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CAPÍTULO II O DEBATE CONSTITUCIONAL NA FORMAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS

2.2 Considerações sobre o federalismo norte-americano

O envio da nova proposta constitucional pelos estados na Convenção Constitucional da Filadélfia em 1787 inaugurou um novo momento da história do país. Isto porque, o debate sobre a manutenção dos Artigos da Confederação foi superado e em substituição, os estados passaram a debater sobre o papel destinado a eles e ao governo nacional no novo sistema de federação. Este período inaugura do federalismo moderno pelos Estados Unidos com o abandono do sistema de confederação e a ratificação da nova proposta constitucional (Anderson, 2009). Este formato foi posteriormente adotado como modelo por outros Estados, e “has been hailed as the greatest of American contributions to the art of government” (Morgan, 2008:1).

O sistema federalista corresponde a um mecanismo organizacional no qual a soberania é centralizada pelo governo nacional. A estrutura de Confederação na qual os estados são soberanos e independentes foi substituída por um novo modelo que estabeleceu mecanismos de distribuição de poder e responsabilidades entre as unidades subnacionais e nacionais por meio de um mecanismo de governança coletiva (Morgan, 2008). Kincaid (2011) define este arranjo como um modelo de governança que preserva a diversidade por meio de uma união constitucional de diferentes comunidades políticas “in a limited, but encompassing, policital community (Kincaid and Tarr, 2005)” (Kincaid, 2011, xxii). No modelo de federação, a Constituição representa o elemento aglutinador deste processo e por meio dela são estabelecidas as razões para a União dos estados, os termos da mesma, os direitos individuais, as estruturas de governo, as funções entre os seus diferentes níveis e a alocação de poder entre as unidades constitutivas (Kincaid, 2011).

Elazar (1987) compara o sistema federativo a uma estrutura de poder não-centralizada, com uma divisão de poderes e de funções de forma que na Federação, seus membros podem governar de forma autônoma enquanto os membros e seus cidadãos participam juntos da governança através da autoridade estabelecida constitucionalmente entre cada um de seus membros. Assim, na federação o poder é constitucionalmente dividido e distribuído entre um governo geral (no caso o governo nacional) e os governos constitucionais (ou estados) que teriam reponsabilidades ampliadas no âmbito regional e local.

Este tipo de sistema possui variações importantes quando se considera o equilíbrio estabelecido entre suas unidades constitutivas (estados e governo nacional) o qual determinará as características de um sistema harmônico, estável ou conflituoso. E serão as características deste

sistema que determinarão o grau de centralização de poder e autonomia entre as unidades (Anderson, 2009).

Ao considerarmos o estudo do federalismo norte-americano, duas principais teorias analisam os diferentes arranjos estabelecidos entre os estados e governo federal ao longo da história: o “Federalismo Dual” e o “Federalismo Cooperativo” (Zimmerman, 2001)10.

O primeiro arranjo de federação adotado no país foi o Federalismo Dual, expressão cunhada por Corwin (1950) também conhecida pelo termo “layer-cake” federalism, criada por Grodzins (1966) descrevendo um sistema no qual instituições e funções em cada nível de governo são consideradas separadamente. Neste modelo, o governo federal e os estados mantém sua autonomia, sendo consideradas esferas de poder com igual importância. Edward Corwin (1950) define o Federalismo Dual como um sistema em que o governo nacional é apenas um dos poderes enumerados, sendo seus poderes limitados. Baseando-se na definição deste autor, Zimmerman (2001:18) apresenta seis principais postulados que explicam a natureza do sistema federativo dual:

1) O Congresso possui apenas os podres enumerados e deve empregá-los para promover poucos efeitos;

2) No âmbito de suas respectivas esferas, o Congresso e os estados são soberanos e iguais;

3) O Congresso e os legislativos estaduais não podem anular um ato do outro ou empregar poderes coercitivos contra os planos de outro;

4) As mudanças na distribuição de poder entre as duas esferas de governo devem ser realizadas apenas por meio de emendas constitucionais;

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Há autores que subdividem os arranjos federativos nos Estados Unidos em outros modelos. Além do Federalismo Dual (ou “Layer-cake” Federalism) e do Federalismo Cooperativo (ou “Marble- cake” Federalism) há uma literatura que trabalha com a inclusão do Coercive Federalism. Este federalismo coercivo refere-se a situações nas quais o governo federal interfere em assuntos antes exclusivos dos governos estaduais. Kincaid (1996) destaca que este processo é identificado nos últimos sessenta anos. Para um aprofundamento deste modelo de federalismo ver: Wright (1988), Walker, (1989), Edwards e Lippuccci (1998); Anderson (2009); Morgan (2008).

5) O relacionamento entre as esferas são mínimas uma vez que cada Congresso e cada legislativo estadual opera de forma autônoma, empregando seus respectivos poderes enumerados ou reservados;

6) O Congresso e o legislativo estadual, cada um, possui o poder tributar e contrair empréstimos.

Assim, neste modelo, as duas esferas de governo são soberanas e iguais, e o relacionamento entre os dois centros de poder são marcados mais pela tensão do que pela colaboração11.

O debate sobre este tipo de modelo de federação é identificado desde a formação dos Estados Unidos quando analisamos os artigos apresentados pelos Federalistas. Ao discutir a distribuição de poderes entre os estados e o governo federal Madison, no Artigo Federalista n.45 declara que: “os poderes que a Constituição proposta delega ao governo federal são poucos e definidos. Os que devem permanecer em mãos dos governos estaduais são numerosos e indefinidos” (Madison, 1993: 320-321).

Também Hamilton, no Artigo Federalista n.32 apresenta elementos importantes para a teoria do federalismo dual ao afirmar que: “a total consolidação dos Estados numa plena soberania nacional implicaria uma total subordinação das partes; e todos os poderes que elas possam conservar ficariam inteiramente dependentes da vontade geral. Mas, como o plano da convenção visa apenas a uma união ou consolidação parcial, os governos estaduais conservariam claramente todos os direitos de soberania que tinham antes e que esse mesmo ato não delegue

exclusivamente aos Estados Unidos”. E ainda ressalta que essa delegação exclusiva “ou antes

essa alienação da soberania dos Estados, só existiria em três circunstâncias: aquelas em que a Constituição assegura expressamente um poder exclusivo à União e, em outro, proíbe os Estados de exercer um poder similar; e aquelas em que assegura à União um poder com o qual a posse de poder similar pelos Estados seria total e absolutamente contraditória e incompatível (Hamilton, 1993:240-241).

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“1.The national government is one of enumerated powers only; 2. Also the purposes which it may constitutionally promote are few; 3. Within their respective spheres the two centers of government are "sovereign" and hence "equal"; 4. The relation of the two centers with each other is one of tension rather than collaboration” (Corwin, 1950:4).

Na interpretação da literatura especializada, o modelo Dual foi característico da primeira fase do federalismo norte-americano, marcando desde o período Constitucional (1790) até o governo Roosevelt (1930) quando a preocupação em garantir a soberania estatal é mais marcante. Contudo, esta delimitação temporal não é consensual. Há diferentes interpretações sobre o fim deste modelo. Contrário à interpretação geral de que o Federalismo Dual chegou ao fim no governo Roosevelt em consequência das políticas envolvendo o New Deal e que levaram o governo federal a trabalhar de forma cooperativa com os estados, parte da literatura entende que o arranjo cooperativo foi anterior a este período. O federalismo cooperativo pode ser definido como um modelo no qual “the states have preserved their integrity not through a sharp separtion of their political systems form the national system but within an intricate framework of cooperative relationships that preserve their structural integrity while trying all levels of government together functionally in the common task of serving the American people” (Elazar, 1966 apud Sager, 1995:34).

Para estes autores, o fim da competição por poder entre estados e governo federal foi anterior ao New Deal. Elazar (1959) argumenta que a cooperação significativa entre estados e governo federal esteve presente desde o início do século XIX, durante a Guerra Civil. Segundo Zimmerman, o trabalho de Elazar “demonstrated conclusively that relations between the national government and the states had been cooperative from the early decades of the nineteenth century to 1913, thereby revealing the inadequacy of the explanatory value of the theory of dual federalism” (Zimmernan, 2001:15).

Elazar (1959) busca uma hipótese alternativa de federalismo, ao afirmar que o relacionamento entre os estados e governo nacional se caracteriza essencialmente pela cooperação. Zimmernan corrobora com este argumento quando destaca que o estudo das relações interestatais, demonstrou que “although competitive and conflictive at times, and state-local relations generally are cooperative in nature” (Zimmerman, 2001:16). Entretanto, o autor ressalta que esta posição não é consensual uma vez que, embora a teoria do federalismo cooperativo seja aceita amplamente como o arranjo estabelecido atualmente, há dúvidas de que esta teoria negue completamente a existência do Federalismo Dual. Isto porque, este modelo é identificado com maior clareza quando se observa o processo de formação do sistema norte-americano, a busca pela garantia da autonomia dos estados e o receio pelo fortalecimento do governo nacional. A manutenção do federalismo norte-americano dependeu fundamentalmente do equilíbrio

estabelecido pelos seus fundadores ao buscar flexibilizar alguns princípios, como observaremos nas discussões para a ratificação e aprovação da Constituição do país.

Historicamente, os Estados Unidos apresentam contestações de autoridade jurisdicional entre os diferentes níveis de governo. Esta característica se explica porque o modelo federalista adotado no país buscou equilibrar os interesses daqueles defensores da autonomia dos estados e os favoráveis à maior centralização do poder no governo nacional. Como ressalta Morgan (2008:1), “such disputes found expression in competing interpretations of the Constitution’s intent regarding the relative powers of the federal government and the states”. As críticas sobre a delegação de poderes aos diferentes níveis de governo marcaram o início da formação da União, sobretudo no debate relacionado à reforma da Confederação e a adoção de uma nova proposta constitucional.

Embora a interpretação do Federalismo Dual seja mais presente na primeira fase do federalismo norte-americano, é importante dstacar que as discussões envolvendo a autonomia entre estados e o governo federal se mantém na vida política norte-americana e devem ser entendidas como a essência do modelo federalista adotado no país.

A identificação desta situação de conflito entre os interesses estaduais e federais é característica tanto da política doméstica quanto da condução da política internacional norte- americana. O estudo das atividades internacionais dos estados realizado nesta pesquisa identificará este elemento da estrutura institucional norte-americana. Sager (1995) corrobora com este entendimento ao analisar o papel dos diferentes níveis de governo nas regulações e participação do comércio internacional12. Ao tratar das ações estaduais a autora argumenta suas ações são marcadas por um relacionamento intergovernamental ora conflituoso, ora cooperativo com o governo federal. Desta maneira, é possível afirmar que no campo da política internacional o relacionamento entre estados e governo federal nos Estados Unidos corresponde a estes dois modelos do federalismo: o federalismo dual e o federalismo cooperativo.

O próximo capítulo buscará discutir este modelo de federação ao analisar de que forma o novo texto constitucional pode contribuir para a compreensão deste sistema tendo em vista o papel e autonomia dos estados para atuarem na política internacional.

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Em seu trabalho a autora busca identificar os padrões de relacionamento entre estados e governo federal nos assuntos de política internacional tendo como foco o relacionamento marcado pelo conflito e cooperação entre estes atores nas negociações multilaterais para a constituição do NAFTA e na Rodada Uruguai do GATT (Sager, 1995).

CAPÍTULO III – A CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS E O