• Nenhum resultado encontrado

Estudos dialetológicos e a tradução de textos literários

Capítulo II – Língua, dialetos e norma culta

IV. Estudos dialetológicos e a tradução de textos literários

(1840-1920), Patrick Joyce comenta sobre o florescimento, na Inglaterra do começo do século XX, de uma literatura que “afirmava representar ‘a

vida interior do povo’. [...] A língua do povo era o dialeto, que afirmava sua verdadeira identidade” (1997:207). Ele ainda comenta que exemplos dessa literatura poderiam ser encontrados nos distritos industriais de Yorkshire e Lancashire, regiões conhecidas pela conservação e uso de variantes do inglês não-padrão até os dias atuais. A importância dessa literatura escrita em dialeto se deve ao fato de as variantes lingüísticas terem sido usadas de forma criativa, original, ultrapassando seu âmbito de uso familiar na linguagem oral.34

Se formos pensar na representação de variantes dialetais em obras literárias, veremos que ela é bastante restrita, tanto na Inglaterra quanto em outros países. A literatura, de uma maneira geral, é escrita na ‘norma culta’, mesmo quando autores criam personagens pertencentes às mais diversas classes sociais. Os dialetos acabam ficando restritos a poucas personagens, muitas vezes sendo usado apenas para dar uma ‘cor local’ a determinada história, e poucos autores realmente tentaram caracterizar suas personagens usando recursos estilísticos e lingüísticos que mostrassem ao leitor a forma de falar peculiar a cada uma delas. Um dos poucos a fazer isso foi Mark Twain que, em uma nota introdutória ao livro The Adventures of Huckleberry Finn, dá uma explicação sobre o modo como determinadas personagens se expressavam, comentando que a maneira de falar de cada uma delas foi representada por ele de maneira consciente, devido ao seu conhecimento das diferentes variantes do inglês faladas no sul dos Estados Unidos. Ele chega mesmo a acrescentar “I make this explanation for the reason that without it many readers would suppose that all these characters were trying to talk alike and not succeeding”. (1994:6)35 A preocupação de Twain é, pode-se dizer, única, pois muitos outros autores que lançaram mão do uso do dialeto o fizeram sem pensar na possível reação do leitor quando fosse ler a obra. Comentando sobre o uso do dialeto em obras literárias K.M. Petyt diz que

Some have been intrigued by dialect in literature: Hardy’s use of Wessex dialect, the Yorkshire speech of Joseph in Wuthering Heights, Dickens’s attempts to portray the speech of various parts of Britain, or the numerous other uses of dialect for characterization. (1980:7)36

O uso da palavra intrigadas remete à idéia de que muitas vezes os leitores consideram o uso do dialeto na literatura como algo fora dos padrões esperados, confirmando a idéia de ‘inferioridade’ dialetal não condizente com o status de uma obra literária. Se um dialeto pode ser considerado fora do normal em um texto original, sua presença em obras traduzidas ainda é mais controversa. Vários estudiosos têm se dedicado ao estudo de tradução dos dialetos, sem aparentemente conseguir chegar a um consenso sobre o assunto. Na parte I do presente trabalho, vimos como alguns teóricos, entre eles Gillian Lane-Mercier e Anthony Pym,

34 Verificar no Apêndice, pp. 215 e 216, exemplos dessa literatura a que se refere Patrick Joyce.

35 Dou esta explicação pela razão de que sem ela muitos leitores poderiam supor que todas essas personagens estivessem tentando falar da mesma maneira e sem conseguir.

36 Algumas pessoas ficaram intrigadas com o uso do dialeto na literatura: o uso que Hardy fez do dialeto de Wessex, a fala de Yorkshire de Joseph em O Morro dos Ventos Uivantes, as tentativas feitas por Dickens de retratar a fala de várias partes da Bretanha, ou os outros inúmeros usos do dialeto para caracterização.

discutem a questão do socioleto literário e sua tradução, sobretudo os problemas enfrentados pelo tradutor que tenciona traduzir socioletos literários, citando entre outros exemplos o fato de não existir uma equivalência entre diferentes variantes dialetais, o risco de tornar uma tradução racista ou caricata. Outra questão levantada por muitos teóricos é que essa representação de um dialeto na literatura não é senão uma criação do autor, uma tentativa que ele faz de mostrar uma variante de fala que está restrita a poucas personagens, sofrendo limitações geográficas (uma determinada região de um país) ou sociais (classe a que pertence a personagem retratada), e essa tentativa envolveria idéias preconcebidas que não corresponderiam à realidade social do país. Mesmo levando em conta tais considerações, não podemos esquecer o fato de que os dialetos têm importância dentro do sistema de uma língua, e ignorá-los significaria ignorar uma característica muito importante da obra a ser traduzida.

No caso estudado nesta dissertação devemos fazer duas considerações antes de analisarmos como o tradutor pode trabalhar com a questão das variantes dialetais em uma obra literária. Em primeiro lugar, O Morro dos Ventos Uivantes faz parte do cânone da literatura mundial, e obras canônicas são olhadas com um respeito muito maior que obras consideradas ‘menores’. Esse respeito – muitas vezes excessivo – pode ter sido um dos fatores que levaram diversos tradutores a ignorar o fato de algumas de suas personagens falarem o dialeto de Yorshire. Em segundo lugar, se lembrarmos que a ação do livro situa-se na Inglaterra do fim do século XVIII e começo do XIX, podemos pensar que a presença do dialeto na linguagem oral nessa época era muito mais forte do que nos dias atuais. O estudo feito por K.M. Petyt salienta que Emily Brontë demonstrou ter princípios consistentes para a transcrição em uma época em que o estudo dos dialetos estava começando na Europa. Esse é um fato notável, se levarmos em conta que ela não teve acesso a nenhum tipo de estudo sobre dialetos e foi capaz de representar a forma de falar da região de maneira consistente e adequada.

Conforme observou Fernando Tarallo, “As variantes lingüísticas possuem e carregam, portanto, significado social, e a língua como um todo não somente reflete como também reforça, a cada momento, tais convenções.” (1987:16) Levando em conta tal observação e refletindo sobre o fato de Emily Brontë ter retratado em seu único livro personagens que falam o dialeto da região de Yorkshire, não estariam os tradutores, ao ignorá-lo, reforçando as convenções sociais que determinam o caráter ‘inferior’ das variantes não-padrão? Se no começo do século XX elas ainda eram encaradas como ‘desvios’ ou ‘aberrações’, com o aumento dos estudos na área tal situação deveria ter sido mudada, mas vimos que não foi esse o caso, pois mesmo a tradução mais recente do livro não apresenta uma proposta de representação para a fala de Joseph que mostre ao leitor brasileiro que ele não domina a norma culta do inglês.

Em seu ensaio, Patrick Joyce analisa os motivos que levaram à manutenção do dialeto na fala quotidiana dos habitantes das regiões do norte da Inglaterra e questões como a combinação de mudança e de continuidade na vida dos condados de Yorkshire e Lancashire para a permanência do dialeto (cf. p. 228-229). Se no começo do século XX as

pessoas ainda usavam o dialeto, podemos supor que, no final do século XVIII, época em que se situa a maior parte da ação de O Morro dos Ventos Uivantes, a existência de uma sociedade mais rural, mais voltada para as atividades do campo, favorecia o uso do dialeto como meio de comunicação entre as pessoas, pelo menos aquelas que pertenciam às classes sociais mais simples. Vemos que em O Morro dos Ventos Uivantes a única personagem que tem uma participação mais efetiva na narrativa e faz uso constante do dialeto é Joseph, o empregado da casa. Podemos pensar que essa característica faz parte justamente do ponto destacado por Joyce, as “poderosas continuidades de estrutura e memória que prevaleciam” (p. 229). Joseph poderia, então, ser visto como uma representação da cultura popular, dessa memória do passado e da continuidade de antigos costumes que, pouco a pouco, iam sendo deixados de lado devido às mudanças sociais ocorridas na Inglaterra da virada do século XIX.

Pensando em termos da realidade brasileira, é possível imaginar uma situação parecida ocorrendo no nosso país. Até o começo do século XX, dificuldades de comunicação entre as diversas regiões, pouco acesso à educação formal, e ausência de meios de comunicação como jornais e revistas, além da influência dos diversos substratos indígenas, bem como a manutenção de antigas estruturas do português arcaico que desapareceram em Portugal, levaram ao desenvolvimento de variantes do português no Brasil. Pessoas com pouca ou nenhuma educação formal usavam então variantes do português que não correspondiam à ‘norma culta’ usada pelas poucas pessoas que tinham acesso à educação. Considerando a tradução do livro O Morro dos Ventos Uivantes para o português, podemos supor que um empregado de uma casa afastada de uma cidade grande dificilmente usaria a norma culta para se comunicar no seu dia-a-dia. Portanto, ao traduzir o livro, devemos tentar encontrar para Joseph uma variante da norma considerada ‘culta’ para representar sua forma de falar.

Nesse momento a dialetologia é uma ferramenta extremamente importante para a tradução dessa variante do inglês não-padrão. Analisando estudos feitos em relação ao português falado em diferentes regiões do Brasil podemos encontrar determinadas características presentes de maneira generalizada na fala informal e não-padrão em todo nosso território (elas serão mostradas na parte IV deste trabalho). O uso dessas variantes na tradução do livro permitiria ao leitor brasileiro ver que há uma diferença entre a forma de falar de Joseph e de seus patrões de uma maneira que soaria natural. Obviamente, essa tradução não seria um correspondente exato das características específicas do dialeto de Yorkshire, mas não se pode esperar encontrar um equivalente exato para esse dialeto no Brasil, já que a grande diferença existente entre português e inglês não favorece nenhum tipo de comparação entre as duas línguas.

V. Caracterização de empregados na literatura brasileira dos séculos