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Considerações gerais: fundamentos, linha evolutiva e insuficiência do regime de

3 AS SENTENÇAS INTERMEDIÁRIAS: ALTERNATIVAS DECISÓRIAS PARA AS

3.1 Considerações gerais: fundamentos, linha evolutiva e insuficiência do regime de

3 AS SENTENÇAS INTERMEDIÁRIAS: ALTERNATIVAS DECISÓRIAS PARA AS

como pressuposto uma Constituição “técnica” e “estritamente preceptiva”, privada de valores, no quadro de um sistema parlamentar em que não existia funções neutras217.

Na origem do legislador negativo, imperava o positivismo jurídico e a ideia de supremacia do parlamento. Esta alternativa conciliatória de limitação do poder político do legislador não foi pensada para as omissões legislativas, sendo, pois, inadequada para este fim, pois não há como anular o que não existe218. Em verdade, naquela época Kelsen não tinha condições de prever todas as nuances do desenvolvimento a ser alcançado pela jurisdição constitucional e o inevitável caráter normativo de suas decisões. Havia forte hostilidade na Europa contra a implantação da jurisdição constitucional, mesmo como legislador negativo219, tanto que o modelo austríaco de controle de constitucionalidade foi abolido nos anos 30 pelo regime ditatorial vigente naquele momento e somente reestabelecido em 1945, após o término da segunda Guerra Mundial220, período conhecido como cemitério de Constituições escritas221.

Por consequência, alguns países da Europa, mais do que instituir este modelo de controle judicial das leis, buscaram um esforço do papel dos Tribunais Constitucionais de controle de constitucionalidade como forma de se proteger contra os horrores da ditadura e a consequente violação de direitos humanos fundamentais por legisladores à disposição de regimes opressores222.

Em razão deste contexto e desta experiência traumática, na Alemanha o modelo que se reafirmou foi o do caráter intrinsicamente jurisdicional e não paralegislativo do Tribunal Constitucional. Optou-se por um sistema de controle de constitucionalidade centrado não numa defesa formal do ordenamento constitucional, mas numa garantia efetiva e substancial do Estado Democrático de Direito, com especial relevo para a tutela dos direitos fundamentais223. Esta preocupação influenciou na mudança paradigmática do desvalor-regra de anulabilidade para o regime de nulidade, alteração esta que foi encarada como necessária para uma proteção efetiva de direitos e liberdades, duramente conquistados e flagrantemente

217 QUEIROZ, C. Interpretação Constitucional e Poder Judicial...Op. cit., p. 132-133.

218 REVORIO. El Control...Op. cit., p. 81-82.

219 NOBRE JÚNIOR, op. cit., p. 125.

220 CAPPELLETTI, Mauro. El <<formidable problema>> del control judicial y La Contribuición del Analisis Comparado. In Revista de EStudios Políticos. Nº 13, 1980, p. 76.

221 QUEIROZ, C. Interpretação Constitucional e Poder Judicial...Op. cit., p. 12.

222 CAPPELLETTI, op. cit., p. 76.

223 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 247.

violados224. Nesse sentido, a consequência imediata desta linha de pensamento constitucional foi a consagração expressa da nulidade ipso jure como sanção das normas julgadas inconstitucionais, representando, com as devidas diferenças, uma aproximação relativa à radicalidade do modelo americano originário que estima a norma inconstitucional como “nula e írrita”225.

Neste cenário pós-Segunda Guerra Mundial, o regime de anulabilidade figurava insuficiente para a tutela efetiva dos direitos fundamentais, evoluindo-se para o modelo de nulidade, aumentando-se o alcance dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade. Assim, a norma incompatível com a Constituição é nula. Os efeitos da decisão são ex tunc, retroagindo até o momento em que colide com a Constituição, tendo a decisão de inconstitucionalidade não uma natureza constitutiva, como defendeu Kelsen, mas sim, uma natureza declarativa, com força obrigatória geral226. Este modelo de fiscalização abstrata de matriz alemã foi adotado por outros sistemas227, a exemplo do Italiano de 1947, do espanhol de 1978, do português de 1976 (revisão constitucional de 1982) e do brasileiro de 1988228.

Todavia, com a mudança paradigmática, não demorou muito para se perceber que a nulidade inerente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral se apresentou, em certos casos, extremamente seca e rígida e, por isso, não raras vezes, colocava em risco outros princípios constitucionais relevantes229. Se de um lado o regime de anulabilidade era incapaz de tutelar de modo eficiente direitos fundamentais, de outro, a rigidez absoluta do regime de nulidade também colocava em risco outros bens, valores e princípios igualmente constitucionais. Surge então a necessidade prática de adotar alternativas decisórias entre as sentenças de procedência e as sentenças de improcedência da ação de inconstitucionalidade, com relevantes lacunas quanto à salvaguarda de importantes princípios constitucionais, como segurança jurídica, proporcionalidade, igualdade e conservação de atos normativos produzidos pelo legislador democrático230.

No plano prático, o surgimento de novas técnicas decisórias, com destaque inicial para Alemanha e Itália, e posterior adoção por países como Espanha, Portugal, ainda que em parte,

224 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 248.

225 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 248.

226 CASTRO, op. cit., p. 61.

227 MORAIS. Justiça Constitucional... Op. cit., p. 278-279.

228 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 248.

229 CASTRO, op. cit., p. 61.

230 MORAIS, Justiça Constitucional...Op. cit., p. 248.

colocaram em questão o dogma do legislador negativo e deixaram evidente que o modelo proposto por Kelsen não foi pensado para omissões inconstitucionais. É inegável que as Cortes Constitucionais destes países, ao analisar estas situações, foram além das simples declarações de inconstitucionalidade ou de não inconstitucionalidade (constitucionalidade).

Somando-se a isso, para além da intangibilidade da coisa julgada231, o fato é que em diversas situações se exigia uma certa estabilidade das relações jurídicas consolidadas, à luz do princípio da segurança jurídica, considerado pilar fundamental do Estado de Direito, situações estas que, em tese, poderiam ser desconstruídas pelos efeitos retroativos da declaração de nulidade232.

No plano teórico, a partir da clara separação entre texto normativo e norma, abriu-se inevitável espaço hermenêutico para a prolação das chamadas sentenças interpretativas, que alteram o sentido normativo preservando o texto, com relativo caráter criativo233. Com a consolidação do entendimento de que norma não se confunde com texto, mas é o resultado do processo hermenêutico, passou-se a primar por um raciocínio direcionado à avaliação do alcance e sentidos do preceito afetado pela inconstitucionalidade, dando surgimento a decisões denominadas de interpretativas e manipulativas234.

Ademais, o princípio do aproveitamento dos atos, associado às exigências de proporcionalidade, levou os Tribunais a procurarem se utilizar um programa interpretativo de recorte criativo, destinado a salvar a disposição normativa impugnada e a reduzir o espectro de inconstitucionalidade verificada, a normas de caráter ideal extraídas por via hermenêutica do enunciado textual sindicado. Com efeito, seja em menor grau, por meio da interpretação conforme, seja por meio do juízo de inconstitucionalidade parcial qualitativa, restou mitigada a rigidez dicotômica das decisões puras de rejeição e de acolhimento, para assegurar possível obra normativa do legislador235.

231 CANOTILHO, op. cit., p. 1015. Cabe lembrar que o princípio da intangibilidade do caso julgado comporta exceções, conforme ensina J. J. Gomes Canotilho: “Nas hipóteses de casos julgados em matérias de ilícito penal, ilícito disciplinar e ilícito de mera ordenação social”, devendo-se, nestes casos, aplicar “tratamento mais favorável aos indivíduos que foram sujeitos a medidas sancionatórias penais, disciplinares ou contra-ordenacionais”.

232 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., 249.

233 Cf. ZAGREBELSKY, op. cit., p. 148. Nesse sentido: MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 324-325.

GUASTINI, op. cit., p. 16. REVORIO. Las sentencias interpretativas...Op. cit., p. 52. CALLEJÒN, op. cit., p.

111-112. LLÓRENTE, op. cit. p. 38 e ss.

234 MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 387. SEGADO. La obsolescencia de la bipolaridade...Op. cit.

235 Ver: MORAIS. Justiça Constitucional...Op. cit., p. 249. REVORIO. Las sentencias interpretativas...Op. cit., p. 52. ZAGREBELSKY, op. cit., p. 146 e ss.

Por questão lógica, declaração de nulidade com efeitos absolutos eliminaria desnecessariamente uma disposição normativa, mesmo se pudesse subsistir no ordenamento associada a um sentido normativo razoável e não inconstitucional. Ademais, em certas situações de inconstitucionalidades que tinham que ser reparadas, sem necessidade de intervenção de um legislador lento e incerto, o Tribunal Constitucional foi muito além da figura do legislador negativo236.

Com o fim de buscar respostas para solucionar o problema das omissões relativas inconstitucionais e de lacunas geradas pelas próprias decisões de inconstitucionalidade, para além das decisões interpretativas, nasceram as sentenças com efeitos aditivos. Nesse viés, surgiu também a necessidade de modelação constitutiva dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade,237 bem como decisões em tese mais respeitosas ao legislador, a exemplo decisão de lei ainda constitucional ou situação inconstitucional deslizante.