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CAPÍTULO 1 CONCEITUANDO O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

2.3 Considerações finais: perspectivas e desafios das ONGs na construção de “um outro

Se na sua gênese as ONGs brasileiras respondiam principalmente às necessidades dos movimentos e grupos sociais aos quais elas davam assessoria, a partir do final dos anos 1980, elas vão se transformar em verdadeiras “operadoras do desenvolvimento”, gerindo micro- projetos financiados pela cooperação internacional, inicialmente, e mais tarde atuando como parceiras do Estado na implementação de políticas públicas. A inserção das ONGs nos processos de desenvolvimento não se dá por acaso. Elas respondem a ameaças estruturais evidentes como as novas demandas dos financiadores, as pressões das políticas neoliberais e das agências de cooperação multilaterais, além da própria necessidade de sobrevivência institucional, diante da diminuição dos recursos provenientes de fontes internacionais. Por outro lado, esse processo pode ser considerado também como uma resposta singular dessas organizações, vislumbrando a possibilidade de promover um novo estilo de desenvolvimento.

Neste processo, diferentes concepções de desenvolvimento e também do próprio papel das ONGs são construídas, justificando as suas formas de atuação. Nos anos 1980, será relevante a influência das ideologias cristã e marxista na atuação das ONGs do Sul, baseadas na perspectiva “terceiro-mundista” difundidas pelas ONGs do Norte. Como explica Hours (1998: 36):

O ‘terceiro-mundismo’, apesar das representações diferentes da solidariedade veiculadas pelos seus atores, se apresenta como uma ideologia bastante homogênea, influenciada por uma visão messiânica do Sul e fundada sobre uma concepção solidária e participativa do desenvolvimento. [...] A categoria dos pobres, dos dominados e dos excluídos é colocada como prioritária e o desenvolvimento é considerado, antes de tudo, como desenvolvimento comunitário.

Neste período, é comum o interesse pela formação dos grupos coletivos baseados no “mito comunitário” das sociedades rurais. As ONGs vão focalizar a sua atuação “na gestão coletiva das inovações ou no trabalho coletivo. A formação dos grupos torna-se então um objetivo em si, sem que haja um questionamento sobre seu funcionamento real” (CARRÉ; ZAOUAL, 1998: 325). A visão do desenvolvimento será bastante ampla e pautada em valores éticos como a solidariedade, o espírito comunitário e a compaixão pelos oprimidos. Para Marroquin (1998), isso vai fazer com que as ONGs trabalhem com base numa visão intuitiva e pouco clara do desenvolvimento.

Num segundo momento, a preocupação de algumas ONGs brasileiras, principalmente no meio rural, passa a transcender os grupos localizados e focalizar a promoção do desenvolvimento sustentável. Essa passagem é bem clara no movimento da “agricultura alternativa” que, mais tarde, será transformado pelas propostas da agroecologia, com as quais todas as ONGs pesquisadas neste estudo se identificam. Esse movimento surge inicialmente como contraposição ao padrão da agricultura convencional implantado pela Revolução Verde e, progressivamente, passa a afirmar um projeto mais amplo de desenvolvimento (pelo menos no discurso), que contempla a prudência ecológica pautada em uma outra lógica socioeconômica.

A preocupação com a agricultura alternativa e com o uso de tecnologias adaptadas é incorporada pelos movimentos sociais e pelas ONGs socioambientais rurais, já a partir da década de 1970. Porém, a defesa de uma agricultura mais sustentável tem sua origem bem antes, em outros países, nas décadas de 1920 e 1930, por meio de diferentes correntes de pensamento que apresentavam uma crítica aos padrões industriais de produção e de consumo de alimentos (BRANDENBURG, 2002). Dentre essas correntes, destacam-se a biodinâmica, criada por Rudolf Steiner e difundida, sobretudo, na Alemanha; a orgânica, cujo precursor foi Sir Albert Howard, na Inglaterra; e a biológica fomentada por Hans Peter Muller, na Suíça e que depois terá uma grande repercussão na França e em outros países francófonos. No Quadro 7, a seguir, é apresentada uma síntese dessas correntes, de suas concepções em termos de agricultura e das práticas agrícolas que elas recomendam.

Os ideais dessas correntes precursoras tinham como ponto comum a crítica ao modelo de industrialização da agricultura, servindo de inspiração para o movimento da “agricultura sustentável” ou “agricultura alternativa” nascente no país na década de 1970. Num primeiro momento, inspirado na concepção terceiro-mundista referida anteriormente, o movimento se constitui por grupos de agricultores familiares excluídos das políticas de modernização agrícola, tendo por base concepções místicas e religiosas e sendo considerado por muitos como um movimento passadista ou pré-moderno (BRANDENBURG, 2002).

Quadro 7 - Síntese das principais correntes originárias da agricultura alternativa Correntes e

Fundadores

Ênfase Principais práticas utilizadas

Biodinâmica

Rudolf Steiner - 1924

Focaliza a importância da manutenção da qualidade do solo para a sanidade das culturas vegetais. Para a biodinâmica, a propriedade rural é um organismo, privilegiando-se assim uma visão sistêmica do meio- ambiente. Tem por base um movimento filosófico mais amplo chamado logosofia, criada por Rudolf Steiner e com aplicações em diferentes campos.

• Interação entre produção animal e vegetal. • Respeito ao calendário biodinâmico que

indica as melhores fases astrológicas para a semeadura e demais atividades agrícolas. • Utilização de preparados biodinâmicos,

compostos líquidos elaborados a partir de substâncias minerais, vegetais e animais que visam reativar as forças vitais da natureza.

Orgânica

Sir Albert Howard – 1925/1930

Ressalta a importância da matéria orgânica nos processos agrícolas. O solo não deve ser entendido como um conjunto de substâncias, pois nele ocorre uma série de processos vivos. Posteriormente, na década de 80, é definida pelo departamento de agricultura dos EUA como: “um sistema de produção que evita ou exclui amplamente o uso de fertilizantes e pesticidas, reguladores de crescimento e aditivos para a alimentação animal, compostos sinteticamente”.

• Processo de compostagem para fertilização do solo.

• Rotação de culturas.

• Utilização de estercos de animais. • Adubação verde.

Biológica

Hans Peter Muller - 1930

Método de produção agrícola fundamentado num conjunto de técnicas complexas que excluem a utilização de produtos sintetizados químicos. Apóia- se sobre valores como respeito pela terra e pelos ciclos biológicos, a saúde, o respeito pelo meio ambiente, entre outros.

• Abrange todas as culturas.

• Produtos químicos sintetizados não podem ser utilizados.

• Longa rotação de culturas. • Gestão da matéria orgânica.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Ehlers (1999); Linhares de Assis e Romeiro (2002) e Féret e Douget (2002).

Mais tarde, se fortalece entre as ONGs rurais a proposta da agroecologia, enquanto leitura científica, que serviria de suporte para as diferentes correntes que coexistiam na agricultura alternativa (LINHARES de ASSIS; ROMEIRO, 2002). Pelo fato de considerar as especificidades da realidade latino americana, a agroecologia (cujos elementos são sintetizados no Box 7) terá uma grande repercussão junto às ONGs socioambientais no Brasil. Um dos autores responsáveis por essa repercussão é Miguel Altieri que estuda sistemas de produção tradicionais e indígenas em países da América Latina. Ele propõe a aplicação de princípios e técnicas que conciliem a atividade agrícola e a manutenção das características ecológicas do ambiente, focalizando a questão da sustentabilidade, entendida como um fenômeno que pressupõe a interface entre as preocupações ambientais e socioeconômicas:

Uma abordagem agroecológica incentiva os pesquisadores a penetrar no conhecimento e nas técnicas dos agricultores e a desenvolver agroecossistemas com uma dependência mínima de insumos agroquímicos e energéticos externos. O objetivo é trabalhar com sistemas agrícolas complexos, onde as interações ecológicas e sinergismos entre os componentes biológicos criem, eles próprios, a fertilidade do solo, a produtividade e a proteção das culturas (ALTIERI,2004:18).

Box 7 – Elementos técnicos básicos de uma estratégia de agroecologia

1. Conservação e regeneração dos recursos naturais

a. Solo (controle da erosão, fertilidade e saúde das plantas) b. Água (captação/coleta, conservação in situ, manejo e irrigação)

c. Germoplasma (espécies nativas de plantas e animais, espécies locais, germoplasma adaptado) d. Fauna e flora benéficas (inimigos naturais, polinizadores, vegetação de múltiplo uso)

2. Manejo de recursos produtivos a. Diversificação

- temporal (rotações, seqüências)

- espacial (policultivos, agroflorestas, sistemas mistos de plantio/criação de animais) - genética (multilinhas)

- regional (zoneamento de bacias hidrográficas) b. Reciclagem dos nutrientes e matéria orgânica

- biomassa de plantas (adubo verde, resíduos das colheitas, fixação de nitrogênio) - biomassa animal (esterco, urina)

- reutilização de recursos internos e externos à propriedade c. Regulação biótica (proteção de cultivos e saúde animal)

- controle biológico natural (aumento dos agentes de controle natural)

- controle biológico artificial (importação e aumento de inimigos naturais, inseticidas botânicos, produtos veterinários alternativos, etc.)

- reutilização de recursos internos e externos à propriedade

3. Implementação de elementos técnicos

a. Definição de técnicas de regeneração, conservação e manejo de recursos adequados às necessidades locais e ao contexto agroecológico e socioeconômico.

b. O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica, unidade produtiva e sistema de cultivo.

c. A implementação é orientada por uma concepção holística (integrada) e portanto, não sobrevaloriza elementos isolados.

d. A estratégia deve estar de acordo com a racionalidade camponesa, incorporando elementos do manejo tradicional dos recursos.

Fonte: Altieri (2004: 20)

O fortalecimento da agroecologia é acompanhado da ampliação do interesse das ONGs pela questão do desenvolvimento rural. Conforme sinaliza Ehlers (1999: 74), “vários grupos e entidades que valorizavam o resgate da prática da agricultura tradicional ou defendiam a mínima artificialização dos processos agrícolas, assumiram, no início dos anos 1990, as propostas agroecológicas”. Com isso, na última década, tanto nos discursos como nos programas dessas ONGs, a questão do desenvolvimento sustentável aparece como uma prioridade, atrelada à proposta da agroecologia. Esta última sendo entendida, muitas vezes, como um amplo “guarda-chuva” conceitual28 que permite abrigar várias correntes alternativas (EHLERS, 1999).

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Almeida (2002:31-32) destaca que dependendo da posição social do ‘agente’ que define a agroecologia, tem- se compreensões ou entendimentos diferentes a seu respeito, sendo interpretada como atividade, como prática ou como área de conhecimento. A autora afirma que esses múltiplos significados advém das múltiplas representações que coexistem a respeito da agroecologia, tanto no campo acadêmico, quanto na práxis.

A intervenção das ONGs nos processos de desenvolvimento sustentável engendrou novos desafios para estas organizações, exigindo que elas superem a postura anti- institucional29 que caracterizou a sua ação na origem e que ainda prevalece em alguns discursos e práticas. As ONGs serão então chamadas a atuar sob um novo registro, num contexto de redefinição das concepções e da prática do desenvolvimento, principalmente no meio rural. Como explorado no primeiro capítulo, as noções de sustentabilidade e de território vão redefinir o sentido de ruralidade. O desenvolvimento rural no Brasil se coloca, a partir de então, como uma verdadeira questão social que transcende em larga escala o universo agrícola (ABRAMOVAY, 1998; ZANONI; FERREIRA, 1998 e VEIGA, 2002a e 2202b).

De uma atuação setorial, voltada para o atendimento de demandas específicas, as ONGs rurais passam então a ser solicitadas a agirem como “intermediárias” entre diferentes atores sociais. Essa mudança de papel tem implicações diretas nas suas atividades e nas habilidades requeridas pelos profissionais que formam essas organizações. Mais do que recusar o status quo, elas são chamadas a construir um novo modelo de desenvolvimento no meio rural. Mas, a pergunta que se coloca é até que ponto as ONGs estão preparadas para responder a esse novo desafio? Em outras palavras, elas participam na construção de novos estilos de desenvolvimento no meio rural ou apenas oferecem respostas paliativas?

Poucos estudos em âmbito internacional e menos ainda no Brasil têm analisado essa temática. Examinando tais estudos, pode-se identificar duas grandes interpretações, de certo modo, opostas. A primeira refere-se à inserção das organizações da sociedade civil nos processos de desenvolvimento como um incentivo ao processo de governança democrática. Brassard e Gagnon (2000), tratando de uma pesquisa feita em 1995 com líderes que trabalham em comitês de desenvolvimento local no Québec, vão ilustrar bem essa perspectiva. Segundo os autores, os comitês facilitam as parcerias multiescalares, multiterritoriais e multisetoriais, pois:

Fazem valer uma ‘outra’ forma de conceber o desenvolvimento sobre um modo consensual e participativo. Um desenvolvimento governável, no qual é possível pensar e agir localmente sobre os recursos patrimoniais, provenientes da riqueza coletiva (op. cit: 185).

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Analisando o caso Rede TA, Abramovay (2000) vai relacionar essa postura anti-institucional com o ambiente cultural católico mais vasto onde estavam inseridas as ONGs. Esse ambiente caracteriza-se pela crítica ao capitalismo e aos processos de modernização; pela idéia de conversão dos pobres em sujeitos do seu destino e pela ética do aprendizado com as bases.

Nesta interpretação, as ONGs ou as associações agiriam como “catalisadoras” do desenvolvimento, principalmente pelo fato de permitirem a participação dos cidadãos nas decisões e nas ações de desenvolvimento. Os autores que apóiam essa interpretação afirmam que o consenso democrático seria construído entre os diferentes agentes, a partir de uma partilha intersubjetiva. Esta partilha seria fundada no sentimento de pertença a um coletivo; os atores buscariam um acordo sobre uma situação de ação, a fim de coordenar consensualmente seus planos e suas ações (LAVILLE, 1997b). A idéia de consenso é acompanhada da noção de parceria que se opõe à visão hierárquica e burocrática e traz à tona o modelo da “organização emergente”, permitindo proposições ascendentes na elaboração e implementação dos projetos de desenvolvimento (DENIEUIL, 1997). Segundo Gaudin (2002: 122), nesta interpretação: “a teatralidade clássica do soberano reinando sobre a sociedade inteira é substituída por outra cena: aquela da negociação horizontal, igualitária e pacífica entre os atores sociais”.

A segunda interpretação é mais crítica e denuncia que a defesa de uma “democracia de proximidade” mascara a valorização das simples relações de força no espaço público, o que leva a sua crescente privatização (GAUDIN, 2002). Assim sendo, a inserção das organizações da sociedade civil na cena do desenvolvimento poderia contribuir para a instauração de uma democracia setorial, em que os interesses particulares seriam privilegiados sobre o interesse geral. As decisões não seriam consequência de uma deliberação pública, mas da negociação entre atores “que se recrutam e se escolhem entre eles por cooptação e em função das suas posições adquiridas” (HERMET; KAZANCIGIL; PRUD’HOMME, 2005: 10). Isso significaria transformar as operações de desenvolvimento em um conjunto de intervenções localizadas, sem contribuir para transformações de maior escala (FAURÉ, 1998).

Para esses autores, a idéia de governança democrática é indissociável da ideologia neoliberal, ligada aos ideais da boa gestão pública, de liberalização dos mercados e de privatização dos serviços coletivos. O fortalecimento da sociedade civil e das ONGs estaria então umbilicalmente ligado a esses processos (ATLANI, 2005). De forças supostamente de representação, as ONGs seriam vistas como instrumentos da implementação das agendas da “boa governança” nos países do Sul. Come descreve Dorier-Apprill e Meynet (2005: 35) trata-se, “por meio das ONGs e sob a cobertura da participação, de modificar em profundidade e pela base as estruturas sociais e os modos de funcionamento dos países

atingidos, no sentido de uma adaptação à corrente neoliberal”. A sociedade civil é aqui interpretada como um conjunto heterogêneo, onde imperam múltiplos interesses que, na maioria das vezes, levam a desagregação:

Os campos e os territórios concretos de intervenção são constantemente disputados. As instituições públicas elas mesmas (ou o que resta delas) se acham colocadas em competição com as novas instâncias de regulação. [...] Se há partilha de fato das tarefas entre os diferentes interventores, não há coordenação nem no seio da esfera privada, nem no seio da esfera pública, entre municipalidades e serviços descentralizados do Estado. As tensões são muito grandes (DORIER-APPRILL; MEYNET, 2005: 35).

As ONGs seriam vistas como verdadeiras empresas, em que as questões técnicas imperam sobre os princípios políticos. O objetivo maior dessas organizações seria a garantia de sua própria sobrevivência institucional e, para tanto, elas buscariam a todo custo obter novos financiamentos, por meio de novos projetos. Analisando a realidade dos países da África, Bierschenk, Chauveau e Olivier de Sardan (2000) vão caracterizar as ONGs que atuam nesse padrão como “courtiers en développement” (corretores do desenvolvimento), definidos pelos autores como:

atores sociais implantados na arena local (na qual eles exercem um papel político mais ou menos direto) que servem de intermediários para drenar (para o espaço social correspondente a essa arena) recursos exteriores provenientes da ajuda ao desenvolvimento. [...] os corretores do desenvolvimento são personagens chaves da irresistível busca de projetos implementados nas comunidades africanas ou em torno delas (op. cit.: 07).

Essas duas interpretações têm a sua coerência e, portanto, serão levadas em conta neste trabalho; elas apresentam diferentes padrões de atuação das ONGs, permitindo analisar os avanços e os limites da sua inserção nos processos de desenvolvimento. Por outro lado, elas veiculam visões extremas e pouco adequadas à complexidade das situações reais. Frente à diversidade dessas situações, torna-se difícil estabelecer generalizações e visões dicotômicas perdem valor explicativo. Como explorado anteriormente, a tensão entre a lógica setorial, baseada na disputa, e a lógica de coordenação, que exige compromissos, é inerente às novas formas institucionais que visam colocar em prática o desenvolvimento. Além disso, as formas de regulação da ação coletiva na modernidade transcendem a ação de um ator específico e resultam de um processo social que é construído. Portanto, atribuir às ONGs ou aos atores da sociedade civil a responsabilidade sob os rumos desse processo, parece limitado e redutor como interpretação.

Por isso, as cenas de desenvolvimento nas quais se inserem as ONGs serão analisadas enquanto espaços plurais, compostos por múltiplos grupos de atores e sistemas de ação. No próprio campo da sociedade civil essa complexidade é claramente percebida. Tratando deste aspecto, Pesche (1998) afirma que os grupos que antes eram representados pelas ONGs (organizações de agricultores, sindicatos, coletividades locais, etc.) se institucionalizam e se tornam, em alguns casos, concorrentes das próprias ONGs, com uma legitimidade mais reconhecida do que a delas. A capacidade de mobilizar e de construir articulações com os demais atores sociais (não apenas na sociedade civil, mas também no âmbito do Estado e do mercado) se torna então crucial para as ONGs e para a manutenção da sua legitimidade. Neste sentido, novas questões tornam-se relevantes, a exemplo da necessidade de transparência, além da capacidade de remeter-se à crítica e à avaliação. Como argumenta Olivier de Sardan (1998), as ONGs não são nem a população destinatária, nem os financiadores. Portanto, seu papel de mediação é central e se efetua em todos os níveis, desde as arenas internacionais até às sociedades locais.

Revel e Roca (1998) vão se referir a esse processo como a passagem de uma lógica de projeto para uma lógica de desenvolvimento. Apesar do projeto continuar sendo o instrumento privilegiado da intervenção nos processos de desenvolvimento, a forma de colocá-lo em prática muda. Esta exige a articulação de diferentes atores sociais, a fim de promover uma coerência nas ações e uma visão de mais longo prazo. Os projetos deixam de ser entidades em si, para serem vistos como interfaces entre vários níveis de coordenação (CHAUVEAU; LAVIGNE DELVILLE, 1998). Segundo esses autores, os projetos não têm uma existência própria; eles são formados por um sistema de interações e renegociações constantes, entre múltiplos grupos:

Nem a demanda, nem a oferta são autônomas em relação à arena política local. [...] A demanda e a oferta são necessariamente construídas. [...] É necessário partir do princípio que os objetivos e os meios do projeto não podem ser definidos senão pelo resultado das confrontações e dos compromissos que se desenharão, progressivamente, em torno da prática do projeto (op.cit: 202-4).

Para tanto, a criação de espaços de coordenação ou de mediação entre as diferentes estratégias e interesses em jogo (espaços públicos) torna-se necessária. Tais mecanismos de regulação transcendem a atuação de cada ator em separado e exigem uma integração superior, já que se configuram como estruturas de deliberação e de decisão legítimas. Esse processo

pressupõe a confrontação entre os diferentes atores implicados, mas também o reconhecimento mútuo, apesar das posições diferentes:

Falar de negociação obriga a se perguntar se os protagonistas – em particular aqueles que estão em posição de domínio – estão realmente prontos a aceitar que o resultado final da negociação possa ser diferente daquilo que eles queriam no início. Esse processo exige atenção às condições concretas de negociação, quer dizer a repartição de poderes (CHAVEAU; LAVIGNE DELVILLE, 1998: 206).

Desta forma, reconhecer o conflito e o confronto, não significa a impossibilidade de construção de formas de regulação coletiva e nem de compromissos entre os atores. Entender, a partir da ação das ONGs, como se constrói essa dinâmica e o contexto onde ela se produz ou, ainda, quais os obstáculos que impedem a sua concretização, assim como as suas conseqüências, constitui o principal objetivo deste trabalho. Ele será então explorado nos próximos capítulos.

CAPÍTULO 3 - DESENVOLVIMENTO RURAL EM SANTA CATARINA: