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Capítulo II – Língua, dialetos e norma culta

III. Estudos dialetológicos no Brasil

XX com o trabalho de Antenor Nascentes, que estabeleceu as bases para elaboração de um Atlas Lingüístico do Brasil – muitas de suas diretrizes são usadas até hoje na elaboração dos Atlas regionais brasileiros. Além de Nascentes, um dos pioneiros nessa área de estudos no Brasil é Amadeu Amaral com seu livro O dialeto caipira, no qual ele faz um levantamento das formas de falar do caipira paulista, também nas primeiras décadas do século XX. Um ponto interessante relativo a esse livro é o fato de Amadeu Amaral ter dito, na sua introdução, que havia feito essa pesquisa pensando em conservar um registro do falar típico dos habitantes do interior de São Paulo, em sua opinião uma variante fadada ao desaparecimento devido às diversas influências recebidas pelo caipira, como o afluxo de imigrantes no interior do estado; desaparecimento gradual da influência do negro; maior acesso à escola e, conseqüentemente, à educação formal, o que levaria à adoção da norma culta por um maior número de pessoas, bem como o fato de o avanço nas comunicações fazer com que as regiões mais distantes onde o caipira vivia fossem atingidas com maior rapidez e entrassem em contato com o modo de vida das cidades grandes. Porém, o que vemos na realidade é que esse modo de falar não desapareceu, e o dialeto caipira estudado por Amaral continua presente na cultura brasileira, coexistindo ao lado de outras variantes do português não-padrão. Outro fato digno de nota é que várias das características apontadas por Amaral como típicas do falar caipira paulista foram registradas em outras regiões do país quando os Atlas lingüísticos regionais começaram a ser elaborados; essa observação mostra que certos fenômenos lingüísticos não podem ser considerados como particulares de uma área restrita, mas sim, como uma tendência de simplificação natural da língua falada. Um bom exemplo é a despalatalização lh > i, que, segundo Bassetto, é encontrada em várias línguas românicas faladas na Europa, como o espanhol, o francês, o

sardo, e até mesmo o romeno (cf. 2001:153), não se limitando, portanto, a regiões do estado de São Paulo.

No entanto, desde o início dos estudos dialetológicos, podemos perceber que por muito tempo eles se concentram mais na língua falada pelas classes que têm pouco ou nenhum acesso à educação formal, como se apenas essas variantes fossem dignas de estudo. Mas, se pensarmos que todos as pessoas são falantes de um dialeto, esse enfoque em apenas uma variante dialetal pode levar a uma visão incorreta da realidade lingüística de um país. Com o desenvolvimento da dialetologia e da geografia lingüística no século XX conceitos como dialetologia urbana e rural começaram a se difundir e desde então temos estudos feitos sobre variantes dialetais não somente em localidades afastadas habitadas por pessoas que não tiveram acesso à educação formal, mas também em grandes centros urbanos, onde convivem pessoas de diversas origens e classes sociais. Tais estudos podem mostrar a existência de variantes dialetais em todas as localidades de um país, não apenas em regiões afastadas habitadas por pessoas sem muito acesso à educação formal.

A realidade brasileira é bastante diferente da européia no que se refere à questão dos dialetos. Na Europa, devido a fatores históricos, econômicos e políticos, temos a presença de diversas variantes lingüísticas que coexistem muitas vezes em territórios relativamente pequenos. Um exemplo significativo é o da Espanha, país cujo território é menor que o do estado de Minas Gerais, e que tem quatro línguas oficiais, das quais uma – o basco – sequer pertence ao mesmo ramo das outras três, que são línguas latinas, além de dialetos como aragonês e leonês. Uma de suas línguas oficiais – o catalão, falado por centenas de milhares de pessoas, inclusive na segunda cidade mais importante do país, Barcelona – não é considerado senão um dialeto na França, país que muitas vezes se caracterizou por uma postura mais rígida de defesa do francês como única língua oficial e a supressão de dialetos falados em diferentes partes do seu território. A língua é a mesma, mas seu status de ‘língua oficial’ e de ‘dialeto’ é determinado não por suas características particulares, mas por fatores políticos.

Quando os portugueses iniciaram a colonização do nosso país trouxeram para cá a língua portuguesa, completamente diferente das línguas nativas faladas pelas diversas tribos indígenas que aqui viviam. Por muito tempo – de acordo com alguns historiadores até começo do século XIX – existiu no Brasil o nheengatu, língua de origem indígena que mesclava elementos do português e do tupi e era usada pela população em geral, mas ela foi desaparecendo com o passar do tempo devido a imposições feitas pelo governo brasileiro e cedeu seu espaço ao português. Além da imposição governamental, talvez a diversidade das línguas indígenas faladas no Brasil também tenha favorecido a hegemonia do português no nosso território, pois as diferentes tribos não se comunicavam entre si, o que pode ter levado a um maior uso do português como língua de ‘aproximação’ entre brancos, negros e índios, e as línguas indígenas ficaram restritas às suas comunidades de origem. Porém, a presença dos índios e dos negros que foram trazidos para cá como escravos exerceu uma influência muito grande sobre o português

falado no Brasil, não na estrutura da língua, que se manteve bastante parecida com o português falado em Portugal, mas sim no vocabulário e na pronúncia de determinados sons. E embora tenhamos tido contato com diversas línguas trazidas pelos imigrantes que para cá vieram, o fato de o português já estar consolidado na época em que eles vieram para o Brasil limitou a influência delas ao nosso vocabulário, não havendo interferência na parte sintática da língua. Por isso, não podemos dizer que no Brasil a situação lingüística é semelhante à da maioria dos países europeus, onde a diferença entre os dialetos pode dificultar bastante a comunicação entre os habitantes de regiões distantes de um país. De acordo com Fernando Tarallo,

...poderíamos dizer que a área geográfica brasileira é composta de uma multiplicidade de dialetos, mutuamente inteligíveis [...] No caso do Brasil há, portanto, um multidialetismo ameno (as diferenças regionais localizam-se, em geral, nas áreas da fonética, da fonologia e do léxico). (1987:11)

e a observação de Dino Preti, complementando o tópico abordado por Tarallo:

Se observarmos, por exemplo, uma sociedade de grande área geográfica, como a brasileira, notamos que, enquanto as variações léxicas são inúmeras, enquanto as oposições fonológicas e o ritmo prosódico apontam mudanças consideráveis, as estruturas sintáticas e morfológicas apresentam maior unidade, apesar de certas regências e concordâncias típicas, certas estruturas frásicas originais de algumas regiões. (1974:28)

Por fim, o comentário feito por Marli Quadros Leite sobre a situação lingüística no nosso país:

No Brasil, não há uma “língua padrão” em moldes rígidos, como existe, por exemplo, na Inglaterra. Aqui não se ensina uma pronúncia padrão e também não há diferença de valor quanto a usos regionais, relativamente à gramática e ao léxico. O que há, ao lado de todas as normas praticadas pelos falantes, é um padrão ideal de linguagem, a que todos almejam alcançar, que tem apenas como parâmetro uma norma tradicional, também denominada prescritiva ou explícita. Os dialetos e registros são avaliados, então, a partir do seguinte critério: se mais distante dessa norma, menor prestígio; se mais próximo, maior prestígio. (2005:187)

As opiniões dos três estudiosos coincidem, salientando que as diferenças de registro de fala existentes na sociedade brasileira são menos significativas que as encontradas em outros países, e não impedem a boa comunicação entre os falantes das diversas regiões do país. Esse fator deveria levar a uma maior aceitação das variantes dialetais por parte da sociedade; no entanto, a situação dos dialetos no Brasil ainda é vista sob uma perspectiva conservadora. Assim como em países europeus – ou talvez até por influência de idéias recebidas por europeus – as variantes dialetais no Brasil sempre foram vistas como formas ‘erradas’ da língua portuguesa, cuja utilização deveria ser desencorajada e, se possível, erradicada da linguagem oral. A idéia de que existiria uma forma de português ‘melhor’ ou ‘mais correta’ que outras levou à discriminação de variantes dialetais de regiões mais

pobres e menos desenvolvidas do país. Podemos lembrar que, a princípio, o próprio português falado no Brasil era considerado ‘errado’ e ‘inferior’ ao de Portugal devido às variações que surgiram em nossa língua tanto na parte sintática (por exemplo, a colocação pronominal) quanto no vocabulário.

Como foi dito acima, uma determinada variante acaba sendo considerada a norma culta de uma língua devido a fatores externos, como acontecimentos históricos, econômicos e sociais na vida de um país, mas esse fato é esquecido – ou muitas vezes sequer foi reconhecido – e essa variante adquire todo o prestígio, ficando as outras variantes categorizadas como inferiores ou menores. Porém, um fator não observado em relação a essa posição antagônica entre norma culta e suas variantes é que a norma culta acabou ficando mais cristalizada, cerceada por regras rígidas, enquanto as variantes apresentam características que as tornam mais criativas e dinâmicas que a norma culta. Conforme observou Fernando Tarallo em seu livro A Pesquisa Sociolingüística,

As variantes de uma comunidade de fala encontram-se sempre em relação de concorrência: padrão vs. não-padrão; conservadoras vs. inovadoras; de prestígio vs. estigmatizadas. Em geral, a variante considerada padrão é, ao mesmo tempo, conservadora e aquela que goza do prestígio sociolingüístico na comunidade. As variantes inovadoras, por outro lado, são quase sempre não-padrão e estigmatizadas pelos membros da comunidade. (1986:11-12)

Se considerarmos a norma culta senão como uma variante do português falado no Brasil, não podemos pensar que devemos nos limitar a seguir suas regras e evitar as contribuições trazidas pelas variantes à língua padrão. As variantes inovadoras, que enriquecem o vocabulário e tornam a língua mais dinâmica são formas legítimas de comunicação entre os brasileiros, e se acreditarmos que uma aparente superioridade da norma ‘culta’ da língua portuguesa em relação a quaisquer outras variantes não-padrão é válida, estaremos ignorando uma das mais importantes características de qualquer língua viva, que é a de se transformar e de criar novos vocábulos e formas de expressão que correspondem às necessidades lingüísticas e sociais de seus falantes. E, podemos finalizar com as palavras de Marli Quadros Leite sobre a ‘norma culta’ da língua:

...essa norma da gramática não é efetiva e cabalmente realizada por nenhum falante. O que realmente existe é um mosaico de normas, um leque de possibilidades de realizações da língua, e entre essas possibilidades há uma realização, falada ou escrita, que se aproxima mais do que prescreve a gramática normativa. (2005:184)

IV. Estudos dialetológicos e a tradução de textos literários