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Considerações iniciais

CAPÍTULO 3 – O PODER DE POLÍCIA

3.1 Considerações iniciais

A comunidade humana, seja em que parte do mundo ou tipo de sociedade se apresentar, é composta por pessoas com várias características, condição social diversificada, interesses comuns ou conflitantes. Além do mais, conforme explanado inicialmente, o ordenamento jurídico de cada país dispõe quais os direitos e deveres dos cidadãos, para que seja possível a convivência pacífica dentro do espaço que lhes é delimitado.

Apesar disso, no século XXI, especialistas sociais não são plenamente capazes de definir a complexidade que caracteriza as modalidades de convívio humano, tampouco as constantes mutações que ocorrem nas relações individuais.

Há quem afirme que a criança de hoje ―já nasce sabendo‖, com diferenças daquelas de outrora, quiçá advindas desde a própria concepção. O desenvolvimento parece acelerado. Há pressa em se atingir a idade madura, para que não se perca posição numa sociedade cada vez mais competitiva. E isso passou a ser algo natural.

As cidades não têm limite para crescer em todas as direções e de todas as formas, tanto é que se criou um mundo dentro do mundo, que se denomina ―ambiente

virtual‖. Há, inclusive, quem tenha praticamente feito troca de ambientes, e desenvolva toda sua vida e áreas de interesse através desse mundo virtual.

Os interesses se ampliam cada vez mais. As pessoas estão detendo um número maior de coisas e situações. A tecnologia se desenvolve em ritmo acelerado, vão surgindo novas questões jurídicas, novos domínios e formas de comunicação.

Mesmo assim, certas características do homem se mantiveram. Quando interesses são antagônicos, ainda há conflito. As pessoas não conseguiram superar alguns de seus instintos negativos. Nem sempre é possível viver em harmonia. Muitas vezes, um direito se sobrepõe a outro. O pior é que, resquício do liberalismo, a ideia de comunhão, de união, passou a se dispersar. As pessoas tornaram-se mais individualistas, priorizando seus interesses em detrimento dos demais e do meio ambiente social. Algumas características bastante notáveis, como o pouco caso com os outros, o comodismo, a alienação, podem ser consideradas peculiares das sociedades ocidentais, principalmente nas grandes cidades.

É corriqueiro observar pessoas jogando lixo nas ruas, como se o ambiente público não lhes pertencesse ou não tivessem que passar por ele a cada dia. Muito comum também é o direcionar interesses particulares, por meio das tais "contribuições", as chamadas ―caixinhas‖, ―cafezinhos‖ ou ―diligências‖. Exemplos há, bastantes, em que a ética e a moral, a consciência comunitária inexistem. Incentiva-se a concorrência para diminuir o ser humano, criando-se uma guerra invisível, através da qual as pessoas são descartáveis, em detrimento daquelas com maior oportunidade, maior conhecimento dos famosos ―contatos‖. Não há a cultura do ―bem comum‖, mas do próprio bem apenas. Em contrapartida, conforme se analisou anteriormente, o bem comum é objetivo precípuo do Estado. Para que o bem comum possa sobrevir, necessário que se imponha, aos administrados, limites específicos, no sentido de refrear seus interesses, quando estes atingem o próximo, ou ―educá-los‖ para a boa convivência, lembrando que cada liberdade se limita àquela do próximo, sendo imperiosa a necessidade de resguardar, ainda, a herança moral a ser transmitida para as próximas gerações.

Lembre-se que a transformação da sociedade vem ocorrendo desde os primórdios de sua existência. Tanto é assim que a doutrina clássica já vislumbrava tal

transformação, que sempre desencadeou o aumento e a diversidade da intervenção do Estado nos mais variados setores 155.

Através do poder de polícia, o Estado, efetivamente, exerce sua vocação, atuando na sociedade, especificamente dimensionando aquelas liberdades asseguradas constitucionalmente. O poder de polícia tem prerrogativas de efetivamente preservar o meio social, pois interfere nos reais interesses das pessoas, ou os condiciona, evitando- se, assim, a ocorrência de eventuais danos à sociedade.

Ocorre que, muitas vezes, a vontade ou o interesse de alguns, ainda que legítimo e devido, pode interferir de maneira negativa no interesse da grande maioria. Do mesmo modo, a liberdade desmedida pode afetar o meio, a segurança, o convívio junto aos demais.

Podemos observar o ambiente que nos rodeia. O espaço que ocupamos, onde nos fixamos, e como nos desenvolvemos. A existência humana, no mundo contemporâneo, é caracterizada pela incidência de inúmeros direitos: trabalhar para obter o sustento ou a realização; o direito de ir e vir, de divertir-se, de utilizar, da forma mais conveniente, o espaço público; escolher os caminhos adequados para cada setor da vida.

O exercício de tais liberdades e direitos, que, na verdade, concentram outros tantos resguardados constitucionalmente, não pode ser deixado totalmente à deriva, ao livre arbítrio de cada indivíduo, pois, certamente, surgiriam conflitos, que tornariam impossível a convivência humana. Não nos esqueçamos de que o espaço público e a comunidade, embora muitos não queiram se aperceber, pertence a todos, e é para o usufruto de cada pessoa; contudo, sob a tutela e a guarda, a princípio, do Estado. É necessário que se possa aquilatar, até que ponto, atos privados podem interferir ou alterar o meio comum, a vida de terceiros, ou de que modo é exercido o direito de possuir e utilizar as coisas.

Conforme já se salientou, a liberdade é total, e admitida enquanto limitar-se à vontade de cada indivíduo. O anseio ou a intenção não sofre qualquer restrição. O problema surge a partir do momento em que se pretende colocar em prática a liberdade,

ou efetivamente exercê-la, passando a ser ato praticado no ambiente em que se verifica o convívio social, podendo, como se disse, causar danos ao meio ou à ordem pública.

A Administração avalia tais atos ou tais vontades, de modo que não causem, ou causem o mínimo possível de prejuízo para a coletividade. ―É através do poder de polícia que o Estado desenvolve uma série de providências que recaem sobre os administrados, garantindo-lhes o bem-estar, mediante o policiamento de toda conduta exorbitante e danosa de cada um dos componentes do grupo‖156.

Importa destacar que o ―poder de polícia‖ não se relaciona com ilegalidades ou crimes. Ele age sobre atividades consideradas lícitas, asseguradas às pessoas pelo próprio ordenamento constitucional. Todavia, mesmo estas devem ser limitadas, quando seu exercício resultar contrário ao interesse público157.

Agustín Gordillo, sempre crítico ao tratar do tema, qualifica o poder de polícia como “sepultura das liberdades‖158(grifo do autor), enquanto Marcello Caetano

esclarece que ―a polícia não é inimiga da liberdade: é uma garantia das liberdades individuais‖159. Para que as liberdades individuais possam ser exercidas a contento, sem

que sejam obstaculizadas, a polícia encontra maneiras de viabilizar o exercício das liberdades, através de normas adequadas160.

O ―poder de polícia‖ é, ou pretende ser, portanto, o ponto de equilíbrio para a manutenção do bem comum e resguardo da saudável convivência humana, consideradas as liberdades (lícitas) e legítimas de cada um, no seio da comunidade.

156 CRETELLA JUNIOR, José. Do poder de polícia. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5. 157 TANAKA, Sônia Yuriko Kanashiro (Coord.) Direito Administrativo. Op. cit., p.123.

158 GORDILLO, Agustín. (apud MOREIRA, João Batista Gomes. Direito Administrativo.Da rigidez Autoritária

à Flexibilidade Democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 362).

159 CAETANO, Marcello, p. 267.