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Esta pesquisa foi delineada com o objetivo de conhecer algumas repercussões do HIV/AIDS no relacionamento conjugal e familiar de um casal heterossexual na idade madura. Utilizando a pesquisa qualitativa, que possibilitou uma investigação em profundidade dos fenômenos relacionados à aids na família, estudamos o processo de construção da relação conjugal, conhecemos os impactos da infecção pelo vírus HIV na relações familiares e sociais e identificamos as mudanças nessas relações após o diagnóstico da doença. Além disso, foi possível conhecer sobre o tratamento atual da aids, as mudanças na rotina e de comportamento para prevenção de doenças oportunistas e em busca de melhor qualidade de vida.

O presente estudo demonstrou e confirmou a complexidade das relações onde estão presentes o HIV e a aids. A aids é uma doença que envolve o indivíduo física, psíquica e emocionalmente, afetando suas redes de relacionamentos, promovendo mudanças e transformações na sua vida e de sua família.

Pesquisas têm mostrado que a aids vem crescendo no grupo estudado e transformando seu perfil epidemiológico, gerando necessidade de rever os princípios da educação sexual, base para prevenção da doença. Apesar da conscientização e quantidade de informação sobre formas de transmissão, métodos de prevenção e tratamento, ainda existem muitos mitos e crenças estigmatizantes em relação à doença. A descoberta da aids em uma família causa impacto nas relações familiares, gera medo e raiva. O momento do diagnóstico é marcado pelo medo da morte, da discriminação e do estigma. E nesse momento a família é fonte de apoio e importante agente de resiliência.

Verificou-se que a aids gera mudanças significativas nos sistemas familiares, levando a aproximações e distanciamentos seguros e necessários. Além das relações familiares, elas ocorrem nas relações afetivas, sociais e profissionais, promovendo mudanças nos papéis. O

preconceito e a discriminação são os principais fatores citados como causadores de sofrimento e agentes dessas mudanças.

Os resultados mostram que casais que possuem relacionamento estável e duradouro não se percebem como vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, como o HIV/AIDS, tendem a não negociar o uso de preservativo e não assumem comportamento sexual seguro, uma vez que a aids continua sendo associada aos grupos de risco e considerada como “doença do outro”. Mesmo os casais ditos tradicionais, como o casal estudado, estão susceptíveis à infecção pelo vírus HIV.

A aids, conforme os resultados apresentados, é ainda uma doença estigmatizante, permeada por crenças e preconceitos que dificultam a sua prevenção e tratamento. Torna-se fundamental atuar sobre essas crenças a fim de promover o sexo seguro, o uso de preservativo e a prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. Mas, devido à sua complexidade, essa tarefa se torna difícil. Para que isso ocorra e para que as campanhas se tornem cada vez mais eficazes, faz-se necessário conhecer os casais que estão se infectando, assim como fizemos nesse estudo, levantando dados sobre o sistema familiar, padrões e crenças dominantes, formas de comunicação e negociação, papéis desempenhados e seus significados dentro da família. A abordagem sistêmica mostrou-se eficaz para análise dos dados da pesquisa dada sua visão complexa dos fenômenos, tal como é a aids e suas repercussões.

Como vimos, a aids é hoje uma doença sem grupos de risco. Ela atinge pessoas, independente de raça, gênero, idade ou orientação sexual. E, sendo hoje a principal via de transmissão do vírus HIV o comportamento sexual, o que determina a vulnerabilidade à infecção é o comportamento sexual de risco, sem uso de preservativo.

Ocorre que culturalmente em nossa sociedade existe a crença de que as relações conjugais estáveis e duradouras são supostamente monogâmicas e não precisam do uso de preservativo, uma vez que existe um contrato implícito de fidelidade. Isso, de certa forma

isentou de risco os grupos de pessoas em relacionamentos estáveis, tirando-as do foco das abordagens preventivas durante muito tempo, o que só começou a mudar com a mudança do perfil epidemiológico da aids no Brasil e no mundo.

Esse quadro ficou claro nesse estudo que mostra um casal tradicional, que se formou a partir de um “namoro à moda antiga” e que estão juntos há 27 anos, seguindo padrões tradicionais de relacionamento, onde, de acordo com as crenças e estigmas em relação à aids, não caberia a infecção pelo vírus HIV. Daí a importância de se trabalhar crenças construídas e transmitidas ao longo dos anos e das gerações sobre sexualidade (doenças sexualmente transmissíveis, negociação do uso de preservativo), infidelidade, casamento, papéis, questões de gênero e poder.

Passado o impacto inicial da descoberta do diagnóstico da aids, marcado também pela revolta em se ver nessa situação, vem o momento de transformação e adaptação às mudanças necessárias para a reestruturação familiar e homeostase do sistema. A infecção pelo vírus HIV gera mudanças significativas na vida do indivíduo, na relação conjugal e no sistema familiar e social. Estas mudanças, de acordo com os dados de nosso estudo, são decorrentes da nova rotina familiar devido aos tratamentos médico-hospitalares, do preconceito e afastamento de familiares e amigos e também das transformações no sistema, no que diz respeito às regras, às mudanças nos papéis desempenhados e aos padrões de relacionamento, inclusive no contexto profissional. De acordo com os valores e contexto sócio-cultural do casal pesquisado, o afastamento do trabalho significa a perda do poder construído em torno da figura do provedor da família. Tal situação leva à renegociação dos papéis dentro da família e exige de seus membros flexibilidade para exercer outros papéis e assumir novas responsabilidades dentro da família.

A discriminação do doente de aids está na origem dos principais problemas enfrentados por essas pessoas. Uma forma de se proteger do preconceito, como vimos nesse

estudo, é tornar a aids um segredo, evitando ser estigmatizado ou rotulado pelas pessoas do convívio pessoal e íntimo. No caso dos participantes deste estudo, na tentativa de preservar as relações e os ganhos que uma vida social saudável oferece, a aids se tornou um segredo na vida do casal que optou por não revelar a soropositividade à sua nova rede social. No caso de Regina e Humberto, não só a aids se tornou um segredo, mas também a forma como se deu a infecção pelo vírus HIV.

Identificamos em nosso estudo falas, comportamentos e padrões de relacionamento do casal participante e sua família que nos remetem às discussões atuais sobre gênero e poder no interior do casal e da família. Questões relacionadas ao relacionamento conjugal desde a sua formação, namoro, relacionamento no casamento, o papéis familiares, a organização do casal na criação dos filhos, até a forma de contaminação do marido pelo HIV e posterior contaminação da esposa, a forma como ela lidou com isso e seguiu, cuidando dele até hoje. Esses dados chamaram nossa atenção e não foi fácil passar por eles sem nos determos. Mas optamos por não discuti-los, para não fazê-lo de forma superficial ou ingênua, uma vez que o referencial teórico não nos ajudaria nessa tarefa e teríamos de busca fontes externas, o que levaria tempo. Assim, pretendemos nos debruçar sobre esses dados posteriormente, na produção de um artigo.

Para pesquisas futuras sugerimos estudos sobre educação sexual que promova mudanças no comportamento sexual de homens e mulheres e pesquisas sobre questões de gênero e papéis relacionados com a negociação do sexo seguro. A finalidade dessas pesquisas seria buscar estratégias de campanhas que promovam mudanças nas crenças em relação à aids, desde a forma de infecção até o tratamento. Além disso, é importante desmitificar crenças construídas em torno do HIV/AIDS que geram tanto preconceito e danos emocionais aos doentes, que além de precisarem se reestruturar por causa da saúde física que requer medicamentos diários e consultas periódicas têm que lidar com o preconceito e a solidão.