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1.4 – USO DE PRESERVATIVO E AS TRANSFORMAÇÕES NA SEXUALIDADE A PARTIR DA AIDS

Até o surgimento da aids no Brasil, informações sobre o uso do preservativo estavam associadas à contracepção e, nesse contexto, o preservativo era pouco referido como método anticoncepcional. Em 1986, apenas 5% das mulheres casadas ou unidas referiram o preservativo como método contraceptivo atual (BERQUÓ; BARBOSA; LIMA, 2008.).

Segundo esses autores, em 2005 o uso do preservativo por pessoas somente com parcerias eventuais entre homens foi 81,6% e entre mulheres 66,0%, atingindo 92% entre os homens de 16 a 24 anos. A região Centro-Oeste apresentou a menor proporção (64,0%) de uso de preservativo. Observou-se o uso consistente do preservativo entre pessoas solteiras, e menor para casadas ou unidas. A análise mostrou que, em 2005, o uso do preservativo esteve associado à idade, escolaridade, situação conjugal e religião. Jovens entre 16 e 24 declararam maior frequência do uso consistente do preservativo, declinante com a idade; pessoas com no máximo ensino fundamental apresentaram a menor proporção de uso e apenas 17% das pessoas com parcerias estáveis declararam uso de preservativo de forma consistente. Mais homens e pessoas mais jovens relataram o uso do preservativo na última relação sexual e a maior escolaridade aumentou a chance de uso do preservativo, maior também entre pessoas solteiras e aquelas com parceira eventual. As escolhas realizadas por homens e mulheres ao longo de suas trajetórias sexuais estão intimamente conectadas à existência de diferenças de gênero no que se refere às concepções de vínculo afetivo-sexual.

Ainda, segundo esta pesquisa, entre pessoas em relações estáveis, mas com parcerias eventuais, o uso do preservativo cresceu de 24,5% em 1998 para 46,3% em 2005. Outro dado importante é que entre casados/unidos o uso consistente do preservativo diminuiu com a idade, de 17,3% na faixa etária 16-24 anos para 7,1% na faixa 45-65 anos. Entre os solteiros essa queda se observa a partir da faixa dos 35-44 anos. O uso consistente do preservativo entre homens foi de 9,1% entre casados/unidos, 27,3% entre viúvo/separado/divorciado e 52,8% entre solteiros. As mulheres apresentaram a mesma tendência, com magnitude maior para as solteiras.

Os resultados desse estudo mostram aumento significativo no uso do preservativo nos últimos anos, mas também a necessidade de reflexões sobre políticas de acesso a informações e ações de prevenção voltadas para a população com menor nível de instrução e aprofundar a

discussão em torno de ações que visem aumentar o uso do preservativo, especialmente entre populações mais vulneráveis como mulheres em parcerias estáveis.

Para Finkler (2004), o uso do preservativo, método masculino, depende de acordo prévio e explícito entre os parceiros, prática que não é tão usual entre homens e mulheres em nosso cultura, marcada por questões de gênero que influenciam as possibilidades de negociação e que estabelecem o masculino como ativo e o feminino como passivo, limitando as possibilidades e deixando as mulheres em desvantagem.

Em seu artigo sobre conhecimento e percepção de risco da população brasileira sobre o HIV e a aids, Ferreira (2008) observou que houve aumento no nível de informação da população em relação ao uso de camisinha (69,2% para 90,2%), bem como sobre a utilização de seringas e agulhas em situação de alto risco para contaminação. Em relação ao nível global de informação sobre HIV e aids, o percentual de pessoas que atingiram o nível mínimo de informação cresceu de 51,7% em 1998 para 57,2% em 2005, sendo que o diferencial existente entre os jovens do sexo masculino e feminino quanto às formas de transmissão do vírus e situações de risco desapareceu em 2005.

Os jovens brancos apresentaram aumento no grau de conhecimento em relação ao HIV e a aids e pessoas mais escolarizadas também apresentaram maior nível de informação e percepção de risco. Cresceu a proporção de pessoas que se mostraram mal informadas em relação a determinadas questões, como o contato social com portadores do HIV e doentes de aids. Ferreira (2008) conclui que, apesar do aumento no nível de conhecimento geral, esse cenário evidencia a necessidade de novas ações e programas de prevenção ao HIV.

Para Fernandez e Horta (2005), com o surgimento da aids, a humanidade tem sofrido grandes mudanças em sua sexualidade. Pontos de reflexão, como a prevenção, começaram a surgir entre as pessoas, mas ainda se esbarra em muitos preconceitos e medos frente a uma doença que tem a questão da corporalidade estigmatizada e assustadora, sendo pouco

discutida francamente entre alguns casais. Com isso, muitos deles podem ser acometidos por essa infecção, formando os pares discordantes ou sorodivergentes3.

Para Carvalho (2003), a intimidade entre as pessoas tem também sofrido alterações, bem como a construção de crenças sobre a sexualidade, concepção de mulher e seus papéis. Por combinar comportamento sexual e doença, a aids acarretou desafios para a ciência, ampliou os movimentos sociais e conferiu maior visibilidade a questões relacionadas à sexualidade (GALVÃO, 2000).

No estudo realizado por Paiva, Aranha e Bastos (2008) sobre o comportamento sexual e as percepções da população brasileira sobre o HIV e a aids, foram abordadas questões sobre sexualidade. Para os autores, compreender atitudes e valores em relação à sexualidade é fundamental para se planejar iniciativas no campo da prevenção e da promoção da saúde, das políticas públicas no campo da educação e nas iniciativas de proteção e promoção de direitos. Vários estudos têm indicado que a religião, a família e os grupos aos quais as pessoas pertencem, afetam suas atitudes e sustentam um conjunto de diferentes normas em relação à sexualidade.

A pesquisa citada acima demonstrou que a maioria dos brasileiros entrevistados escolheu como significado para o sexo a alternativa “sexo é uma prova de amor pelo parceiro” (46,8% das mulheres e 39,0% dos homens). Além disso, o estado conjugal se confirmou como aspecto importante do contexto que define a atitude das pessoas diante da vida sexual, principalmente no que diz respeito ao uso de preservativo e à fidelidade. À medida que a escolaridade e a renda familiar aumentaram, o sexo ganhou maior importância como fonte de prazer e decresceu sua relevância enquanto função reprodutiva e prova de amor.

Ainda segundo esse estudo, 97,5% dos entrevistados foram favoráveis aos jovens de 15 a 19 anos serem informados pela escola sobre métodos contraceptivos e preservativo, sendo que 94,9% também foram favoráveis à facilitação do acesso ao preservativo nos

serviços de saúde e 83,6% na escola. A opinião favorável à fidelidade na vida a dois correspondeu a mais de 90% das respostas em 1998 e permaneceu assim em 2005. O apoio à masturbação masculina cresceu de 41,7% em 1998 para 56,3% em 2005 e à feminina também (35,9% em 1998 e 54,3% em 2005). A proporção dos que indicaram tolerância ao sexo homossexual também aumentou (5,2% em 1998 para 14,6% em 2005), embora ainda represente a opinião de uma minoria.

A partir dos resultados dessa pesquisa, os autores concluíram que não é possível consolidar as opiniões sobre monogamia, fidelidade conjugal, significado do sexo e algumas práticas sexuais em apenas uma dimensão que explique as atitudes dos brasileiros em relação à sexualidade. Os resultados confirmam que as referências normativas para a sexualidade são produzidas pelos grupos sociais a que se pertence, sendo marcadas por questões de gênero, faixa etária, escolaridade e renda.

Ferreira (2008) concorda com essa ideia quando diz que a construção do conhecimento sobre aids não está restrita a questões informativas, mas envolve também a percepção individual sobre o problema e que a construção desse conhecimento na adoção de práticas protetoras é mediada por questões de gênero, classe social, raça e outros componentes sociais.

Nesse contexto, a família é um componente social importante na media em que estabelece padrões de comportamento e de relacionamento que são significativos e vão desde a escolha conjugal até as regras e mitos familiares estabelecidos e que irão guiar a sexualidade do casal, bem como o uso do preservativo.

Para Ribeiro (1996), a importância da família na prevenção da aids é inquestionável devido à sua influência nos comportamentos relacionados a saúde. Além disso, o comportamento sexual de homens e mulheres é fundamental na prevenção da aids e a adoção de comportamento de risco ou de prevenção da doença depende de vários fatores como o

nível de conhecimento sobre sexo e aids, atitudes em relação à sexualidade e à doença e a estrutura familiar.

Segundo Ayres (1999, apud FERREIRA, 2008), as condições que afetam a vulnerabilidade individual são de ordem cognitiva (informação, consciência do problema e das formas de enfrentá-lo), comportamental (interesse e habilidade para transformar atitudes e ações a partir daqueles elementos cognitivos) e social (acesso a recursos e poder para adotar comportamentos protetores).

Souza (1986, apud NICHIATA; SHIMA; TAKAHASHI, 1995) explica que relacionar a doença à questão da sexualidade, leva à repressão sexual por um lado e, por outro, a questões da moral, que por sua vez resulta em dois subprodutos extremamente danosos a qualquer sociedade: a criminalização de um fenômeno de saúde e a marginalização de pessoas afetadas por uma doença. Acrescenta que, além disso, a vinculação da doença com a morte é um complicador importante na abordagem da aids, porque provoca pânico entre as pessoas. Essas estratégias acabam por disseminar o preconceito e a negação do problema e, portanto, são impeditivas de ação que ultrapassem o nível individual. Este entendimento distorcido a respeito da doença tem contribuído para a falta de solidariedade e reforçado a alienação da sociedade geral, constituindo-se, sobretudo, num dos motivos que retardou a adoção de ações coletivas de intervenção.

Além disso, segundo Lazzarotto et al. (2008), ao longo de uma década houve aumento de 10,7 milhões para 14,5 milhões de pessoas com 60 anos ou mais infectados pelo HIV no mundo, o que representa um aumento de 35,5%. Somado a isso, os recentes avanços da indústria farmacêutica e da medicina, permitem o prolongamento da vida sexual ativa, associado à desmistificação do sexo, tornando as pessoas da terceira idade mais vulneráveis às infecções sexualmente transmissíveis, dentre elas a aids. No Brasil, os autores relatam que também houve

um aumento no número de pessoas com diagnóstico de aids na faixa etária acima de 60 anos tendo sido notificadas, até junho de 2006, 9.918 casos (6.728 em homens e 3.190 em mulheres).

Com tantas mudanças em seu perfil epidemiológico, a aids hoje atinge pessoas nas mais variadas posições e situações sociais, culturais, econômicas, de gênero, idade e padrão de relacionamento sexual, o que nos leva a refletir sobre o aumento no número de infecções de pessoas com relacionamento estável, principalmente mulheres. Uma vez que a principal forma de transmissão do vírus HIV é pela relação sexual, torna-se fundamental entender como casais heterossexuais e com relacionamento estável, negociam o uso de preservativo, promovendo ou não o sexo seguro na relação.

A família torna-se fundamental nessa discussão por ser a base da formação do indivíduo, bem como de crenças e padrões de comportamento que influenciam desde a formação do casal até o apoio nos momentos de crise e adaptação, como é o caso de uma doença como a aids na família.

Além disso, compreender o contexto social e cultural mais amplo no qual a família está inserida facilita o entendimento do significado atribuído à doença, bem como as crenças existentes em relação à mesma, mitos, estigmas e preconceitos construídos socialmente em uma determinada sociedade em um momento específico.