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Capítulo IV – Proposta de tradução

I. Considerações iniciais

I. Considerações iniciais.

Antes de apresentarmos a proposta de tradução para as falas das personagens de

O Morro dos Ventos Uivantes que utilizam o dialeto de Yorkshire, alguns comentários

são necessários: das falas traduzidas, a maior parte refere-se a Joseph, que, apesar de ser uma personagem secundária, tem presença constante ao longo de toda a narrativa – ele, Nelly Dean e Heathcliff são as únicas personagens que participam das duas fases da história e que são vistas pelos leitores do romance, pois outras, como Cathy Earnshaw, Isabella e Edgar Linton, são apresentadas apenas por meio da narrativa de Nelly Dean. De acordo com o estudo de Petyt (2001:ii), Emily Brontë teria mesmo tido um cuidado muito maior ao escrever as falas de Joseph que a de outras personagens, que têm uma participação apenas esporádica na narrativa, como o pastorzinho citado por Nelly Dean no último capítulo (1998:299), ou a caseira de Thrushcross Grange, que recebe Lockwood em sua segunda visita à propriedade (1998:272). Quanto a Hareton Earnshaw, um fato deve ser observado: há uma visível alteração no seu modo de falar, desde o inicio da narrativa (quando Lockwood o conhece em Wuthering Heights) até o final, quando o mesmo Lockwood o encontra, já noivo de Catherine Heathcliff, e na condição de dono de Wuthering Heights e futuro dono de Thrushcross Grange. Desde a infância, Hareton é um falante do dialeto de Yorkshire, talvez de maneira não tão ostensiva quanto Joseph (novamente surge a questão da possível falta de cuidado tida por Emily Brontë ao escrever as falas de outras personagens que não Joseph, e que dificilmente será esclarecida). No entanto, seu contato com Catherine Heathcliff e o amor entre os dois jovens fazem com que ele comece a receber instrução formal da prima – e futura noiva – e deixe de ser um falante do dialeto. Esse fator ocasionou algumas dificuldades na hora de traduzir as falas de Hareton, pois a partir de determinado momento as alterações nela encontradas deveriam diminuir de maneira perceptível, porém não completa. Por isso, foi mantido, até o final, o uso de vosmecê, escolhido para estabelecer a diferença entre os falantes do dialeto e os falantes do inglês

standard, que usariam o senhor/a senhora ou você, dependendo da circunstância. Da

mesma maneira, em algumas falas de Hareton, nas quais se pode ver o que foi chamado de nível não-aparente de falta de cortesia (cf. parte III do trabalho, pág. 77 e ff.), foi usado ocê para traduzir thou – vosmecê seria o tratamento respeitoso, que Hareton passa

a empregar em relação a Catherine Heathcliff quando o relacionamento dos dois se torna mais amistoso, após a morte do jovem Linton Heathcliff, e ocê indicaria a falta de respeito.

Emily Brontë utilizou sobretudo alterações na ortografia das palavras para escrever as falas das personagens que usam o dialeto de Yorkshire e usou a ortografia já aceita de variantes dialetais, caso elas existissem. Essas alterações, segundo o estudo de Petyt (2001:7-8), são localizadas, isto é, aparecem principalmente nas partes das palavras cuja pronúncia é alterada por falantes do dialeto. Mesmo assim, essas mudanças podem ocasionar dificuldades na leitura, pois o leitor, ao vê-las, está se deparando com algo a que não está acostumado e foge da norma por ele aprendida na escola. Como já foi observado na parte II deste trabalho, a língua escrita é mais conservadora que a falada, e a ortografia é um dos recursos usados para manter o que se convencionou chamar de norma da língua. Ao falar sobre a feição tradicionalizante da escrita, Dino Preti observa:

Ao tentar, pois, retratar o ato falado, esbarra o escritor com esse primeiro entrave. Se quiser superá-lo (e alguns o fizeram, em todas as épocas, conforme veremos), caminhará certamente para uma ortografia fonética individual, nem sempre uniforme e razoável, que poderá até impedir a compreensão do leitor, habituado à transcrição convencional dos signos sonoros. [...] Em conseqüência disso, as atitudes individuais de transcrição fonética de fala, na literatura, são recebidas com relativo desinteresse, e sua originalidade serve apenas aos estudiosos. Quase sempre, motivam o afastamento do leitor, pois dificultam a compreensão, induzem ao erro, atrapalham a aprendizagem da ortografia oficial, e, enfim, cumprem mal a função conservadora e tradicionalizante que, em geral, a sociedade atribui à língua literária. (1974:45-6)

Tendo em vista esse comentário, e com o intuito de não sobrecarregar demais as falas das personagens com o uso excessivo de alterações fonéticas (o eye-dialect, de que fala Ives), uma opção para mostrar a diferença existente entre as falas das personagens que usam o dialeto e aquelas que usam o inglês standard é o aproveitamento de elementos da fala na escrita. Esse assunto foi minuciosamente estudado por Urbano, em seu livro Oralidade na Escrita – O caso Rubem Fonseca, e em suas análises ele mostra como o uso de determinados elementos da língua oral dá um tom característico à fala das personagens. No caso desta proposta de tradução, um dos recursos aproveitados foi a repetição de palavras, especialmente que, e é que. Ele foi muito útil especialmente na tradução das falas de Hareton Earnshaw quando este já não é um falante exclusivo do dialeto – por exemplo, o uso de pronome reto em substituição às formas obliquas, uma característica não apenas da fala das pessoas que não receberam instrução formal, bem

como de uma grande parcela da população brasileira; ou o uso de pleonasmos, também característico da língua falada informal. Dessa maneira, a fala de Hareton conserva algumas peculiaridades que estabelecem uma diferença entre ele e as demais personagens, tentando manter ao mesmo tempo a naturalidade normalmente encontrada na fala das pessoas em situações informais.

As alterações na ortografia das palavras foram feitas tentando evitar seu uso excessivo, que pudesse tornar a leitura do texto cansativa para o leitor leigo em questões lingüísticas, e pouco convincente para um leitor estudioso do assunto. Portanto, a alteração de vogais pós/pré-tônicas (e > i; o > u), a acentuação para diferenciar vogais abertas ou fechadas, entre outras, só são usadas em ocasiões em que realmente possam conferir expressividade à tradução ou evitar confusões na hora da leitura (por exemplo, a diferença entre ele anda e eu vou andá); pois, conforme observou Hudinilson Urbano,

Como facilmente se deduz, por mais que um escritor pretenda reproduzir fielmente a língua oral, prosodicamente falando, no seu texto escrito, seu propósito estará destinado à frustração; quando não, seria de efeito duvidoso, em vista da enorme dificuldade para vencer a tradição escrita do leitor. Na verdade, como afirma Ward (1984:29-30), “a pronúncia é um dos elementos mais difíceis de reproduzir sem carregar demasiado a leitura”. (2000:110)

Deixando de lado a discussão sobre o nível de cuidado tido por Emily Brontë ao escrever as falas das personagens que usam o dialeto de Yorkshire, todas elas estão apresentadas na proposta de tradução. Uma única exceção é a fala de uma empregada de Wuthering Heights (1998:186-7), pois, em dezessete linhas de texto, apenas duas formas pertencentes ao inglês não standard são encontradas: hisseln (duas vezes) e

’bacca. Consideramos que somente essas ocorrências não caracterizam essa fala como a

de alguém que usa o dialeto de Yorkshire; já as falas de Hareton Earnshaw são traduzidas sem exceção, pois a alteração que se pode registrar nelas (o abandono do dialeto de Yorkshire em favor do inglês standard) mostra a mudança que acontece com a personagem durante a narrativa e não uma falta de conexão dele com o uso de variantes dialetais.

Da maneira como foi concebida, a proposta de tradução poderá apresentar alguns desafios para o leitor, pois a tradição escrita de que falam Preti e Urbano é quebrada em vários momentos, mas ela foi feita com base na vontade de evitar excessos de todos os tipos. Outro ponto que deve ser reforçado neste momento é que as falas das personagens não podem ser consideradas como ‘exemplos perfeitos’ do dialeto de Yorkshire;

tampouco podem ser vistas como pertencentes a uma ‘norma’ lingüística que padroniza todas as falas de quem usa variantes dialetais. Uma análise das traduções deve ser feita levando em conta que, embora inseridas em um mesmo contexto histórico, geográfico e social – a Inglaterra da virada do século XIX, o condado de Yorkshire, e o fato de os falantes dessa variante dialetal pertencerem a uma classe de pessoas mais simples, com pouco acesso à educação formal (Hareton Earnshaw, apesar de ser herdeiro legítimo da propriedade Wuthering Heights e descendente de uma família tradicional, se encaixa mais na situação de empregado devido às condições de sua criação, e por isso não difere muito de Joseph, de Zillah ou da caseira de Thrushcross Grange) – essas personagens não falam uma ‘língua única’, e a individualidade de cada uma delas se manifesta no momento em que elas se expressam, produzindo com isso um quadro multifacetado no qual não poderá ser encontrada uma ‘regra’ que defina o que é ‘certo’ ou ‘errado’. Citando mais uma vez Urbano: “Por mais real e natural que pareça a fala do personagem ou até mesmo do narrador, não se pode jamais esquecer de que se trata de uma ilusão, como, aliás, todos os demais elementos na obra de ficção.” (2000:131)