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Considerações sobre a responsabilidade social da empresa

1.2. Uma ação afirmativa no Brasil em prol do direito ao trabalho das pessoas com deficiência: a Lei de Cotas do setor privado

1.2.1. Considerações sobre a responsabilidade social da empresa

Conforme tratado em tópico anterior acerca do conceito de dignidade da pessoa humana, existem palavras e expressões na legislação que são consideradas “cláusulas gerais”, também denominadas “conceitos abertos”. Esse é o caso da expressão “função social” ou “responsabilidade social”, além de outras expressões, como “bem comum”, “boa-fé” e até “dignidade humana”.

As cláusulas gerais sofrem algumas críticas. Em particular sobre a função social, podem-se transcrever duas dessas críticas. A primeira é trazida por Blanchet, tratando da função social da propriedade:

Considerando a legislação em vigor, salienta-se que há aspectos controvertidos em relação à função social da propriedade. Há os defensores de que apenas as limitações legais seriam suficientes para o atendimento da função social, por outro lado, há os que entendem que, apesar desta perspectiva conferir maior segurança e certeza, a função social possui autonomia que prescinde da existência das mencionadas restrições, das quais constitui justificação. Daí porque defender-se que, além das limitações legais, a propriedade deve atender à função social, todavia esta constitui-se em conceito vago, elástico, difícil de ser compreendido e objetivamente cumprido.73

A segunda, especificamente sobre a função social do contrato, é trazida por Teresa Wambier (itálicos da autora):

Retomando as considerações feitas no item anterior, no sentido de que princípios jurídicos hoje são tidos como elementos integrantes do sistema normativo, e de que se tornam cada vez mais frequentes cláusulas gerais e normas que contêm, em sua formulação, conceitos vagos, passamos no item seguinte a analisar o perigo dos excessos. [...] Todos os esforços devem ser feitos, portanto, segundo o que nos parece, já que estes elementos hoje são realmente integrantes do sistema jurídico, que como dissemos é parâmetro de conduta para a sociedade e de decisão para o juiz, para que, a estes conceitos vagos, aos princípios, às cláusulas ditas gerais etc., se atribua um só sentido, pois ninguém age ou decide com segurança, se ao houver um mínimo de objetividade nos critérios adotados para avaliar o erro e o acerto das atitudes e dos julgamentos.74

Como se pode perceber, mencionadas críticas são em sentido de afirmar a falta de objetividade quanto ao sentido e ao alcance dessas “cláusulas gerais”, que acabariam por produzir insegurança jurídica e imprevisibilidade nas decisões judiciais, desestabilizando a sociedade. Entretanto, são essas críticas que, no fundo, acabam por

73 BLANCHET, Jeanne D‟Arc Anne Marie Lucie. A função social da empresa, a liberdade econômica e o

bem comum. Curitiba: Genesis, 2004, pp. 57-58.

74 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as “cláusulas gerais” do Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 831, pp. 59-79, jan. 2005, p. 63.

impedir ou dificultar a efetivação da legislação, como já alertava o mestre Comparato, em 1986 (sublinhado nosso):

No contexto do amplo debate político e ideológico da atualidade, defender a função social da propriedade, sem especificações maiores, pode ser e tem sido um argumento valioso para a sustentação do status quo social em matéria de regime agrário e de exploração empresarial capitalista. Se se quiser lograr algum avanço na regulação constitucional da propriedade, é preciso estabelecer as distinções e precisões fundamentais. Algumas delas já foram mencionadas nesta exposição: a função social da propriedade não se confunde com as restrições legais ao uso e gozo dos bens próprios; em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos.75

É por essa razão que se defende, aqui, a tese de que o conceito de função social da empresa, explicitamente previsto no parágrafo 1º do artigo 1.228 do CC/02, quando relacionado ao cumprimento da Lei de Cotas, deixa de ser uma “cláusula geral”, tornando-se um conceito fechado, específico, objetivo, previsível e seguro.

O conceito de função social da empresa é derivado do conceito da função social da propriedade, conforme inciso XXIII do artigo 5º da CF/88. Aqui, merece ser destacada, novamente, a lição de Comparato:

incluem-se na proteção constitucional da propriedade bens patrimoniais sobre os quais o titular não exerce nenhum direito real, no preciso sentido técnico do termo, como as pensões devidas pelo Estado, ou as contas bancárias de depósito. Em conseqüência, também o poder de controle empresarial, o qual não pode ser qualificado como um ius in re, há de ser incluído na abrangência do conceito constitucional de propriedade.76

Isto posto, torna-se evidente que, se há direito de propriedade, sobre ele recai a obrigatoriedade da função social. Com o direito de propriedade da empresa não há de ser diferente; logo, existe a função social da empresa.

No presente tópico, pretende-se demonstrar que a responsabilidade social da empresa pode ser traduzida também pelo cumprimento da Lei de Cotas. O cumprimento da Lei de Cotas é uma função social definida e claramente determinada para a empresa, função esta abrigada pelo manto da legalidade. Por sua vez, a legalidade é expressa pela própria Lei de Cotas e pela aplicação sistemática e teleológica de todo o ordenamento

75 COMPARATO, Fábio Konder. Função Social da Propriedade dos Bens de Produção. Revista de Direito

Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 25, n. 63, pp. 71-79, jul./set. 1986, p.76.

76 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85, n. 732, pp. 38-46, out. 1996, pp. 43-44.

jurídico nacional, que ratifica a referida lei como constitucional77 e ressalta a sua relevância para a efetivação da dignidade do ser humano. Quanto à relação entre a Lei de Cotas e a dignidade da pessoa humana, citem-se as belas palavras de Fonseca:

O Direito Civil contemporâneo incorporou princípios constitucionais, sobre os quais predomina o princípio da dignidade da pessoa, o que implica uma ruptura com o direito civil napoleônico, patrimonialista e patriarcal. Universaliza-se, personaliza-se tal princípio, elegendo-se o ser humano como protagonista de suas instituições. [...] As normas de ação afirmativa corroboram essa tendência, eis que determinam uma maior mitigação do princípio da autonomia privada. A contratação laboral de pessoas com deficiência, em percentuais legalmente fixados, impõe a contribuição dos trabalhadores que, antes dessas leis, sequer se supunha imaginá-los cidadãos produtivos. A ruptura desse paradigma norteia para essa conduta, sendo, muitas vezes, temerária a imposição pela imposição, porque o resultado dela decorrente pode não atingir os fins desejados pela lei. A superação desse risco afigura-se realizável, no entanto, pela atuação constante do Estado e da sociedade para se discutir a questão durante as próximas décadas, tomando-se a Lei de Cotas como ponto de partida.78

Para além do que foi dito até aqui, a responsabilidade social da empresa, de contratar e manter pessoas com deficiência, não sacrifica a sua função lucrativa. Por conseguinte, não fere a existência da própria empresa, isto porque a contratação de pessoas com deficiência deve ser tão necessária, produtiva e eficaz quanto a de pessoas sem deficiência, como será demonstrado no curso desta pesquisa.

É por isso que se defende aqui a tese de que esta função empresarial abrange tanto a contratação quanto a qualificação profissional, sempre para um trabalho decente e digno, ou seja, compatível com as habilidades profissionais e pessoais atuais da pessoa com deficiência. Por outro lado, a função social da empresa deve visar ao adequado cumprimento da Lei de Cotas e, por isso também, a contratação não deve caracterizar assistencialismo, caridade ou filantropia.

Além da responsabilidade da empresa (incluídos os entes sindicais representantes da categoria econômica) no cumprimento da Lei de Cotas, pode-se argumentar que essa responsabilidade é também de toda a sociedade, visto ser ela responsável pela efetivação da citada lei; de fato, a convivência na diversidade faz parte da construção de uma sociedade inclusiva: uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I do artigo 3º da CF/88) é corolário da República Federativa do Brasil.

Por decorrência, tal responsabilidade abrange o Estado (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), ONG‟s e movimentos sociais (cujo objetivo seja a inclusão social

77 Sobretudo nos termos da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.

78 FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência e a lapidação dos

das pessoas com deficiência), famílias de pessoas com deficiência e entes sindicais (da categoria econômica e da categoria profissional).

Cabe ao Estado, por exemplo, a responsabilidade da efetivação da educação inclusiva, devendo garantir o acesso ao ensino regular, com atendimento especializado, por todas as pessoas com deficiência, (artigo 205 e inciso III do artigo 208, ambos da CF/88), garantindo, desse modo, as mesmas oportunidades de trabalho para todas as pessoas, com ou sem deficiência.

Cabe à família, ao representante ou ao curador da pessoa com deficiência, se houver, viabilizar a inclusão trabalhista dessa pessoa, estimulando sua autonomia e independência, gerando cidadania e dignidade (incisos II e III do artigo 1º e artigo 205, todos da CF/88).

Cabe aos entes sindicais da categoria profissional negociar e reivindicar medidas inclusivas, em prol de melhoria das condições de trabalho da pessoa com deficiência, junto ao Estado e às empresas (artigo 7º, caput, da CF/88).

Cabe ao MTE, ao MPT e à Justiça do Trabalho aprovar todas as ações verdadeiramente inclusivas, que respeitem o paradigma da inclusão social, isto é, que assegurem autonomia, independência, empoderamento, equiparação de oportunidades, acessibilidade física e atitudinal, às pessoas com deficiência.

2. A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E SUA