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A presente pesquisa procurou caracterizar a dinâmica relacional familiar e a rede social significativa de crianças com uma das deformidades congênitas mais comumente encontrada, a fissura labiopalatal. Motivada pela necessidade de melhor compreender as famílias de modo que a prática dos profissionais das equipes pudesse ser embasada em pilares diferenciados do que comumente se encontra na literatura da área, a pesquisadora utilizou a Teoria Relacional Sistêmica para a sustentação do trabalho.

O principal objetivo desta pesquisa foi dar voz às famílias para que se pudesse entender as inter-relações entre a criança com fissura, sua família e o longo tratamento ao qual é submetida durante, aproximadamente, duas décadas de sua vida. Nesse sentido, as famílias e as equipes de saúde são fundamentais, sendo o aporte da visão sistêmica um alicerce para a compreensão desse processo inter-relacional. Dessa forma, o protocolo do processo de reabilitação para reparação das fissuras labiopalatais ao longo do tempo precisa incluir a família na perspectiva psicossocial, evidenciando as possibilidades de acolhimento como intervenção, pois estas precisam, necessariamente, ser incluídas no tratamento da criança para que o penoso processo possa ter seu impacto minorado e seja finalizado com sucesso.

Dessa forma, a compreensão dos relacionamentos familiares, seus projetos, seus valores, à luz do contexto sócio-cultural no qual estão inseridas, acabam por perderem- se diante do tratamento, com tecnologias e avanços cada vez maiores na odontologia e nas técnicas cirúrgicas, daí a importância de serem incluídos no protocolo de reabilitação.

De modo a levar a cabo essa tarefa, em consonância com os objetivos propostos para esta pesquisa, foram levantados os aspectos desenvolvimentais da criança com fissura labiopalatal, desde o início de sua vida, ou seja, do planejamento da gravidez até as reações apresentadas pelos pais, pela família nuclear e extensa e, ainda, por terceiros à malformação que a criança apresentava. A grande maioria dos dados colhidos nesta etapa da pesquisa encontrou ressonância na literatura, o impacto que o nascimento de uma criança com fissura labiopalatal tem em sua família é algo amplamente conhecido e não poderia ser diferente nesta pesquisa.

Chama-se a atenção no que diz respeito ao diagnóstico pré-natal das fissuras pré e transforame, que podem ser detectadas nesse período e a não ocorrência da detecção,

acontecendo em somente um dos casos no qual o exame foi realizado através de um plano de saúde particular.

Grande paradoxo, avanços tecnológicos significativos no sistema de saúde público e privado, trama na qual as famílias ficam presas e que fica evidente a precariedade tanto de acolhimento quanto de atendimento a esse tipo de deformidade. Poder-se-iam levantar questões de negligência e, até, de desconhecimento dos profissionais sobre a importância do diagnóstico precoce, sendo que esses aspectos levantados têm uma relação direta com a formação dos profissionais. Assim, o acesso dessas famílias a exames que possam diagnosticar a FLP ficam no plano da sorte ou da coincidência da presença de algum profissional atento para essa questão.

Enfim, este paradoxo merece uma melhor reflexão, investigação, posicionamento por parte dos profissionais de saúde, pois, sem dúvida alguma o diagnóstico precoce pode auxiliar sobremaneira as famílias na absorção do impacto; na aceitação da criança com FLP; na busca por informações e de tratamento adequado para seus filhos; preparando-as para lidarem de maneira mais tranqüila com a reação de terceiros frente ao choque provocado pelo estigma do que não é esteticamente belo; e finalmente, porém não menos importante, nas relações parentais com a criança com fissura labiopalatal.

No que diz respeito a um dos pontos nodais desta dissertação, a dinâmica relacional familiar, foram vistos o modo como as relações com a criança malformada se estabeleceram tendo em conta o impacto, sua superação e aceitação, a forma como os pais percebiam a criança e o cotidiano com ela. Todos esses aspectos formaram uma teia que se constituiu na base da dinâmica relacional das famílias pesquisadas. Nesse sentido, o maior desafio dos integrantes dessa teia familiar é a aceitação e a acomodação desse novo membro que necessita de cuidados tão diferenciados. Ao longo do tempo de tratamento percebeu-se que essa acomodação sofreu tensionamentos a cada nova etapa do tratamento, interferindo na dinâmica relacional da família e causando um efeito cumulativo de estresse, ao mesmo tempo em que as melhoras estéticas e funcionais foram ocorrendo.

As configurações acerca da estrutura familiar apontaram em sua maioria para arranjos de famílias nucleares, ocorrendo também os arranjos monoparental e ampliado, essa última como a maneira de contrabalançar as dificuldades financeiras, levando a termo sua tarefa de criar os filhos. As relações hierárquicas nos subsistemas e as regras na família possuíam características de fronteiras difusas com regras permissivas, que

afetam de maneira decisiva o processo de individuação que necessariamente deve ocorrer no sistema familiar de modo que o desenvolvimento de seus membros possa ser promovidos, sendo isso agravado na situação de crianças com FLP, constituindo-se ainda um fator de risco para essas crianças, o que se torna imperativo pensar nas implicações que essas características das estruturas familiares terão para as famílias com necessidades específicas e os impactos disso no tratamento da fissura labiopalatal.

Paralelamente, dispõe-se das condições sócio-econômicas das famílias pesquisadas, em que, em maior ou menor grau, necessitam de auxílio de parentes e/ou terceiros para poderem realizar adequadamente o tratamento de suas crianças. Apesar de terem a garantia de um tratamento gratuito nos centros especializados, existe uma série de outros fatores implicados na vinda para as consultas, sendo gastos constantes e que muitas vezes abalam o orçamento familiar, tornando-se mais um fator de preocupação.

Além do tratamento específico da FLP, os relatos dos pais a respeito do acesso aos diversos níveis de saúde foi outro ponto que não pôde deixar de ser mencionado e os relatos foram contundentes o suficiente. O tratamento de criança com fissura labiopalatal, segundo a OMS deve ser feito em centros especializados, no entanto é consenso entre os membros das equipes que trabalham na reabilitação que existem certas intervenções as quais podem ser realizadas nas Unidades Básicas de Saúde, porém a falta de preparo dos profissionais é constante e as recusas de atendimento freqüentes.

As famílias pesquisadas vivenciaram estressores horizontais tanto os desenvolvimentais quanto os impredizíveis, além de estressores verticais, em virtude disso, tornam-se claros os níveis de angústia vividos por essas famílias, que tornam imperiosos os cuidados com sua saúde emocional. Fatores como a sobrecarga da mãe nos cuidados com a criança; o abandono de projetos profissionais para a realização desses cuidados impostos pela deformidade e pelo tratamento da criança; as alterações na dinâmica relacional; o desejo de realização de projetos familiares e a sua execução; a não repetição dos erros paternos; a melhoria da condição social; a felicidade de seus filhos; as relações com coalizões, alianças, conflituadas, triangulações e distantes; as fronteiras hierárquicas difusas; as dificuldades no estabelecimento de regras e limites; as relações trigeracionais de superenvolvimento; o centramento das famílias nas crianças com fissura foram citados e verificados nas famílias, merecendo a atenção dos profissionais que atuam junto a essas famílias, tanto na prevenção dos fatores de risco de pouca autonomia das crianças quanto no suporte para as metas familiares.

As redes sociais significativas das crianças com fissura labiopalatal e suas famílias apontam para redes constituídas basicamente pela família nuclear e extensa, que davam suporte social, econômico, afetivo e cognitivo às famílias pesquisadas. Foi marcante o número inexpressivo de profissionais de saúde citados nas redes significativas. Essa característica das redes sociais significativas das crianças e de suas famílias poderia indicar as causas do desconhecimento a respeito das fissuras e a sustentação dos mitos e condutas de saúde inadequadas nas famílias, revelando a necessidade de uma maior divulgação sobre o tema na comunidade em geral. Dessa forma, acredita-se que esta pesquisa possa auxiliar, através dos dados obtidos sobre a dinâmica relacional familiar e as redes sociais significativas, também no sentido de colaborar com a elaboração futura de protocolos de intervenção e de programas de educação para a saúde da criança com fissura labiopalatal e de suas famílias.

Assim sendo, a falta de conhecimento e as informações fragmentadas sobre as origens, causas e protocolo de tratamento das fissuras labiopalatais podem ser causadas pela pouca divulgação dos próprios centros de tratamento. O outro lado dessa questão diz respeito aos profissionais que trabalham com essa população, no sentido de pensarem esse pouco conhecimento correlacionado aos tipos de informações repassadas, a forma e a linguagem utilizada pelos profissionais para as explicações e respostas aos questionamentos da família e a adequação ao momento do repasse das informações. Enfim, acredita-se que essa dificuldade tão expressiva e que tem como conseqüência a impotência dos pais no cuidado e no controle do tratamento de seus filhos, tem como base as relações estabelecidas entre as equipes e as famílias de crianças com FLP. Assim, a divulgação adequada sobre as fissuras na Rede Básica de Saúde, nas maternidades e hospitais é urgente, bem como o treinamento de profissionais para o atendimento dessas famílias.

Outrossim, a colocação de uma das famílias quando questionada sobre as possíveis resoluções para as dificuldades encontradas que sugeriu o acompanhamento psicológico familiar, foi bastante pertinente, uma vez que o terapeuta familiar seria o profissional mais habilitado para a realização das leituras acerca das tramas relacionais, tanto na família quanto na equipe, podendo ainda auxiliar na comunicação entre ambos. É sabido que a preocupação com a reparação estética e funcional das fissuras é primordial para a melhoria na qualidade de vida das crianças e de suas famílias, nos estigmas e no impacto da malformação, mas não se pode perder de vista os fatores

emocionais que podem interferir sobremaneira ou mesmo impedir os avanços na reabilitação, conforme a práxis confirma.

Na medida em que as equipes de saúde dão pouco suporte às famílias, elas buscam seu apoio (operacional, financeiro e emocional) na própria família nuclear e/ou extensa, o que sobrecarrega alguns de seus membros em especial, o que por sua vez acaba por interferir no tratamento da criança. Desse modo, é imperativo repensar a posição das equipes de saúde na vida dessas famílias, visto que as mesmas constituem a rede de suporte social institucional no contexto das políticas públicas de saúde e que, se bem instrumentalizadas, poderiam se tornar uma rede social significativa para essas famílias, aumentando assim a adesão ao tratamento, tanto da criança quanto da família.

Não se poderia fechar este trabalho sem trazer à tona um posicionamento frente à discussão a respeito do conceito de deficiência, mais ampliado, definido por Amaral (1996ª) e sustentado por códigos internacionais, que possuem desdobramentos históricos e sociais, de modo que se possa melhor nomear as pessoas com algum tipo de deficiência. Embora neste trabalho utilizou-se a expressão criança com malformação, com o intuito de acolher a literatura na área, cabe aqui reconhecer que, especificamente ao que se relaciona à fissura labiopalatal, apresenta o viés biológico decorrente da própria epistemologia biologicista que a sustenta, visto isto na maioria dos trabalhos relacionados ao tema, seja em bancos de dados nacionais ou internacionais. No entanto, e indo ao encontro de uma reflexão sobre as questões de inclusão social no caminho da dirimição dos estigmas da deficiência, houve um depuramento do conceito de deficiência, o qual hoje é abordado na perspectiva de uma visão mais ampliada. Assim, considera-se apropriado também a utilização do termo “deficiência” para as fissuras labiopalatais, uma vez que o conceito atualmente abrange uma visão ecológica do ser humano e possibilitando a desconstrução de preconceitos e uma série de direitos sociais que caminham na linha da inclusão para estas pessoas.

Finalmente, cabe apontar que, na introdução deste trabalho, mencionou-se a incipiência da literatura a respeito das famílias de crianças com FLPs. Acredita-se que essa característica possa estar relacionada ao fato das fissuras não terem o mesmo destaque proporcionado pela conceituação, mesmo sendo uma deficiência que pode ser reabilitada. Desse modo, considera-se que o desafio seja pensar as fissuras labiopalatais como uma deficiência e não como uma malformação, para que a utilização dessa definição possa ampliar a inclusão e os direitos dessas pessoas.

Cabe salientar, também, que as categorias criadas para a discussão dos dados obtidos através das entrevistas semi-estruturadas, dos Genogramas familiares e dos Mapas de Rede se intercomunicaram e interpenetraram constantemente, sendo recursos preciosos na busca do entendimento da dinâmica relacional familiar e no mapeamento das redes sociais significativas, possibilitando um olhar ampliado sobre as fissuras e as suas cicatrizes na família.

Pode-se concluir essa jornada afirmando que o mais marcante para a pesquisadora foi a solidão, a fragilidade e o desamparo quase palpáveis dessas famílias, que lhe imprimiu um sentimento misto de impotência, indignação e angústia. Frente a isso, finaliza-se com a seguinte citação, que exprime a visão da pesquisadora acerca do tema proposto e presente nas entrelinhas da pesquisa:

“Um ser humano é parte de um todo chamado por nós de ‘Universo’, uma parte limitada no tempo e no espaço. Ele experencia a si mesmo, seus pensamentos e sentimentos, como uma coisa separada do resto- uma espécie de ilusão de ótica de sua consciência. Essa ilusão é uma forma de prisão para nós, restringindo- nos aos nossos desejos pessoais e afeição por umas poucas pessoas próximas. Nossa tarefa deve ser de nos libertarmos dessa prisão alargando nosso círculo de compaixão para envolver todas as criaturas vivas e o todo da natureza em sua beleza.”