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Capítulo II – Língua, dialetos e norma culta

I. Língua escrita vs língua falada

Além dessa dificuldade para definir ‘língua’ e ‘dialeto’, também podemos pensar que existe uma distinção a ser feita entre língua escrita e falada, pois ambas servem a diferentes propósitos na comunicação entre os seres humanos. Fernando Tarallo disse que “a língua falada [...] é o veiculo lingüístico de comunicação usado em situações naturais de interação social...” (1986:19), mas mesmo essa definição deixa espaço para questionamento, pois a comunicação entre os seres humanos não se dá sempre da mesma maneira e o uso que fazemos da linguagem muda de acordo com a situação em que nos encontramos. Conseqüentemente, não podemos nos limitar a dizer que língua é usada em situações de interação social naturais, pois a natureza de nossas

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Concordaríamos, entretanto, que é muito útil ver os dialetos como DIALETOS DE UMA LÍNGUA. Dialetos, quer dizer, podem ser vistos como subdivisões de uma língua particular. Desse modo, podemos falar sobre o dialeto parisiense do francês, o dialeto do inglês falado em Lancashire, o dialeto bávaro do alemão, e assim por diante.

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interações vai influir na nossa escolha de vocabulário, na forma como falamos, na nossa atitude em relação ao nosso interlocutor.

Quais seriam as maiores diferenças entre a língua falada e a escrita? Em primeiro lugar, a língua falada é aprendida em um contexto de informalidade, com a família e os amigos, enfim, no convívio diário que as crianças estabelecem com outros seres humanos desde seus primeiros dias de vida, e embora ela tenha regras que regem seu uso, estas são mais flexíveis, permitindo ao falante uma maior liberdade de expressão. Já a língua escrita é aprendida em um ambiente formal – a escola – e tem, ela também, um caráter formal, imposto às crianças, como um conjunto restrito de regras, normas, ‘certos’ e ‘errados’ separando a língua bem escrita daquela que não é. Outro ponto a ser mencionado é o fato de a língua falada ser usada em situações em que há interação entre no mínimo duas pessoas, e mesmo que elas não estejam presentes no mesmo ambiente (por exemplo, durante uma conversa telefônica), elas podem ouvir a voz uma da outra, a entonação que cada uma delas dá a determinadas palavras, e isso auxilia a criar um sentido para aquilo que está sendo dito. Por outro lado, a língua escrita não supõe essa interação; normalmente um texto é escrito para ser lido algum tempo depois por uma ou mais pessoas – no caso de textos literários, eles podem ser lidos séculos depois da época em que foram publicados pela primeira vez. Para suprir a ausência do interlocutor, e para fazer com que o texto escrito transmita ao leitor algumas das características encontradas na língua falada, o autor pode lançar mão de diversos recursos para conferir um certo grau de particularidade à escrita; esses recursos podem ser altamente criativos, originais, artísticos, mas ao mesmo tempo podem ser um empecilho para a leitura no caso de muitas pessoas. Finalmente, a língua escrita é planejada; no caso de textos literários, ela é cuidadosamente organizada com o intuito de causar um determinado efeito no(s) leitor(es) sem que haja uma interação real entre escritor (emissor) e leitor (receptor); a língua falada é mais espontânea, e o efeito que ela pode causar nos ouvintes depende muito do contexto em que ela está sendo usada e da interação emissor/receptor .

Levando em consideração essa diferença no uso da linguagem escrita e da linguagem oral, vemos essa distinção acabar se transformando em um dos motivos para que se estabeleça o caráter de inferioridade de uma variante lingüística. Quando escrevemos, ainda que inconscientemente, tentamos nos submeter às regras da chamada ‘norma culta’ e, quando falamos, normalmente não prestamos tanta atenção a questões gramaticais e de estilo, o que torna a linguagem oral mais livre e informal que a escrita. Deduzimos, então, que o uso dos dialetos está majoritariamente ligado à linguagem oral, ou seja, às chamadas situações naturais de comunicação e interação social (segundo a definição proposta por Tarallo), e eles raramente vão aparecer na linguagem escrita, normalmente mais formal. Esse fato torna ainda mais forte o preconceito que cerca as variantes dialetais, devido ao fato de na mentalidade das pessoas comuns existir essa concepção de linguagem escrita como melhor ou mais sofisticada que a linguagem oral. Contudo, isso não significa que o status de inferioridade normalmente associado aos dialetos seja procedente, pois a informalidade da linguagem oral não

impede a perfeita comunicação entre os interlocutores de uma língua qualquer, e podemos observar que há uma grande diferença entre a linguagem oral e a linguagem escrita, não apenas no português, mas na grande maioria das línguas faladas no mundo. Muitas vezes percebe-se justamente o oposto, que a linguagem escrita, mais formal, apresenta obstáculos para sua compreensão para grande parte da população de um país. Verificamos então que a distinção entre superioridade e inferioridade estabelecida entre norma culta e dialeto não é baseada em argumentos científicos, comprovados por estudos, mas sim em puro desconhecimento do assunto e em idéias preconcebidas que vêm acompanhando os seres humanos por muitos séculos. A chamada ‘norma culta’ adquiriu esse status de língua oficial de um país não devido a uma comprovada superioridade lingüística sua em relação às outras variantes faladas nesse território. Dessa maneira, podemos remeter às idéias de Trudgill e Chambers:

We will, on the contrary, accept the notion that all speakers are speakers of at least one dialect – that standard English, for example, is just as much a dialect as any other form of English – and that it does not make any kind of sense to suppose that any one dialect is in any way linguistically superior to any other. (1988:3)29

II. Estudos dialetológicos na Europa e a situação lingüística da Inglaterra