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Origem e evolução do poder de polícia

CAPÍTULO 3 – O PODER DE POLÍCIA

3.2 Origem e evolução do poder de polícia

Não é fácil precisar como e quando o poder de polícia, no modo atualmente conhecido, teve origem. Caio Tácito afirma, entretanto, que ―a renovação de seu conteúdo acompanha as mutações históricas do Estado‖161.

No período clássico, o homem grego se confundia com a própria cidade. Era parte de um todo que caracterizava a vida dos cidadãos. O sentimento dos indivíduos era expresso pela totalidade estatal. Segundo Clovis Beznos, não existia a denominada liberdade individual. Afirma ele que ―não é possível se falar da existência de um conceito jurídico de ‗poder de polícia‘ na antiguidade clássica, pois na Grécia o indivíduo não era considerado como valor autônomo‖162. Relata esse autor que ―a vida privada não ficava

imune às ingerências absolutas do Estado‖163, trazendo exemplos bastante interessantes,

inconcebíveis na sociedade atual, tais como o de que ―Esparta punia o celibato, ou o tardio matrimônio‖, ou que em ―Bizâncio era passível de multa quem uma navalha possuísse‖, entre outros164. Contudo, se considerado o condicionamento da liberdade

humana aos interesses do Estado grego, consoante relata o respectivo texto, a maneira de viver da sociedade Ática não seria regulada por um modo de polícia típico daquela época? Sob essa ótica, poder-se-ia afirmar que, ainda assim, aquela liberdade inerente ao ser humano, e que com ele nasce (recorde-se Rousseau)165, sofria restrições do

Estado, e, por alguma razão, dentro daquelas culturas, isso seria relevante ao interesse comum. É possível conjeturar que as liberdades sofreram transformações através dos séculos e, em todos os momentos, por alguma razão, são sempre limitadas, por algo ou alguém.

Com amplificada identidade, José Cretella Júnior associa a existência do poder de polícia à do próprio Estado, consignando:

O poder de polícia, em geral, sempre existiu no Estado, qualquer que tenha sido sua natureza jurídica e funções, no que diz respeito aos fins da sociedade a ele referida, quer tenha tido um caráter amplo de política interna (concepção originária da polícia como governo), quer tenha sido concebido como instituição

161 Op. cit.

162 BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 2. 163 Ibid., p. 03.

164 Op. cit. 165

essencialmente administrativa, quer como administração jurídica ou administração social do Estado (grifo do autor)166.

De toda sorte, o gradual surgimento do Direito Privado em Roma, reflexo da aquisição de bens e propriedades decorrentes da expansão do Império Romano, trouxe à baila a necessidade de impor restrições ao uso da propriedade, em razão do interesse coletivo. As relações entre proprietários cingiram-se em situações legais167. Clovis Beznos sintetiza essa transformação:

Assim, se vê que o crescimento e expansão do Império Romano, a divisão de direito público e privado são fatores determinantes para o surgimento de direitos individuais que trazem como conseqüência o ajustamento de seu exercício aos interesses da coletividade168.

Abarca ele, pois, que, em decorrência das relações interpessoais — e das pessoas com a propriedade —, resultantes da expansão romana, desenvolve-se uma concepção política de polícia.

A partir daí, em expressiva análise sobre poder de polícia, através do qual é feito um estudo das obras de vários autores clássicos, Odete Medauar descobre que, na Idade Média, já se detecta o exercício do poder de polícia, em tênue similaridade à maneira como hoje se verifica, no âmbito das comunas europeias169. Este entendimento, segundo referida autoria, é extraído das obras de Otto Mayer, Fiorini e Etienne Picard. Fiorini ressalta que, ―nas comunas, a atuação prática da polícia se caracterizava e se ajustava à manutenção da ordem e tranqüilidade públicas‖170.

Na sequência, a autora afirma que, nos primórdios do século XVIII, ―polícia consiste na faculdade estatal de regular tudo o que se encontra no âmbito do Estado, sem exceção‖, excluídas a justiça e as finanças.

166 CRETELLA JUNIOR, José. Do poder de polícia. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 4. 167 BEZNOS, Clóvis, Ibid., p. 6-9.

168 Ibid., p. 10.

169 MEDAUAR, Odete. Revista de Direito Administrativo, jan/mar.1995, v. 199, p. 89-96. Odete Medauar

complementa, em sua obra, Direito Administrativo Moderno, já citada, que, nas comunas, que seriam equivalentes a municípios, havia licença para construir, fiscalização das profissões para proteção aos consumidores, e polícia sanitária (ver p. 331).

Ainda com relação às prevenções da ordem pública, Marcello Caetano relata que ―o Soberano agia na qualidade de Pai de família que procura a felicidade dos vassalos e corrige disciplinarmente os seus desmandos‖ 171.

No fim do período absolutista, vigora um período denominado ―Estado de Polícia‖, em que o Estado, através do soberano, se imiscuía, de maneira opressiva, na vida das pessoas. Sua autoridade era inquestionável, sem limites. Podia decidir o destino dos homens, pois era considerado um representante divino, eleito por Deus, para governar na terra; portanto, suas decisões eram sempre corretas 172.

Com o advento da Revolução Francesa e com a ascensão da burguesia ao poder, a ação estatal sofreu alterações. Surge o liberalismo, caracterizado pela valorização do indivíduo. Acabou-se a ideia de que o soberano pudesse conter poderes ilimitados na vida de seus súditos. Resplandece o homem como senhor absoluto de seu destino e de seus interesses, sendo-lhe assegurados direitos subjetivos, entre os quais a liberdade. É a época áurea da liberdade individual, conforme se pode delinear do texto de Alysson Leandro Mascaro, que afirma ser ―em função do indivíduo e de seus interesses e direitos fundamentais — entre os quais, asseveram os modernos, o de propriedade — que deve ser posto o Estado (...)173.

O Estado, então, passou a intervir apenas quando houvesse risco à ordem pública, no que compreendia o resguardo da segurança, salubridade, tranquilidade, ou outras questões consideradas públicas.

Nesse sentido, anota Caio Tácito que, a partir da revolução liberal, o Estado apenas limitou-se a evitar perturbações, garantindo o exercício das liberdades públicas. Seu papel era o de evitar a desordem, prevenindo e rechaçando choques individuais174. Ou seja, ao Estado bastava que não houvesse conflitos, que não houvesse prejuízo às pessoas ou à ordem pública (certamente, deixando que os indivíduos desfrutassem ao

171 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Coimbra: Almedina, v. II, p. 1147. 172 BEZNOS, Clovis. Op. cit., p. 14-5.

173 MASCARO, Alysson Leandro. Op. cit., p. 36. 174 TÁCITO, Caio. Op. cit., p. 135.

máximo suas liberdades naturais, principalmente o direito de propriedade, com o objetivo de crescimento, de aquisição e acumulação de riquezas) 175.

A partir do momento em que se acentuou, na sociedade, a desigualdade entre os indivíduos, principalmente em razão do poder econômico, ampliou-se o intervencionismo estatal de maneira bem mais dinâmica, no sentido de, em função do interesse público, restringir e condicionar o exercício de direitos e liberdades por grupos ou classes. Com efeito, vale transcrever a conceituação evolutiva de Caio Tácito:

O poder de polícia, que é o principal instrumento do Estado no processo de disciplina e continência dos interesses individuais, reproduz, na evolução de seu conceito, essa linha ascensional de intervenção dos poderes públicos. De simples meio de manutenção da ordem pública ele se expande ao domínio econômico e social, subordinando ao controle e à ação coercitiva do Estado uma larga porção da iniciativa privada176.

Para Maria Sylvia Zanella di Pietro, num primeiro momento, a regra era o livre exercício dos direitos individuais, amplamente assegurados nas Declarações Universais de Direitos, depois transpostos para as Constituições, sendo a atuação estatal exceção para assegurar a ordem pública. Num segundo momento, o Estado passou a intervir mais, não se limitando apenas à segurança, estendendo-se à ordem econômica e social177; servindo-lhe como denominação típica a de Estado Social.

Assim, tendo por justificada prioridade o bem comum ou interesse público, o poder de polícia passou a enquadrar o representativo conglomerado de exercícios dos direitos individuais, exemplificativamente, profissões, relações de emprego, mercado de produtos, espetáculos públicos, meio ambiente, patrimônio histórico, economia popular, entre outros, além de impor obrigações de fazer, interferindo na utilização da propriedade178.

175 Este período da história é caracterizado pelos interesses da burguesia ascendente. O Estado passou a

atuar dentro desses interesses, não podendo impedir seu desenvolvimento.

176 Op. cit.

177 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 109. 178 MOREIRA, João Batista Gomes. Op. cit., p. 361.