] acusado de tentar estabelecer em Luanda uma rede bombista, passou sete anos no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. [...] Poucas semanas após a independência já o conheciam, amigos e inimigos, sempre foram mais estes do que aqueles, como o senhor Sou-Todo-Ouvidos. Dois anos em Havana, nove meses em Berlim (Leste), outros seis em Moscou, e assim, temperado o aço, retornou à trincheira firme do socialismo em África. (AGUALUSA, 2004, p. 158).

(13) 13. A teimosia e a convicção fervorosa no comunismo o desviou do novo ritmo de Angola, mais democrático e capitalista, que “passou a negar o passado socialista do país” (AGUALUSA, 2004, p. 158). Vivia nas ruas há anos a denunciar que o presidente era uma farsa pois o haviam substituído por um sósia. Com pista que ele dá, Félix e Lúcia começam a verificar nas fitas cassetes antigas que Félix coleciona estes e outros indícios e comprovam a tese. Nesse dia, Edmundo surpreende Félix e Ângela no meio da madrugada. pois. temia. ser. perseguido. por. possivelmente. seus. inimigos.. Surpreendentemente é Buchmann que o segue com uma arma ameaçando de o matar. Desse incidente, é revelado que o passado de Edmundo, Buchmann e Ângela estavam conectados já há muito tempo. Buchmann é na verdade Pedro Gouveia, contrarrevolucionário que foi capturado juntamente com sua mulher grávida ao tentar escapar do país. Marta, que era angolana, morreu no parto depois de ser torturada por Edmundo. Pedro, criado em Angola, foi preso e depois exilado em Portugal, seu país de origem. Nunca mais retornou por acreditava que a mulher e a criança estavam mortas. Depois de trabalhar em um jornal, decolou na carreira de fotógrafo de guerra ao redor do mundo. Um dia, numa tarde em Lisboa, “[...] um ponto no mapa entre dois pontos, um lugar de passagem. Num restaurante dos Restauradores” (AGUALUSA, 2004, p. 191) encontra um antigo camarada que lhe fala de Ângela Lucia, sua filha que sobreviveu à tortura. Esta, quando criança, depois de descobrir sobre o seu pai verdadeiro, também torna-se fotógrafa e nômade. Assim, Pedro volta à Angola para encontrá-la e tentar compensar o seu abandono involuntário. Por acaso – uma das marcas mais frequentes no texto agualusiano –, encontra o cartão de visitas de Félix no hotel e decide comprar uma nova personalidade para se disfarçar. Ao descobrir verdade sobre o seu passado, Ângela mata Edmundo. Félix o enterra no quintal, no qual nasce uma buganvília vermelha – Arbusto nativo da América do Sul, conhecido também por primavera, três-marias, sempre-lustrosa, santa-rita, ceboleiro, roseiro, pau-de-roseira e flor-de-papel (PENA, 2015) –. Depois disso, Buchmann e Ângela desaparecem no mundo. Buchmann, posteriormente, confessa que muitas das outras coincidências foram artimanhas para fazer Félix acreditar na história que inventou. Enquanto que Ângela, periodicamente, envia a Félix fotografias das luzes que captura por onde anda com o lugar e a data escritos. Pregados num mapa colado a parede, “o conjunto forma uma espécie de vitral [...]. Predominam os tons de azul.” (AGUALUSA, 2004, p. 182). O livro termina com a primeira página do diário que Félix decide escrever depois.

(14) 14. de encontrar Eulálio morto ao pé da sua cama. No diário ele conta que, pelo percurso dos postais, ela deve estar em Fortaleza, para a qual planeja partir ao seu encontro. Nessa estética de virtualidades falantes, a prática política se imiscui no que o filósofo Jacques Rancière denomina “partilha do sensível”: a condição de evidenciar o comum na partilha de espaços, tempos e tipos de atividades sem se imporem como o uno, mas identificar, na heterogeneidade, a presença, o traço, a palavra daquele que pronuncia como recorte do “visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005, p. 16). É preciso ressaltar que estética é aqui concebida como um “regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações [...]” (RANCIÈRE, 2005, p. 13). Desta forma, Félix e Eulálio são partícipes de um diálogo que encontra no espaço o seu prisma e sua resposta: a dispersão democratizante da escrita circulando por toda a parte sem saber a quem deve ou não falar (RANCIÉRE, 2005). Logo, a ficção tende menos para o individualismo e assujeitamento, e mais para a partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005), denunciando a imbricação entre estética e ética que pode proporcionar o encontro da heterogeneidade com o comum, o democrático. Assim, neste trabalho, analisamos o espaço de forma a considerar a variabilidade da categoria espacial, já que o texto literário, como linguagem é um dispositivo de orientação, modelação e captura (AGAMBEN, 2009), mas também desloca em si uma profanação específica: a liberdade de colocar a subjetivação, a indeterminação, na qual suas latências são mais apreensíveis. Mediante esta interface, a literatura oportuniza a desconstrução e ressignificação de conceitos já cristalizados quanto ao espaço, evidenciado pelo tramitar de sensibilidades que se comunicam em códigos “espacializantes” (BARTHES, 2004a). A imagem poética forma espaços de linguagem seja no verso, seja na fala comum. Se a tendência da linguagem é fixar, centralizar, a imagem poética é um convite à imaginação, que retira o ser do automatismo. Para Gaston Bachelard, a imagem propõe um mundo novo, não uma análise, nem uma crítica. É uma abertura ao devaneio, mas também a um tipo de consciência sobre o ser e o mundo, em que a imagem faz a cooperação entre o mundo sensível e o imaginário, numa fusão de contrários em que “[...] é preciso que ela integre.

(15) 15. uma irrealidade. É preciso que todos os valores tremam, um valor que não treme é um valor morto.” (BACHELARD, 2008, p. 73). A oscilação entre rigor e imprecisão no conceito de espaço na literatura revela a maleabilidade do termo ao seu referente. O conceito de espaço partilha de noções (campo, paisagem, região, ambiente) que muitas vezes são usadas com significados diferentes nas ciências humanas e exatas. Consequentemente, o espaço na teoria literária se distingue na utilização de tipologias que evitam a sua definição acabada e limitante, por exemplo: espaço psicológico, espaço imaginário, espacialidade do corpo, espaço da escrita, etc. Ou seja, há mais o desenvolvimento de um território nebuloso entre conceito e metáfora voltado para como os sujeitos se relacionam com o espaço (BRANDÃO, 2013). Assim, “[...] o conceito incorpora uma visão ampla e metafórica, dentro da qual o próprio texto faz emergir uma concepção e função da espacialidade por meio de suas estratégias de construção [...] (MOTTA; BUSATO, 2010, p. 7-8). No estruturalismo o estudo sobre o espaço não é privilegiado inicialmente por causa do foco nos estudos sobre as vozes, temporalidades e ações identificadas no texto. No entanto, começa a ganhar força a ideia acerca das relações entre a obra e o espaço e a sua coerência com o espaço em relação à gênese da obra. Assim, o espaço passa a ter uma leitura diferenciada e a possuir orientação epistemológica. Gérard Genette fala em figuras nas quais o pensamento se espacializa para que a linguagem fale e escreva-se, nas quais o espaço é analisado como uma espécie de “síntese operada a partir de diferentes sensações” (MATORÉ, 1962, p. 213, apud BRANDÃO, 2013, p, 26). Já para Roman Jakobson o signo possui uma função poética que excede a linguagem, sua materialidade é fonte de ininteligibilidade em relação à realidade. Contra o empirismo mimético que engessa a categoria espacial, o estruturalismo “realça o elemento sensível da realidade – justamente o que se manifesta nas formas - aplicando-o como elemento essencial na definição da linguagem literária” (BRANDÃO, 2013, p. 26). O período que se seguiu foi de intensa desconstrução, de recusa ao logocentrismo, aos conceitos e aos binarismos, no qual a crítica procura mais ser um modo de leitura do que a criação de categorias. Dois aspectos foram modificados: os sistemas binários (sentido/forma, alma/corpo, inteligível/sensível, transcendente/empírico), em que espaço era inserido no segundo termo como recipiente do primeiro termo. Como sistema, esse pensamento funda uma hierarquia de valores e condições, “de acordo com essa crítica,.

(16) 16. deve-se problematizar o entendimento do espaço como categoria menor, excessivamente empírica, tributária da platitude do universo sensível, sem poder de transcendência, facilmente domesticável pela razão” (BRANDÃO, 2013, p. 28). O período histórico do surgimento da geografia humanista é caracterizado pelo movimento de mudança dos padrões culturais e políticos, pois o cientificismo não respondia aos questionamentos da nova forma de interpretar o mundo fora dos padrões socioculturais. Assim, as transformações radicais na base metodológica colocaram o ambiente humanizado como campo fértil de valores e interesses subjetivos aos quais a cultura humana precisava ser investigada. Foi Edward Relph quem colocou a fenomenologia como suporte filosófico aos estudos da geografia humanista para suprir essas novas necessidades, pois este “seria utilizado para se fazer uma descrição rigorosa do mundo vivido da experiência humana e, com isso, através da intencionalidade, reconhecer as ‘essências’ da estrutura perceptiva.” (HOLZER, 2008, p. 140). O desenvolvimento dos métodos que entre a fenomenologia existencialista e a geografia humanista, abrangeu a totalidade do ser quanto à percepção, cognição, simbologia e comportamento “onde se torna impossível delimitar claramente o que é sujeito e o que é objeto” (HOLZER, 2008, p. 140). No entanto essa assimilação foi implícita e não majoritária dos seus conceitos. Então, os estudos culturais se apresentam como uma veia transdisciplinar para a revisão da noção de teoria, o que implica no questionamento quanto à especificidade da literatura, oriunda do impreciso território da produção cultural. Logo, com a rejeição aos academicismos teóricos e a aproximação da influência política, a teoria da literária foi atacada nas suas bases pelo questionamento da noção de cultura, não como termo tranquilo, mas uma espécie de síntese de uma história. Os estudos culturais revitalizaram o conceito antigo de literatura como arte mimética ao tomar a representação em que “os vetores conflituosos de determinada configuração cultural se manifestam” (BRANDÃO, 2013, p. 30). Então, os estudos contemporâneos indicam uma concepção mais dinâmica do espaço, porque:. O espaço da institucionalização, com as representações de poder, o espaço social, o espaço como paisagem, nas configurações natural, regional, física e psicológica, e o espaço do mito, com suas imagens e.

(17) 17 sentidos simbólicos, são outras formas de mobilização do conceito. (MOTTA; BUSATO, 2010, p. 7). Como discurso, essa mudança desloca a concepção dos veículos discursivos privilegiados da história para fazer falar a margem dos seus acontecimentos. Numa abordagem transdisciplinar, essa abertura proporcionou ao conceito de espaço a investigação da origem em que os discursos foram produzidos, recorrendo aos termos margem, fronteira, entre-lugar, metrópole, colônia, centro, periferia, ocidente, oriente etc., no entanto, a politização imediatista corre o risco de tornar a ideia de arte como conceito afirmativo em relação à sociedade, domesticando a sua negatividade: a sua indeterminação e transcendência. Já a semiologia fragmentária de Barthes oscila entre unificação e imprecisão. No estruturalismo, o espaço é primeiramente visto pelos seus elementos informantes, no qual identifica um léxico semiótico no excesso de discursos sobre o espaço, principalmente dos urbanos, onde o miasma classificatório suprime uma análise mais aberta e questionadora (BARTHES, 1988). No entanto, Barthes não é objetivo e nem traça um estudo do espaço como é feito na prática semiológica, pois questiona o próprio método. Além disso, Barthes defendia uma semiologia voltada mais para o deslizamento do que a construção daquilo que ele identificava como doxa, uma opinião corrente correspondente de uma instituição, de leis, de estratos sociais que dá logicidade e linearidade ao discurso (BARTHES, 2003a) – por isso, Foucault propôs que a heterotopia seja mais uma leitura do que uma ciência orientada por conceitos já solapados. No entanto, é preciso questionar nos estudos literários, se a categoria do espaço se encontra nesta expansão. De um lado, as correntes estruturalistas privilegiam a espacialidade da linguagem em detrimento do valor empírico e mimético do espaço, do outro, as correntes sociológicas e culturalistas concebem o espaço como projeção de um conteúdo social, como representação aferível. Ou seja, concepções díspares que nem sempre revelam as suas dificuldades internas. Além disso, com a nova roupagem do espaço dado pelas ciências exatas, o engajamento das ciências e da filosofia em considerar o espaço como categoria significativa, passa a ter uma linguagem própria com termos espaciais que abrangem tanto a especificidade, quanto a relatividade do objeto de estudo..

(18) 18. A partir destas latências, o estudo do espaço emerge do viés psicológico da vida íntima abordado por Gaston Bachelard no livro A poética do Espaço (2008), para imbuir abordagens sociológicas, filosóficas e estruturais, as quais, conjuntamente, recorremos ao longo da análise. Portanto, esta análise depende de processos investigativos cambiantes entre composição e decomposição, os quais elencaremos em diferentes momentos a fim de observar a aventura metafórica da escrita agualusiana. Dessa forma, este estudo estrutura-se nos seguintes termos: o primeiro capítulo discutirá as bases fenomenológicas na construção simbólica dos espaços somadas com os estudos culturais, filosóficos e históricos que evidenciam o espaço como constructo relativo e tributário de arquivos coletivos e individuais. Dado que os valores atribuídos ao espaço costumam se cristalizar em composições imagéticas, como uma acumulação que põe em evidência percepções locais, universais e subjetivas, admite-se uma mediação de forças da fenomenologia. Tal mediação é composta como a do filósofo Gaston Bachelard que “visa determinar o valor humano dos espaços amados” (BACHELARD, 2008, p. 19), apontando o seu valor de proteção, exaltação, aos valores imaginados, logo dominantes. Destarte, a análise da obra implica numa topofilia, ou seja, a construção de espaços felizes, em que o espaço pressupõe uma imagem feliz. E quem imagina lembra da casa primordial, a casa das solidões, dos cantos e refúgios (BACHELARD, 2008). Verificamos que a casa em que o romance é ambientado não só evita a dispersão do ser, mas organiza um universo, na qual vivemos fixações de felicidade. Levados pelo devaneio, esses espaços de solidão são constitutivos do ser, regiões de reverberação em que “lembrando-nos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos” (BACHELARD, 2008, p. 20). Assim, essa abordagem é conservadora se se considerar que é positiva, equilibrada e heroica na medida em que protesta contra o império da razão, mas:. Tal heroísmo, contudo, é passível de ser entendido como exercício de poder incontestável, já que fundado em arquétipos (os quais, por definição, não se sujeitam à variabilidade histórica), ainda que esse poder, em determinados contextos (naqueles em que se verifica o predomínio da razão e da imaginação formal), se encontre em segundo plano, e tenha de lutar para ser reconhecido. (BRANDÃO, 2013, p. 9091).

(19) 19. Por isso, optamos por apresentarmos uma análise que esmiúça a composição figurativa do espaço de forma relacional.2 No romance, se as oposições entre interior e exterior serão evidenciadas, cabe “[...] observar se tais polaridades são colocadas sob perspectiva, mediante o emprego de algum elemento – também reconhecido como espacial – que tenciona a estabilidade dos pares opositivos.” (BRANDÃO, 2012, p. 39). Nos espaços simbólicos da infância e da memória, que também dialogam com os espaços psicológicos e sociais, verificamos que a composição entre realidade e ficção criam espaços possíveis como metaescrita que transcende a literatura. Como um trabalho indisfarçavelmente de colagem, estes espaços desdobram-se como um leque de experiências e perspectivas, como a fotografia e os sonhos em que Eulálio volta a sua condição humana e passeia por espaços enigmáticos ou simbólicos. No segundo capítulo, recorremos à semiologia de Barthes para investigar o poder do mito da navegação em relação à projeção da escrita como barco, como desvio, numa relação heterotópica com a escrita. Na reflexão sobre a modernidade, Michel Foucault (2009) diferencia o espaço da utopia e da heterotopia, uma vez que há espaços que são ao mesmo tempo reconhecíveis e singularizados, onde a diferença, que normativamente é escamoteada, encontra a sua materialidade e validade. Estes espaços perfuram o “lugarcomum” da universalidade impessoal fazendo circular heterogeneidades inerentes às relações sociais, ou seja, são espaços em que as generalizações cartesianas serão quebradas, que reafirmam uma relação porosa, orgânica e regenerativa. Além disso, pretendemos investigar o estilo espacializante que perpassa a narrativa. Tal estilo carrega figurações expressivas de uma sensibilidade, de uma política, nos termos que Jacques Rancière entende por “partilha do sensível”. Nestes termos contemplamos a relação entre identidade e cultura como essencialmente híbrida, como explanou Edward Said (1995). As projeções de uma cultura e de uma identidade dependem de representações, de como e quem as perpetua, pois “a apropriação da história, a historicização do passado, a narrativização da sociedade, que dão força ao romance, incluem a acumulação e diferenciação do espaço social, espaço a. Para uma análise mais específica e estrutural, consultar o artigo “A significação do espaço no romance “O vendedor de passados” de Maria Emília Magalhães Martins da Costa, disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/wp-content/uploads/2014/04/silel2013_1406.pdf 2.

(20) 20. ser usado para finalidade sociais” (SAID, 1995, p. 118). Nessa interligação de papéis, faz necessário uma desnaturalização do espaço de forma que a cidade será composta também por uma da escrita: A Luanda de Agualusa será e fará uso de várias duplicidades e falseamentos por espaços ambíguos que denunciam ausências. Por fim, abordaremos no terceiro capítulo a nervura do neutro (BARTHES, 2003a) como categoria de um discurso que coloca os fatos além dos seus paradigmas na extração de toda e qualquer ordem. Como possibilidade de romper as estratificações representativas, o neutro é uma matéria viva que suspende a lógica dos discursos unificadores. Com isso, percebemos que o detalhe desviante dessa linguagem acompanha o desenvolvimento do tom característico na obra de José Eduardo Agualusa, em que a referência recorrente à fotografia incita uma reflexão sobre as suas particularidades no texto literário como representação especificamente do studium e punctum (BARTHES, 2012). As fotografias compõem uma camada doce e violenta (BARTHES, 2012) do olhar agualusiano a qual podemos aprofundar e discutir no studium do espaço, o onírico é o punctum que interessa, já que, para Barthes “um detalhe conquista toda minha leitura, trata-se de uma mutação viva de meu interesse de uma fulguração.” (BARTHES, 2012, p. 51). É uma essência que abala e que não se negocia, afinal, “a felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos.” (AGUALUSA, 2004, p. 102), como disse Eulálio, a osga, o antigo homem. Está posto, então, a tensão representativa entre a fabulação literária e o real fotográfico neste espaço análogo. Seu canto de dispersão encarna a escrita que “desnaturaliza” o espaço pela mobilidade, pois “[...] o que se mantém ereto e profundo no estilo, reunindo dura ou suavemente em suas figuras, são os fragmentos de uma realidade absolutamente estranha à linguagem.” (BARTHES, 2004a, p. 12). Assim, a presente pesquisa busca investigar como o espaço absorve essa dialética, no qual também é submetido na figura da casa intoxicada pelas movências da modernidade. No romance O vendedor de passados, Agualusa organiza possibilidades de sentido para além das fronteiras da casa partindo da capacidade da literatura de promover a potencialidade do elemento espacial. Ou seja, a variabilidade provém não só das situações de interlocução e dos campos de conhecimento, mas também dos modos de contágio que este espaço é capaz de provocar como experiência literária..

(21) 21. 2. A CASA “[...] mas a casa dos pobres é todo o mundo os pobres sim têm o conhecimento das casas os pobres esses conhecem tudo Eu amei as casas os recantos das casas Visitei casas apalpei casas Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade Sem casas não haveria ruas as ruas onde passamos pelos outros mas passamos principalmente por nós” Ruy Belo. No ensaio “Espaço e literatura: introdução à topoanálise”, Ozíris Borges Filho concebe o espaço como tudo que “está inscrito em uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações [...]” (BORGES FILHO, 2008, p. 1), diferenciando cenário e natureza. Dessa forma, o cenário é o espaço primariamente criado pelo ser humano, um produto oriundo de um fazer racional, enquanto que a natureza está livre dessa interferência. O cenário, consequentemente, o espaço íntimo é concebido como computo de uma cultura e de uma sensibilidade que, de acordo com Borges Filho não deve ser analisado pelo viés psicológico, mas pelo espaço social e cultural das personagens. Já para Osman Lins, a análise do espaço numa obra literária precisa averiguar que “o delineamento do espaço, processado com cálculo, cumpre a finalidade de apoiar as figuras e mesmo de as definir socialmente de maneira indireta [...]” (LINS, 1976, p. 70), ou seja, o espaço será um catalizador de signos sobre as ações e as personagens, de sua vida social, cultural, política, como também do espectro da sua subjetividade, como “[...] tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariando, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela personagem [...]” (LINS, 1976, p. 72). Portanto, o espaço não cabe como cenário passivo da história ou um dado estrutural mensurável dos acontecimentos, mas como abertura a uma condição relativista à esses valores e às mutações que sofrem ao longo da narrativa. A descrição dos objetos, hábitos e memórias referenciam um conjunto de processos a provocar a noção de determinado ambiente, ao qual “[...] o contraste que a.

(22) 22. narrativa oferece entre motivos dinâmicos e motivos estáticos [...], exige uma série de recursos, mediante aos quais seja possível, sem comprometer o fluxo dos eventos, introduzir o cenário, o campo onde atuam as personagens.” (LINS, 1976, p. 79). Assim, a casa de Félix é onde outros espaços serão tecidos e buscados de forma que, segundo Lins, “[...] a personagem é o espaço; e que também suas recordações e até as visões de um mundo feliz, a vitória, a fortuna, flutuam em algo que [...], designaríamos como espaço psicológico” (LINS, 1976, p. 69). Destarte, o olhar pode se tornar integrante do que narra no interior do espetáculo, pois “toda imagem exclui aquele que olha, mas toda imagem aponta para o olhar que a veicula, olhar para o qual ela é imagem.” (BRANDÃO, 2013, p. 238). Aquele que olha quer ser enunciado, ser materializado como personagem, no qual “corpos e vozes se oferecendo na brutalidade imediata, imagens de si, imagens criadas por ninguém. O olhar, ausente, se apagou” (BRANDÃO, 2013, p. 239). Personagem e espaço, corpo e narrativa se tornam um só. Em vista dessa diversidade, surgiram novos meios de estudar a configuração de outros tipos de espaços: o espaço da morada, o espaço e o corpo, corpo como espaço político. Como enunciou David Harvey no livro “Space of hope”, “o corpo não é uma entidade fechada e selada, mas uma “coisa relacionada que é criada, conectada, sustentada e finalmente dissolvida num fluxo espaço-temporal de processos múltiplos” (HARVEY, 2004, apud BRANDÃO, 2013, p. 20). Neste trabalho, focamos mais nos hábitos, do que a relação do espaço e corporeidade. É por esta abordagem que, primeiramente, percebemos a casa de Félix por ser o cenário majoritário do romance, o qual receberá diferentes ambientações. Félix foi deixado num caixote à porta desta casa, a moradia de Fausto Benedito Ventura, sobre vários exemplares de “A relíquia” de Eça de Queirós, o primeiro berço literário do qual o albino se orgulha. Nela estava o menino de cabelos espumosos e incandescentes, nu, magro e sujo, mas com um sorriso triunfante. (AGUALUSA, 2004). Fausto, um mulato filho e neto de alfarrabista, viúvo e sozinho, adotou-o sem problemas, certo que assim o destino desejava. No entanto, anos depois, após a independência Fausto muda-se para Lisboa, deixando a casa aos cuidados de Félix, que mesmo nos tempos mais difíceis não a abandona. É nela que constrói a sua vida como genealogista criador de passados,.

(23) 23. servindo-se da diversidade de livros e narrativas que dispõe e acumula com os anos solitários. É nela também que nasce a encarnação no corpo de uma osga de Eulálio, por onde passeia o seu pequeno corpo carregando as memórias da vida passada e desvendando os dias de Félix. Ele e Félix nunca moraram em outro lugar. Isso significa que esta é a casa primordial de ambos. Se e corpo estão completamente integrados na casa. É nela que a escultura do tempo foi construída e será destruída, em que a imaginação construirá paredes, sombras, espelhos, um todo de proteção, pois, segundo Bachelard, “o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos” (BACHELARD, 2008, p. 25). Podemos constatar isso na descrição da casa feita por Eulálio:. A sala de visitas comunica com o jardim, estreito e mal tratado, cujo único encanto são duas gloriosas palmeiras imperiais, muito altas, muito altivas, que se erguem uma em cada extremo, vigiando a casa. A sala está ligada à biblioteca. Passa-se desta para o corredor através de uma porta larga. O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir, à sala de jantar e à cozinha. (AGUALUSA, 2004, p. 9). As palmeiras, como soldados vigiando um palácio contrastam com o abandono e inferioridade do exterior, o que desde já cria um contraste de elementos internos e externos. Já na entrada percebemos que o lar de Félix possui um ar solene, e ao mesmo tempo decadente, quase anacrônico. Em seguida à descrição franca (LINS, 1976) da simples planta do térreo da casa, está a da cozinha na qual os elementos subjetivos são mais detalhados. Mais próximo do ponto de vista de Eulálio, na cozinha “a luz da manhã afaga as paredes, verde, branda, filtrada pela ramagem alta do abacateiro” (AGUALUSA, 2004, p. 9). Já não é o jardim pobre, mas é no quintal acolhedor que a copa da árvore doma a luz implacável do sol. De acordo com a análise de Osman Lins (1976), a cozinha ganha uma ambientação reflexiva, na qual o espaço é percebido indubitavelmente através da personagem, carregando sua percepção e seu julgamento. Então, na ambientação reflexiva de Eulálio, do seu ponto de vista, as folhas viram filtros transformadores de forças abrasivas em luzes calmas, descendo como um véu sobre tudo: “a imobilidade.

(24) 24. irradia-se.” (BACHELARD, 2008, p. 147). Ao final do corredor há uma pequena e precária escada que ascende a uma mansarda praticamente abandonada que nem Eulálio a frequenta, por horror de ser presa dos morcegos que lá fazem o seu repouso. É o mesmo medo o impede de explorar o quintal que ele contempla todas as tardes no conforto dos seus esconderijos. No quintal, contando com o imenso abacateiro, entre capim e roseiras, há nespereiras altas e carregadas, além de dezenas de papaieiras que são basilares à alimentação monástica de Félix. É uma boa porção de terra aos fundos da casa, protegida por um muro alto do qual o topo está coberto de cacos de vidro, dentes de uma boca tão clara a Eulálio (AGUALUSA, 2004). Esta ameaça não impede que meninos da rua saltem o muro para roubar os frutos. Para Eulálio, os meninos têm vocação para serem sapadores que desarmam as inúmeras minas escondidas em Angola, pois, para ele, assaltam o quintal mais pelo gosto do risco do que das frutas. A osga, então, imagina que um dia um deles enquanto estiver num campo de minas:. [...] há-de vir-lhe à boca o remoto sabor de uma nêspera. Um dia enfrentará a inevitável questão, lançada, com um misto de curiosidade e horror, por um jornalista estrangeiro: - Em que pensa enquanto desarmas uma mina? E o menino que ainda houver nele responderá sorrindo: - Em nêsperas, meu pai.” (AGUALUSA, 2004, p. 11). Assim, a guerra civil é introduzida na narrativa perfurando os seus rastros de minas antigas e escondidas no solo angolano. Perfuram o tempo, ao mesmo modo em que preenchem o retrato da infância angolana entre frutas e perigos. A narrativa, então, logo parte o espaço não só da casa, mas do país, que surge dissimuladamente, pelo que Osman Lins denomina de ambientação oblíqua, na qual os “[...] atos da personagem, nesse tipo de ambientação, vão fazer surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos (LINS, 1976, p. 84). Assim será retratada a própria Luanda, a qual abordaremos mais adiante. Neste trecho podemos verificar que o entorno da casa se abre ao mundo exterior e ao mundo dos sonhos e possibilidades. O quintal se torna um espaço.

(25) 25. dessa fronteira de fertilidade em que fabulações do futuro interpenetra na ambientação reflexiva de Eulálio. Na casa a esperança tem um nome. É o de Esperança Job Sapalalo, a empregada que cuida dos afazeres enquanto cantarola a sua angolanidade. Esperança, a única sobrevivente de um massacre na sua vila durante a guerra civil, senhora de tantos anos, mas de gestos firmes, é, para Eulálio, a coluna que sustenta toda a casa (AGUALUSA, 2004). Ela possui outra reflexão em relação aos meninos ladrões de frutas. Para ela são os muros que fazem os ladrões. Com essa fala o anarquismo encontra a sabedoria popular, a sabedoria das guerras e da resiliência. Pela sobrevivência de um nome, a palavra viva faz circular por toda parte uma esperança desestabilizadora revelando as nuances que habitam esse espaço angolano. Não é gratuitamente que esta reponsabilidade esteja presentificada pela velha Esperança, pois ela afronta a modernidade e o individualismo ao assolar a cidade com os seus cantos tribais. Transcendendo a sua condição de subalterna, mulher e empregada, mas a que mais transmite a essência angolana, amparando o neto nas costas, o futuro interligado com o passado. Sua presença é política, assim como os outros índices de heterogeneidade presentes na casa. São presenças políticas e ao mesmo tempo estéticas: fazem parte de uma representação que evidencia modos de ser, de fazer, de dizer: fazem recortes dos lugares e das sensibilidades que por ali perpassam. Se são formas de experiência, consequente são elementos políticos de acordo com o que o filósofo Jacques Rancière considera sobre política. Para Rancière, “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competências para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE, 2005, p. 16-17). E ao embaralhar indiscriminadamente identidades, atividades e espaços, como expressão de uma subjetividade e como forma “[...]de inscrição do sentido da comunidade” (RANCIÈRE, 2005, p. 18), a arte efetua um fazer democrático, pois quebra com hierarquias traçadas pela ordem. Portanto, as práticas artísticas não só são maneiras de fazer e ver, mas práticas estéticas que mudam as configurações destas funções numa perspectiva mais ampla, tanto quanto nas maneiras de ser dos homens, na visibilidade dos papéis circunscritos e das atividades próprias do povo. Para pensar sobre essa relação entre política e estética é preciso pensar sobre a desestabilização da modernidade e do.

(26) 26. possível esgotamento da arte, pois implica em pensar nesse regime estético, suas possibilidades e seus modos de transformação. Para especificar essa noção de estética, Jacques Rancière a conceitua na modernidade em três regimes distintos: o regime ético das imagens, o regime poético, e o regime estético. No regime ético das imagens a arte é descartada em sua totalidade e apenas as imagens – seja pela metáfora poética ou pela pintura – são objeto de reflexão, no qual são classificadas como seres quanto à origem, ou seja, quanto à sua veracidade, e ao seu destino, como também as alterações que operam nos usos e destinos. Quanto à destinação, corresponde ao regime ético, já que se trata da recepção da população em relação às imagens e na partilha do modo de ser do ethos da cidade, de modo que as imagens pertencem a um todo coletivo e não individual, e é nessa coletividade que a arte se fundamenta. No regime poético, também tido como representativo, identifica o fato da arte no par poiesis/mímesis. No âmbito da representação, a mímesis é um princípio pragmático usado por certas artes direcionadas para a imitação, sob o princípio aristotélico do efeito do poema e de sua representação em detrimento do modelo ao qual imita e do agente que executa a imitação. Do mesmo modo está a representação no regime poético, no qual estão as maneiras de fazer, as representações bem executadas, inserido em uma normatividade:. Denomino esse regime de poético no sentido em que identifica as artes - que a idade clássica chamará de ‘belas-artes’ – no interior de uma classificação de maneiras de fazer, e consequentemente define maneiras de fazer e de apreciar imitações benfeitas. Chamo-o representativo, porquanto é a noção de representação ou de mímesis que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar. Mas, repito, a mímesis não é a lei que submete as artes à semelhança. É, antes, o vinco na distribuição das maneiras de fazer e das ocupações sociais que torna as artes visíveis (RANCIÈRE. 2005, p. 31). Ou seja, a mímesis não pode ser entendida como simples semelhança, mas como mecanismo de visibilidade e distribuição das maneiras de fazer e das ocupações sociais, correspondente às hierarquias sociais e, respectivamente, nas hierarquias de narração, dos gêneros textuais..

(27) 27. Em contraponto ao regime poético está o regime estético, que não permite distinções internas nas maneiras de fazer, como também não concerne ao gosto do receptor das obras, mas que remete ao modo de ser e sentir do produto de arte:. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser dos seus objetos. No regime estético das artes, as coisas da arte são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível [...] habitado por uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc (RANCIÈRE, 2005, p. 32).. O regime estético desobriga a arte de qualquer regra. Para Rancière “implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais.” (RANCIÈRE, 2005, p. 34). Ou seja, “o estado estético é pura suspensão, momento em que a forma é experimentada por si mesma. O momento de formação de uma humanidade específica” (RANCIÈRE, 2005, p. 34). A escrita embaralha identidades pois demonstram o ato político em quaisquer condições, na qual a literatura é a ruptura em relação à tradição das belas-letras. A literatura faz nessa ruptura e seu apagamento “capaz de fazer coexistir os contrários.” (RANCIÈRE, 1995 p. 27). Então, a modernidade é esse regime estético, mas o próprio termo modernidade se empenha em ocultar a especificidade desse regime das artes e a necessidade de se esclarecer o próprio sentido da sua especificidade. Todavia, “Não há palavra sem corpo, nomes de nada ou de ninguém. Todo o problema é, ao contrário, o de dar às palavras não seu referente, e sim sua voz, o corpo ao qual elas pertencem.” (RANCIÈRE, 2005, p. 21). Competência que recai na literatura para legitimar a sua mensagem. É, desse modo, que Agualusa faz circular a esperança irrevogavelmente na conjuntura do passado e futuro na casa onde o logos se dispersa pelos arquivos, pela escrita errante, na escrita mais que escrita. Com essa afirmação, Agualusa não deixa de evidenciar sutilmente pelo nome da personagem Esperança que, apesar das movências dos destinos que se encontram na casa, a sua ancora é localizada na esperança que, por obra do acaso, sobreviveu às misérias da.

(28) 28. guerra e resiste. A esperança é um espaço de resistência. Ela traz o anarquismo da coletividade que afronta a propriedade privada característica das cidades. Desse modo, a casa revela seus hábitos, e seus “passados”. Na observação de Eulálio ele nota que enquanto Félix janta, sempre estuda os jornais, sublinha o que o interessa. Logo que termina de comer recorta-o cuidadosamente e guarda-o num arquivo. Resumidamente, Eulálio cataloga que “numa das prateleiras da biblioteca há dezenas destes arquivos; numa outra dormem centenas de cassetes de vídeo. Félix gosta de gravar noticiários, acontecimentos políticos importantes, tudo o que lhe possa ser útil um dia.” (AGUALUSA, 2004, p. 15). Como uma rotina bem delineada, o jantar sempre é uma tigela de caldo verde, feito pela empregada Esperança, um chá de menta, uma grossa fatia de papaia, temperada com limão e uma gota de vinho do porto. Ao fim, veste o pijama com uma formalidade que faz a osga imaginar que irá por uma gravata ao dormir. Mas uma vez, essa formalidade denuncia uma certa ordem oriunda de uma educação burguesa. Até que, regularmente, nas noites de sábado, chega com alguma moça “esguias, altas e elásticas, de finas pernas de garça” (AGUALUSA, 2004, p. 5). Aparentam ser várias e desconhecidas, dada a generalização de Eulálio que as observa ora não conterem a repulsa pela pele albina do homem, ora andarem pela casa desinibidas. No entanto, apesar de levar a vida metodicamente, como um monge, ele não esconde o fato de que vive financeiramente bem, pois já viajou para o exterior. Quando pensa sobre o dinheiro que o estrangeiro quer lhe pagar ele pensa, ao fim de uma longa meditação: “Dez mil dólares não se deitam fora. Passo dois ou três meses em Nova Iorque. Vou visitar os alfarrabistas de Lisboa. Vou ao Rio, às rodas de samba, vou às gafieiras, aos sebos, ou a Paris comprar discos e livros. Há quanto tempo não vou a Paris?” (AGUALUSA, 2004, p. 24). Apesar de negro e albino, Félix está numa condição social diferenciada que o permite certos privilégios. Seu pai adotivo teve um avô que vivera no Rio de Janeiro. O avô era supostamente um escravocrata, que trouxe a grande poltrona verde, aparentemente do período imperial. A presença desse móvel no cenário não se dá de forma gratuita, pois “a narrativa repudia sempre os elementos mortos (as motivações vazias) e dessa lei não pode o ficcionista fugir.” (LINS, 1976, p. 106). É, pois, a internalização do elemento solene dentro da casa, o que contrasta com a simplicidade da condição de vida de Félix. É um resquício do tempo escravocrata, na qual todos desfrutam o conforto e a imponência para desenvolverem seus.

(29) 29. diálogos e monólogos. Não seria a cadeira imperial a remissão ao lugar de discurso colonial que legitima somente aquilo proveniente dele? Se for este o caso, este lugar é constantemente questionado, ridicularizado e subvertido por aqueles que o ocupam brevemente. Mas não poderia ser noutro lugar que a relação de proximidade entre Angola e Brasil seria melhor representada do que na varanda da casa, na qual estão dezenas de espanta-espíritos (sinos de vento, sinos da felicidade, ou mensageiros do vento). Pendurados no teto, como lembretes das viagens de Félix pelo Brasil, eles são a hibridização do objeto religioso de origem chinesa, utilizado para espantar maus espíritos. Como os símbolos da história, cultura e natureza do Nordeste:. Aves pintadas de cores vivas. Conchas. Borboletas. Peixes tropicais. Lampião e a sua alegre tropa de jagunços. A brisa produz, ao agitá-los, um límpido rumor de águas, e isso faz com que recorde, sempre que a brisa sopra, e a esta hora, graças a Deus, sopra sempre, a secreta natureza desta casa: Um barco (cheio de vozes) subindo um rio. (AGUALUSA, 2004, p. 79). Estes objetos podem ser encontrados em feiras artesanais, onde a cultura é comercializada para turistas de todo mundo. Certamente o espanta-espírito chegou ao Brasil através da produção barata e em massa do mercado chinês, logo tornando-se um adorno altamente vendável. Então, a cultura brasileira, antropofagicamente, adaptou o ornamento com seus próprios elementos, extirpando-o parcialmente de sua carga religiosa. De acordo com a filosofia chinesa,. O ar é uma força vital do universo e quando ele entra e sai ou atravessa os tubos, renovam as energias. Esse movimento vibrante que emite um som característico também renova as energias pessoais e ajuda a acalmar nosso lado psíquico e emocional. Tudo isso tem relação com a renovação e equilíbrio das energias nossas e do ambiente.3. 3. http://fengshuidesignerprojetos.blogspot.com.br/2013/01/o-mensageiro-dos-ventos.html.

(30) 30. Vento que carrega vozes no percurso dessa casa/barco subindo para onde, não se sabe. Recorda-se apenas que o rio São Francisco deságua para Angola, lugar em que no final a narrativa supõe um caminho de encontro nas terras brasileiras. Portanto, é pela sutileza metafórica que Agualusa faz uma prolepse espacial, ou seja, uma antecipação do espaço e seus elementos em que se dará a ação (BORGES FILHO, 2008). Para complicar a narrativa, é preciso complicar o espaço. Nessa prolepse, a casa abre-se para fora de toda geometria, de toda limitação cartesiana. Como barco, ascende para outros espaços e devaneios, como útero gestante de história, o onírico escorre ao longo da narrativa, afrontando o assombro do tempo e espaço. Ozíris Borges Filho não diferencia espaço de lugar, nem de espaço íntimo e externo, já que, para ele a experiência e a vivência são identificadas na relação entre macroespaço (concerne a grandes espaços, como a cidade/interior, o norte/sul, a Europa/América) e microespaço (todo espaço de menor delimitação) e nas ambientações em cada um. Ao selecionarmos os espaços no romance de O vendedor de passados, verificamos que estes podem ser entendidos por esta classificação como microespaços em arrolamento a macroespaços, ou seja, espaços que concernem aos grandes espaços da contemporaneidade, de forma que a casa, situada em Luanda, capital de Angola, potencializa o limite entre o externo e o interno. Mas para entender esses espaços precisamos ainda esclarecer a concepção de contemporaneidade. De acordo com o filósofo Giorgio Agamben, no ensaio “O que é contemporâneo?, para entender a contemporaneidade é preciso evocar a complexa noção de dispositivo. Mediante uma investigação profunda da origem do termo, este tem uma profunda ligação com a positividade, como“[...] elemento histórico, com toda a sua carga de regras, ritos e instituições impostas aos indivíduos por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer, interiorizada nos sistemas das crenças e dos sentimentos” (AGAMBEN, 2009, p. 32). Pela raiz teológica o termo dispositivo está ligado ao conceito grego de oikonomia, termo originado para explicar a trindade divina, pois Deus separa as suas funções: Jesus – Corpo de Deus – e o espírito santo, administram a casa para Deus. Usado em seu sentido amplo referente à atividade prática de gerir algo,.

(31) 31 O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação. Isto é, devem produzir seu sujeito. (AGAMBEN, 2009, p.38). Destarte, o dispositivo, tomado a partir de Foucault, é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Então, para Agamben, essa definição inclui a escritura, linguagem e literatura também como dispositivos. O mundo tal qual o vivemos, está separado entre duas classes: os seres viventes (ou as substâncias) e os dispositivos. O termo entre as duas classes é chamado de sujeito por Agamben. Sujeito definido, classificado, subjetivado de acordo com o dispositivo, que o previne do contato com o Aberto, com a desordem. O controle e o poder disso seduzem o sujeito, que na subjetivação há apenas dessubjetivação, ou seja, “as sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não corresponde a nenhuma subjetivação real” (AGAMBEN, 2009, p. 48). Então, a contemporaneidade não é sobre manutenções abruptas, mas quebras de linearidades e deslocamentos. Em relação ao tempo ela adere a este e, ao mesmo tempo dele toma distâncias; mais precisamente, através de uma dissociação e de um anacronismo (AGAMBEN, 2009). Nessa relação, o sujeito que está imerso no seu tempo não pode vêlo. Quem o vê é o contemporâneo, aquele que vê no próprio tempo as fraturas:. Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, a aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (AGAMBEN, 2009, p. 62-63). Obscurecidos do passado, mas cientes de sua presença, o poeta ou o escritor que se atreva a mergulhar nessas trevas, escreve num presente que jamais estivemos, não.

(32) 32. podemos viver o presente, somos sempre jogados ao passado. O contemporâneo é aquele que volta a esse presente impossível:. [...]é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 64). Ele está para transformar e colocar o tempo em relação com os outros tempos, e nele “ler de modo inédito a história [...] É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora” (AGAMBEN, 2009, p. 72). Assim, o poeta transforma a sua escrita num lugar de compromissos, de encontro entre os tempos e as gerações. Considerando que, “o regime estético das artes é, antes de tudo, a ruína do sistema da representação, isto é, de um sistema em que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos gêneros da representação” (RANCIÈRE, 2005, p. 47), Jacques Rancière pontua que, a partir da reflexão da trajetória do poema épico em relação ao romance moderno, a ficção e o poema dependem de um mesmo princípio. Eles manifestam a unidade dos modos de ser, do fazer e do dizer, e “[...] A partir daí é possível anexar toda a literatura ao poema, todo poema à ficção, toda ficção a um corpo de verdade.” (RANCIÈRE, 1995, p. 32). O romantismo minou as fronteiras entre a razão dos fatos e a razão da ficção. A sua linguagem não está fora da realidade, pelo contrário, ela força a linguagem a “penetrar na materialidade dos traços através dos quais o mundo histórico e social se torna visível a si mesmo, ainda que sob a forma da linguagem muda das coisas e da linguagem cifrada das imagens.” (RANCIÈRE, 2005, p. 54). Encarnado na transmissão de um objeto a outro, o escrito elabora estruturas inteligíveis pela ficção, pois, assim como a poesia, não tem contas a prestar à verdade “[...] porque, em seu princípio, não é feita de imagens ou enunciados, mas de ficções, isto é, da coordenação entre atos.” (RANCIÈRE, 2005, p. 5354)..

(33) 33. Assim, a ficção dá sentido ao universo do obscuro e do banal, numa mesma promessa de sentido entre o escrito e o materializado na decoração: nos livros, objetos, fotografias, nas sombras e reentrâncias. Todos esses indícios tornam-se “a identificação dos modos da construção ficcional aos modos de uma leitura dos signos escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um rosto.” (RANCIÈRE, 2005, p. 55) Ao considerar que a literatura é “poesia do ‘além da poesia’, a qual cabe a tarefa de enunciar o mito da outra escrita. [...] o testemunho do verbo vivo encarnado” (RANCIÈRE, 1995, p. 14), o pensador autoriza a leitura do objeto poemático no romanesco, pois:. O romance é forma pela qual a poesia toma sua própria genealogia como matéria da fábula. É portanto também a forma pela qual a experiência poética se conhece, não como a preparação de uma arte, a uma ‘maneira de fazer’ particular, mas como a forma matricial de uma maneira de ser, a existência estética. (RANCIÈRE, 1995, p.75). Ou seja, “o romance é a poesia da poesia se experimentando como pensamento” (RANCIÈRE, 1995 p. 79). Se, há poesia enquanto haja um atraso do sentido (RANCIÈRE, 1995), a poesia está para o estilo como um gérmen, ela resiste na materialidade da expressão, em que o estilo dá a sua substancialidade. Portanto, a arte de inventar passados, de subjetivar e dessubjetivar criando sujeitos politicamente flutuantes, falhos, do romance O vendedor de passados partilha de um olhar contemporâneo. Os espaços do romance, assistidos pelo espaço da casa reproduzem a falha inicial da história angolana – a política que se contorce no vazio, beirando a catástrofe. Esta casa é factualmente mobiliada por memórias vindas de diversas épocas, de tempos itinerantes. Descrever este espaço é uma atividade elástica pois o texto vive essa dialética. O fragmento converte-se em totalidade a sorver o prazer de não penetrar em tudo, mapeando os objetos esquecidos, do descartável, do que é deixado vagamente pelo tempo, colocando o passado em ordem (BACHELARD, 2008). Os objetos e a ele mesmo, pois nesses cantos “[...] conhece o repouso intermediário entre o ser e o não-ser. Ele é o.

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