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CAPÍTULO 3 – O PODER DE POLÍCIA

3.8 Limites

Como não poderia deixar de ser, no Estado Democrático de Direito, aos limites também se impõem limites, sob pena de instalar-se uma ditadura de polícia que não encontra espaço dentro da concepção das Constituições ocidentais, a brasileira aí incluída, tampouco no espaço que a cidadania e os direitos humanos conquistaram.

Apesar da absoluta ampliação da interferência do Estado nos mais variados setores, não só nas questões de segurança, mas na ordem econômica e social como um todo, as medidas de polícia encontram demarcados seu desenvolvimento e execução —

256 Op. cit., p. 54-5.

ressalte-se — em benefício da comunidade, do Estado, e, principalmente, de sua preservação. Qualquer ato de polícia que supere esses interesses, excede os limites que a lei instituiu.

Marcello Caetano identifica que a polícia não pode intervir em questões privadas, nem interesses particulares, devendo respeitar a vida íntima e o domicílio do cidadão258. Esta regra busca, inclusive, distinguir as medidas de polícia da função jurisdicional. Outro ponto por ele destacado, é o de que a polícia deve atuar sobre o perturbador da ordem, e não sobre aquele que exerce legitimamente seu direito. Assim, o direito individual deve prevalecer. Aquele que o exerce indevidamente deve ser obstado da prática de seus atos. Dirigir automóvel é um direito acessório à livre locomoção. Não se pode apreender o veículo de qualquer motorista. Dirigir um automóvel embriagado enseja medidas de polícia, tais como multas e apreensão do veículo. Os exemplos são infindáveis, residindo no exercício de cada liberdade humana como contradição.

A terceira ilação destacada por Marcello Caetano é a de que as restrições e coações impostas ao infrator não podem exceder ao estritamente necessário259. Trata-se aqui do emprego do princípio da proporcionalidade, pois o emprego da força maior do que a necessária, ou de castigo além do devido, constitui abuso de autoridade digno de processo e responsabilidade do agente. Imagine-se, no caso do automóvel, se o agente resolvesse destruir o carro para punir o infrator. É preciso coligar a extensão e a intensidade da medida, para que se possa atingir o fim colimado260.

Com propriedade, Odete Medauar destaca que o primeiro limite ao exercício do poder de polícia situa-se nos próprios direitos fundamentais arrolados na Constituição Federal. O reconhecimento do direito fundamental configura limite ao poder de polícia261. No âmbito da configuração dos direitos fundamentais é que se identificam os limites da ação policial. Se existe lei disciplinadora do direito fundamental, ela é o limite, devendo a lei ser interpretada no sentido mais favorável ao exercício do direito. Já quando o fato não disciplinado em lei exige medida da polícia administrativa, a fim de assegurar a ordem

258 Manual de Direito Administrativo, p. 1156.

259 Ibid. p. 1158.

260 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 801. 261 Direito Administrativo Moderno, p. 338.

social e resguardar o interesse público, deve-se atentar para a necessidade e proporcionalidade, devendo os meios ser delimitados por lei262.

Veja-se que contornar ou manter-se na esfera desses limites não é tarefa fácil. Corre-se o risco, certamente, de aviltar a legalidade no uso do poder discricionário ao avaliar até onde vai o direito, seu limite e sua suspensão. Mais uma vez tornemos a Gordillo, para quem a noção de polícia é perigosa, pois sustentá-la é preferir o poder e a autoridade aos direitos e à liberdade263. Talvez sob outro ângulo, e com respeito às críticas por ele colimadas, parece que poder de polícia é um mal necessário. Da mesma forma que todas as manifestações vindas de cima, sem as quais não é possível resguardar o mínimo de igualdade — dadas às características humanas instintivas — faz- se necessário um contraponto, o equilíbrio necessário para tudo, para que as correntes do tempo se desenvolvam saudavelmente, e as relações das pessoas não se esfacelem. A sociedade precisa se manter inviolável, para o bem de todos. Importa, todavia, policiar a polícia para que a discricionariedade que pode ascender aquém do limite, não exija medidas externas. Não se pode suprimir o poder de polícia, pois, repita-se, é o modo que a comunidade e o Estado encontraram para harmônica convivência. Veja-se que a sociedade não se opõe ao poder de polícia, muito pelo contrário. Submete-se naturalmente. Todavia, conforme se manifesta Diógenes Gasparini, em pensamento reiterado por José dos Santos Carvalho Filho264:

É na conciliação da necessidade de limitar ou restringir o desfrute individual e da propriedade particular com os direitos fundamentais reconhecidos a favor dos administrados, que se encontram os limites dessa atribuição. Assim, mesmo que a pretexto do exercício do poder de polícia, não se podem aniquilar os mencionados direitos. Qualquer abuso é passível de controle judicial (RDA, 117:273)265.

Por derradeiro, diante da abrangência que o texto indica, na esteira dessas conclusões, vale a pena citar Hely Lopes Meirelles que dispõe, em poucas palavras, a justificativa dos atributos de polícia, de cuja relevância se sobrepõe aos próprios limites, fazendo recordar o grande Leviatã de Hobbes, e a outorga de poderes de representação da comunidade ao Estado, ora na figura do administrador:

262 Id., p. 339.

263 Op. cit., p. V-21. 264 Op. cit., p. 73. 265 Op. cit., p. 133.

Através de restrições impostas às atividades do indivíduo que afetem a coletividade, cada cidadão cede parcelas mínimas de seus direitos à comunidade e o Estado lhe retribui em segurança, ordem, higiene, sossego, moralidade e outros benefícios públicos, propiciadores do conforto individual e do bem estar geral. Para efetivar essas restrições em favor da coletividade o Estado utiliza-se desse poder discricionário, que é o poder de polícia administrativa.Tratando-se de um poder discricionário, a norma legal que o confere não minudeia o modo e as condições da prática do ato de polícia. Esses aspectos são confiados ao prudente critério do administrador público. Mas se a autoridade ultrapassar o permitido em lei, incidirá em abuso de poder, corrigível por via judicial. O ato de polícia, como ato administrativo que é, fica sempre sujeito à invalidação pelo Poder Judiciário, quando praticado com excesso ou desvio de poder266(grifos nossos e do autor).

Destarte, torna-se bastante considerável o limite que se contrapõe à discricionariedade do ente administrador. Todavia, ainda que limitada é necessária, por concordância tácita da sociedade, que se rende aos atos administrativos legais que tornam a ordem possível, considerando-se pluralidade de interesses ocorrentes entre os cidadãos, e o exercício de seus direitos.