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CAPÍTULO 1 CONCEITUANDO O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

1.4 Considerações finais: uma sinopse do enfoque analítico

2.1.1 Historiografia da gênese e da transformação das ONGs no Brasil

2.1.1.3 O período autoritário: a sociedade civil como espaço político e o surgimento das

Após um curto período de democracia – entre a segunda metade dos anos 1950 e o início dos anos 1960 –, o País volta a ser governado por um regime de exceção. Esse novo período de autoritarismo é caracterizado por dois momentos interdependentes e fundamentais para a compreensão da composição da sociedade civil brasileira. Por um lado, assiste-se ao recrudescimento da tutela do Estado nas questões civis, através da instauração do regime militar e, com ele, das estruturas hierarquizadas e centralizadas para a gestão do social: Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o Banco Nacional de Habitação (BNH), o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), entre outros. Além disso, a ditadura faz com que muitas das iniciativas sociais que não pertenciam ao aparato governamental fossem consideradas clandestinas. Fernandes (1994: 34) descreve esse período, ressaltando que:

os mecanismos de comunicação civil com as esferas superiores da vida pública foram estrangulados (partidos, mídia, etc.). [...] o movimento sindical que constituía no passado a coluna vertebral das mobilizações populares, foi violentamente reprimido. Em suma, reduziu-se ao mínimo a participação cívica no Estado e nas empresas.

Por outro lado, é nessa mesma época que começam a florescer em diferentes regiões do País movimentos sociais de novo tipo; fenômeno que passará a ser analisado por vários autores como um marco na transição democrática e no fortalecimento da sociedade civil brasileira. Pela sua atuação localizada, esses “novos movimentos sociais” puderam se multiplicar rapidamente, já que conseguiram ficar, de certa forma, fora da atenção direta do Estado. Scherer-Warren (1987) descreve-os como organizações coletivas que lutavam contra as formas tradicionais de fazer política. Eles distinguem-se dos antigos movimentos sociais pela luta voltada para o reconhecimento e a inserção social do “povo brasileiro”, termo aqui entendido como mais abrangente do que a noção de classe operária. Esse “povo” vai buscar a sua afirmação cidadã enquanto sujeito portador de direitos. Para Dagnino (2002), o surgimento desses movimentos vai redefinir a noção de cidadania e permitir a construção de uma dimensão propriamente pública na sociedade brasileira, mostrando que todos têm direito a ter direitos. Já Fernandes (1994) define os novos movimentos sociais como formas mais

abrangentes e plurais de atuação na esfera pública, as quais não negam a luta de classes, mas a deslocam da posição central que esta assumia na ação dos movimentos tradicionais.

Os chamados “novos movimentos sociais” serão então marcados pela diversidade de origens, de ideais defendidos e de práticas. No rol dos mais importantes incluem-se: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as associações de moradores e os grupos integrantes dos chamados “novos movimentos” no meio rural e urbano. As CEBs7, organizações populares impulsionadas por setores progressistas da Igreja Católica e propagadores da Teologia da Libertação, promoviam a ação coletiva ancorada fortemente no território, tanto no meio urbano quanto no rural. Redes de solidariedade eram criadas no espaço local das paróquias, incentivando práticas comunitárias que acabavam por instaurar verdadeiros espaços públicos independentes da ação governamental, os quais foram essenciais no apoio ao “novo sindicalismo” no campo e ao fortalecimento das associações de moradores nas cidades.

A rápida ampliação do número de associações de moradores, ligadas ou não à Igreja Católica, marcou o cenário político, notadamente nos centros urbanos. Tratava-se também de associações ancoradas no território (bairros) que buscavam revigorar gradativamente a prática da cidadania. Por sua vez, o florescimento dos “novos movimentos” intensificou, mais tarde, o processo de fortalecimento de “outras” identidades coletivas, fora da esfera das relações de trabalho, ao propiciar a livre associação de indivíduos, tendo como finalidade a defesa dos direitos e interesses dos negros, mulheres, idosos, crianças, jovens, entre outros. No meio rural, esse fenômeno se concretiza, sobretudo, com a ação do “novo sindicalismo”8 e dos movimentos dos trabalhadores sem terra, das mulheres agricultoras, dos atingidos por barragens, dos índios e dos seringueiros. A essas iniciativas, adicionam-se os grupos ambientalistas, configurando o início do movimento ecológico no país, o qual será fortemente impulsionado, mais tarde, com a realização da ECO-92, no Rio de Janeiro, como visto no capítulo precedente.

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Como será explorado no capítulo quatro, duas das ONGs analisadas (a APACO e o Centro Vianei de Educação Popular) têm sua origem ligada às CEBs.

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Segundo Martins (1981:67) apud Scherer-Warren (1987:87): “se até 1940 o messianismo e o cangaço foram formas dominantes de organização e manifestação de rebeldia camponesa, a partir dos anos 1950, a liga e o sindicato serão as formas mais importantes de organização da luta política dos camponeses, ainda que convivendo com a persistência do messianismo e do banditismo e com outras formas de luta e de resistência”.

É neste quadro de coações impostas pela ditadura militar e de afirmação dos novos movimentos sociais que surgem as primeiras ONGs no País. Essas organizações, no início, não se reconheciam como ONGs, mas apenas como centros de assessoria aos movimentos nascentes: “não havia entre seus agentes a representação de pertencimento a um universo institucional particular” (LANDIM, 2002: 18). A identidade das ONGs estava portanto umbilicalmente ligada aos novos movimentos sociais (e aos segmentos da Igreja Católica que os apoiavam). Algumas delas, inclusive, existiam a serviço desses movimentos e eram tão mais legítimas quanto mais subordinadas aos interesses desses últimos. Sendo assim, da mesma forma que os movimentos, a postura das ONGs, na sua origem, será caracterizada por uma atitude de contraposição a um Estado que estruturou historicamente seus vínculos com a sociedade, a partir de padrões clientelistas, populistas e autoritários (detalhados no Box 4, abaixo). Um dos objetivos principais dos movimentos e das organizações populares nessa época era então a “construção de um projeto alternativo de democracia” (CHAVES TEIXEIRA, 2003:40) e por isso eles vão conceber a sua atuação contra o Estado durante todo período de ditadura militar.

Box 4 – As gramáticas tradicionais que estruturam a relação Estado, sociedade e as culturas políticas predominantes no Brasil

Como define Da Matta (1991), a cidadania não é apenas um conceito moral, invariável. A cidadania é um papel social que se estrutura a partir das condições sociais, culturais e históricas e das instituições existentes em cada país. No caso do Brasil, coexistem diversas concepções de cidadania ou padrões de relações entre o Estado e a sociedade e entre as esferas pública e privada. Esses padrões podem ser caracterizados como “gramáticas políticas” (NUNES, 1997) que se formam ao longo da história e vão se sobrepondo umas às outras. Essas diferentes gramáticas não são apenas contraditórias, mas elas se complementam, coexistindo no espaço público nacional. De acordo com Nunes (1997), três gramáticas são estruturantes no caso brasileiro:

• O clientelismo é a gramática mais tradicional, forjada desde o Brasil Colônia. Neste caso, a cidadania é construída a partir das relações pessoais, tendo por base o reconhecimento. A relação entre o Estado e a sociedade se funda nessas relações sempre assimétricas. Além disso, entre os diferentes níveis de governos e poderes se forma também uma complexa rede de corretagem política. As leis universais assumem, nesta gramática, um caráter negativo e aquele que se submete à autoridade da lei é visto como um desprivilegiado, pois não dispõe de relações pessoais às quais possa recorrer.

• O corporativismo de Estado, fortalecido na Era Vargas, é um sistema de mediação de interesses baseado num número limitado de categorias - compulsórias, não competitivas, hierarquizadas e funcionalmente separadas - as quais, além de serem reconhecidas e subsidiadas, são controladas politicamente pelo Estado.

• O insulamento burocrático, gramática predominante no Estado autoritário, caracteriza-se pela redução do escopo da arena em que os interesses pessoais possam interferir na ação Estatal, por meio do fortalecimento de uma tecnoburocracia (ou de uma burocracia insulada) que atua independentemente da esfera política. Esta gramática tende a enfraquecer todas as instituições políticas fora do âmbito do aparelho do Estado.

É importante ressaltar que esse posicionamento, tanto das ONGs como dos novos movimentos sociais, deve ser entendido em seu contexto, ou seja, no seio de um regime ditatorial em que a possibilidade de uma participação mais ampla nas questões do Estado nem se colocava (DAGNINO, 2002). Essa concepção, predominante na postura das ONGs da época, e ainda presente atualmente, pode ser ilustrada por suas matrizes ideológicas e discursivas predominantes (SCHERER-WARREN, 2001) – em especial a do neo-marxismo, do neo-anarquismo e da Teologia da Libertação (descritas no Box 5). Entretanto, tal posição deixará de ser hegemônica na década de 1990, a partir do processo de redemocratização que fará emergir novas questões e desafios para as ONGs, influenciando na recomposição de sua identidade e de seus papéis, como será tratado mais detalhadamente a seguir.

Box 5 - Matrizes ideológicas das ONGs latino-americanas

Segundo Scherer-Warren (2001), as orientações ideológicas ou matrizes discursivas que tipificam a trajetória das ONGs latino-americanas podem ser agrupadas em quatro tendências. A autora esclarece que essas tendências são tipos ideais que na prática, frequentemente, se mesclam.

• Neo-marxista: a transformação social é percebida a partir da dinâmica da luta de classes e da construção de uma nova hegemonia, visando tomar o poder do Estado. As ONGs aqui tem um papel de facilitador deste processo, por meio da promoção da educação popular, da consciência de classe e da formação das lideranças políticas.

• Neo-anarquista: a transformação social é concebida a partir de mudanças que ocorrem nas bases, nas relações micro, no cotidiano dos grupos sociais. As ONGs nesta perspectiva rejeitam, sempre que possível, as articulações com a política institucional, considerada como centralizadora e autoritária. Elas são concebidas como parte do movimento social das bases, não devendo ter (pelo menos em princípio) um papel privilegiado na direção dos movimentos. Neste sentido, a ONG e o movimento se confundem.

• Teologia da Libertação: a transformação social parte da mudança ética (cristã) do comportamento individual, baseada nos princípios de solidariedade, espírito comunitário e de capacidade crítica dos oprimidos, visando a construção de uma sociedade livre de todas as formas de opressão. Esse processo é definido como a “caminhada da liberação”. Há uma valorização do saber popular, segundo o qual o processo de conscientização do povo resulta da troca de informações e experiências que pode ser instrumentalizado, por intermédio da pedagogia do “ver, julgar e agir” das pastorais. Nesse sentido, o papel das ONGs é de coordenar e estimular os grupos de reflexão.

• Articulista: prevê que a expansão da democracia se dá a partir da expansão da organização da sociedade civil, que poderá incluir as múltiplas esferas do social (comunitário, gênero, étnica, ética). Esta expansão da democracia popular tem como contrapartida a diminuição e descentralização do poder do Estado. A articulação é aqui percebida como rede que se constrói enquanto complementaridade de ideais e experiências de atores sociais plurais e diversificados. As ONGs, segundo essa concepção, têm também o papel de mediadoras entre as organizações e os movimentos sociais específicos e outros atores sociais, econômicos e políticos (incluindo-se aí a administração estatal). Prevê, todavia, uma autonomia tanto em relação aos movimentos, quanto em relação aos partidos políticos.

As ONGs serão assim criadas a partir do apoio dos novos movimentos sociais e da Igreja e mantidas, inicialmente, pelos financiamentos oriundos da cooperação internacional. As ONGs internacionais9 necessitavam de parceiros locais que fossem capazes de elaborar projetos e acompanhar a sua execução, a fim de promover o desenvolvimento nos países do Sul. As parcerias foram então sendo firmadas, tornando as ONGs locais “mediadoras” entre os movimentos, as organizações populares e os financiadores e, permitindo a manutenção de uma relativa autonomia em relação ao Estado.

O próprio termo ONG foi cunhado na esfera das relações internacionais, sendo posteriormente reapropriado pelas organizações brasileiras, como aconteceu em vários outros países do Sul. O termo aparece pela primeira vez em um documento das Nações Unidas, em 1945, designando iniciativas da sociedade civil comprometidas com a reconstrução da vida social após a II Guerra Mundial. Em geral, o termo era adotado referindo-se às ONGs do Norte, que se distinguiam pela sua atuação transnacional. As ONGs do Sul vão se diferenciar dessas últimas pelo fato de terem sido caracterizadas, no início, como “organizações locais que atuam como intermediárias, em relação com um financiador do Norte, e se articulam com uma miríade de grupamentos e associações locais” (RYFMAN, 2004: 54). Todavia, essa caracterização vai ser redefinida, a partir da década de 1990, quando muitas ONGs do Sul vão passar a atuar em outros níveis para além do local, seja na esfera nacional, seja no âmbito internacional.

Numa visão geral, observa-se que o traço marcante do movimento nesse período é o foco colocado na ampliação do espaço político, por meio de um processo de re-significação das práticas democráticas. Para Telles (1987:60):

É perante este ‘novo’ Estado, que surge em 1964, que a sociedade civil reaparece como tema de reflexão política e intelectual. Não mais como tradicionalmente ocorreu na prática e no pensamento político brasileiro, enquanto evidência de sua impotência, por onde se justificava e se exigia a existência de um Estado protagônico, sujeito exclusivo de uma ação capaz de eficácia histórica. A sociedade reaparece como lugar de política, ou melhor, como alternativa política frente ao Estado.

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A convenção 124 do Conselho Europeu define como ONG internacional: “as associações, as fundações ou outras instituições privadas que atendem aos seguintes critérios: (1) sejam sem fins lucrativos e de utilidade internacional; (2) tenham sido criadas por ato que releve do direito interno de um país; (3) exerçam sua atividade efetiva em pelo menos duas nações, e (4) tenham sua sede estatutária sobre o território de um país e sua sede real sobre o território desse país ou de um outro país (RYFMAN, 2004: 21).

Desse modo, é no contexto da repressão política perpetrada pela ditadura militar que se observa a formação de uma espécie de embrião do que se poderia chamar de uma sociedade civil ativa brasileira. Esta última caracteriza-se pela sua auto-mobilização e auto- criação, mas também pela sua institucionalização (COHEN; ARATO, 1994). Neste sentido, além de fazer emergir múltiplas identidades coletivas para além da dicotomia capital versus trabalho, este movimento promove a criação de um grande número de organizações formais e de redes, o que vai engendrar, mais tarde, o estabelecimento de leis e de instâncias representativas que buscam concretizar no espaço público a legitimação de seus ideais.

2.1.1.4 A fase de redemocratização: complexificação da sociedade civil e recomposição