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CAPÍTULO 3. ASPECTOS DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO NA RMS E EM LAURO DE

3.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE PRODUÇÃO DO ESPAÇO, CIDADE E CAPITALISMO

A interpretação mais comum da palavra produção se circunscreve à fabricação de algum objeto, à quantidade de coisas acumuladas ou àquilo que se realiza pelo trabalho. No entanto, acompanhando os textos marxistas tem-se um entendimento bem mais complexo do termo. Seu estudo conduz à compreensão de que “[...] as causas últimas de todas as transformações sociais e políticas não residem na cabeça dos homens, na sua crescente compreensão da verdade e justiça eternas, mas, nas alterações sofridas pelos modos de produção e troca” (ENGELS, 1877 apud HARNECKER, 1976a). E, conforme Marx (2011, p. 41), “[...] quando se fala em

produção, sempre se está falando de um estágio de produção de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais”.

Em verdade, cada modo de produção corresponde a uma sociedade ou a uma forma específica de os homens se relacionarem e construírem sua existência. Nesses termos, sua modificação resulta em diferenciações na/da própria organização social. E por quê? Porque o homem, enquanto realiza a produção, está tanto criando coisas, quanto estabelecendo relações com os demais agentes envolvidos nesse processo. A partir disso, constrói ideias sobre si mesmo, sobre seu mundo e sobre sua participação nele.

Lefebvre (2013, 2006a) retoma as ideias de Marx e ensina que há duas possibilidades de interpretar a expressão produção. Uma visão mais limitada e comum a associa à fabricação dos produtos e a elaboração material de coisas. Numa concepção mais ampla, entende-se por produção, além da confecção de bens, a criação de obras e a realização da vida nos seus múltiplos aspectos.

Considerando essa perspectiva mais ampla, o espaço é um produto consumado pelo e para o funcionamento da sociedade. Nele se inscrevem os resultados dos processos decorrentes do viver do homem na construção de sua humanidade. Ao mesmo tempo, ele se constitui numa das condições para que tais processos aconteçam. É nesse sentido que, como diz Lefebvre (2013, p. 57), “Si el espacio (social) interviene en el modo de produccíon, a la vez efecto, causa y razón, cambia con dicho modo de produccíon. Es fácil de comprender: cambia con las ‘sociedades’ [...]”76

. Portanto, sendo uma dimensão real e concreta da existência humana, se constitui, simultaneamente, em condição para sua produção (material) e reprodução (social).

Para entender melhor essa articulação, lembra-se que, no capitalismo, o espaço comporta as relações de produção (orientadas pela divisão e organização do trabalho) e as de reprodução da força de trabalho e das relações sociais de

76 “Se o espaço (social) intervem no modo de produção, como efeito, causa e razão, muda com dito

modo de produção. É fácil compreender: muda com as ‘sociedades’ […]” (tradução nossa). É válido assinalar que a noção de reprodução de que trata essa teoria não se reduz ao sentido biológico ou demográfico do termo, envolve também os utensílios necessários à produção e à realização das relações sociais, quer dizer, da manutenção das condições que permitem a continuidade da estrutura social.

produção. Para assim funcionar, é necessário um conjunto de condições que permitam a reprodução das relações que sustentam esse modo de produção. Assim, na medida em que “[...] el espacio social permite que tengan lugar determinadas acciones, sigiere unas y prohíbe otras”77

(LEFEBVRE, 2013, p. 129), revela seu papel na reprodução social. Sendo assim, articulado ao mundo do trabalho e às relações de produção em sentido restrito, a reprodução social – ou a perpetuação, entre gerações, da sociedade, com seus conflitos e contradições – decorre do próprio dinamismo da realização da vida cotidiana (CARLOS, 2001).

No capitalismo, portanto, o espaço não deixa de se constituir num valor de uso, todavia, cumpre, além disso, o papel de mercadoria. Como tal, é usado, comercializado e consumido. É também um meio útil de controle, de expressão do poder e da dominação. Essas assertivas se fazem verdadeiras quando se verifica que, apoiada em ideologias e em representações78, a classe dominante vem controlando quem usa e o que se faz no espaço, bem como, atribui-lhe significações. Assim produzido, conforme Lefebvre (2013), ele é abstrato, caracterizado pela dissimulação da realidade e pelo encobrimento das desigualdades. O espaço do capitalismo é, pois, aquele em que imperam as coisas- signos (quer dizer, tanto objetos como os sentidos/representações atribuídos aos mesmos), os códigos, o saber acrítico, uma ampla e diversificada violência, a quantidade (em detrimento da qualidade), a repetição/homogeneização e a dissimulação das diferenças79. Sendo assim, pensar a cidade implica admitir que

77 “[...] o espaço social permite que tenham lugar determinadas ações, sugere umas e proíbe outras”

(tradução nossa).

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Para Lefebvre (1991a, 2006b), a ideologia é uma mescla de conhecimentos e interpretações do mundo que cria uma ilusão a respeito da realidade. Seu objetivo é, pois, recobrir o real. Em La presencia y la ausência, verifica que a definição de ideologia apresentada por Marx e Engels é um tanto imprecisa e se refere a uma “mentira de classe” aceita por uma “passividade de classe”, uma dissimulação do real pelo dualismo entre a concretude da coisa e a abstração sobre ela. Segundo entende, a realidade se modifica quando representada, o que não se significa que uma representação seja um reflexo ou um encobrimento do real. Ela tem a função de ampliar, deslocar, transpor ou ocultar sua “realidade”, relaciona-a a conjunturas específicas de uma determinada estrutura social. Por isso, ela não é verdadeira, nem falsa. “Es una operación ulterior, uma actividade reflexiva, la que les confiere verdad y/o falsidade relacionandolas con las condiciones de existência de quienes las producen. Las representciones son falsas en lo que apuntan y diecen pero verdaderas con respecto a lo que las suporta” (LEFEBVRE, 2006b, p. 57-58) (“É uma operação ulterior, uma atividade reflexiva que lhes confere a verdade ou falsidade relacionando-as com as condições de existência quem as produziu. As representações são falsas no que apontam e dizem, mas, verdadeiras com respeito ao que suportam” - tradução nossa).

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No entanto, justamente por ser elaborado no âmbito do capitalismo, também expressa contradições. Então, sua própria “natureza” permite o surgimento de práticas novas, pautadas pela perspectiva da realização da vida. Por isso mesmo, o espaço abstrato pode ser desfeito, dando lugar

sua produção tanto é consequência da História, das ações humanas, do trabalho materializado, acumulado por sucessivas gerações, como dos interesses dos agentes hegemônicos. Assim, ela é simultaneamente obra e produto e, num ou noutro sentido, é realização pelo trabalho (CARLOS, 2001, 2007).

Com base em tais ideias, Carlos (2001, 2007, 2011) propõe o entendimento da relação entre a cidade (espaço) e a sociedade a partir da articulação de três diferentes planos da realidade: o econômico, o político, e o social.

O plano econômico decorre de que os agentes que dele participam visam tomar a cidade como meio de realização da produção e de reprodução do capital em suas várias frações. Tratada como meio de acumulação, ela é transformada de modo a viabilizar a realização do ciclo do capital. Simultaneamente, é-lhe imposta a condição de mercadoria. Para atender a esses propósitos, é fragmentada, demarcada, restritiva e, sobretudo, a privatização se torna uma de suas características mais fundamentais.

Evidentemente, só é possível aos agentes econômicos configurarem a cidade ao seu bel prazer pela anuência do Estado. Melhor dizendo, pelo ente que, como disse Harvey (2005a, p. 80), fazendo alusão aos escritos de Marx e Engels, “[...] se origina da contradição entre os interesses particulares e os da comunidade”, embora se apresente como capaz de eliminar tais contradições. Noutros termos, o Estado é representado como independente, neutro, estável e definitivo, como se estivesse acima da sociedade e de seus conflitos, sendo, por isso, capaz de zelar pelo bem coletivo (LEFEBVRE, 2013, 2006). Todavia, “[...] por baixo das aparências ideológicas de que necessariamente se reveste, [o Estado] está sempre vinculado à classe dominante e constitui o seu órgão de dominação” (GORENDER, 2001, p. XXXI).

É simples. Onde há classe social, o Estado não tem ou não poderia ter independência na medida em que é exatamente por conta de seu poder que a classe dominante sobrepõe seus interesse aos da totalidade social. De uma maneira

a um novo espaço, o diferencial. Neste, o avesso do espaço abstrato, as diferenças serão desveladas e a unidade se sobreporá à fragmentação (LEFEBVRE, 2013).

ou de outra, ele atua com vigor para que se concretize a democracia burguesa80. Para Harvey (2005a, p. 87), “A ideologia proporciona um canal importante e o poder estatal é, consequentemente, utilizado para influenciar a educação e controlar, direta ou indiretamente, o fluxo de ideias e informações”. Nesses termos, em acordo com os interesses do capital, é que o plano político participa da configuração da cidade. Ainda conforme esse autor, quando o Estado planeja a cidade e a organiza usando critérios “racionais” ou “científicos”, quando elabora planos e leis que têm como meta o “bem comum”, nada mais faz do que materializar interesses gestados na esfera econômica, sobrepondo-os aos da vida social.

No plano social está a cidade produzida pela prática socioespacial, pelos processos de realização da vida e de reprodução social. Trata-se do âmbito no qual acontecem as relações homem-homem e homem-mundo, onde se inserem os atos cotidianos. Desse modo, o espaço perde a conotação de indiferente ou externo aos indivíduos, já que seus conteúdos, sentidos e significados passam a ser decorrentes do modo como é usado. Ele se torna, nesse processo, parte das trajetórias individuais, uma referência de sua história.

É nesses termos que se fala do espaço apropriado. Para melhor esclarecer o que isso significa, observa-se que há duas possibilidades de os homens agirem sobre o meio material. Uma delas, a dominação, é resultado de operações técnicas e redunda na destruição da natureza, sendo ela substituída por produtos. A outra, a apropriação, se refere à transformação da natureza em um bem humano. Desse modo, se o que está em causa é atender a necessidades da sociedade, esses dois processos poderiam ser combinados. Porém, não é o que se verifica. Na relação do homem com o mundo, a dominação se impõe e prospera tanto mais quanto avançam, em função das necessidades de acumulação, o poder das armas, do Estado e da política. Mais do que isso, se estabelece “[...] un movimiento conflictivo que se desarrolla hasta la victoria abrumadora de uno de los términos en la lucha: la

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Ressalta-se que o Estado não nasce com o capitalismo, porém, como avaliou Harvey (2005a), dificilmente esse sistema existiria sem o poder e as instituições estatais que lhe dão suporte. Isso não significa que ele seja passivo na relação com o capital, tampouco que, frente à luta de classes, não aconteçam concessões, benefícios e garantias aos trabalhadores. Entretanto, esse movimento, mesmo que não seja de interesse imediato dos capitalistas, redunda numa “obediência genérica das classes subordinadas”. E, ao fim e ao cabo, determinadas políticas voltadas aos dominados, como a organização do consumo ou a de produção de moradia aos trabalhadores, repercutem em benefícios ideológicos e econômicos aos segmentos dominantes.

victoria de la dominación, que termina subyugano a la apropriación. Pero no lo suficiente para que ésta desaparezca”81

(LEFEBVRE, 2013, p. 214).

Ela não só resiste como se revela nos usos que se faz do espaço, pois, como diz esse autor, a apropriação é “[...] un aspecto de la práctica social (práxis), pero un aspecto secundário y supérior que se traduce en el lenguage por sentidos”82

(LEFEBVRE, 1978, p. 165). Esse processo se refere a um movimento em que alguém ou algum grupo “[...] transforma en su bién, algo esterior, de modo que puede hablarse de tiempo o espacio urbano apropriados por el grupo que há modelado la ciudad [...]”83

(LEFEBVRE, 1978, p. 186). O espaço é apropriado, portanto, quando acontecem as relações sociais, com todas as disputas e conflitos que lhes perpassam.

Assim, enquanto o espaço que resulta da dominação é, geralmente, estéril e vazio de sentido, a apropriação é consequência da espacialização84 da atividade social, portanto, possui um caráter qualitativo (LEFEBVRE, 2013). Conforme Carlos (2001, 2011), é um processo que se articula à criação e se revela em atos e situações, como o caminhar, o brincar ou o conversar, se vincula, enfim, ao acontecer diário. Mediada pelo corpo85, a apropriação transcorre quando o homem desvenda a cidade, usando-a no desenvolver de sua vida. Por isso, pode ser entendida como “[...] uma prática sócio-espacial, inscrita no tempo, na qual grupos sociais não só modificam a natureza e o lugar, como dados prático-sensíveis, mas também os empregam para suas atividades diversas [...]” (DIAS, 2015, p. 4). Por isso, ela pode repercutir em um espaço material, concreto, mas principalmente em símbolos, sentimentos, imagens, utopias etc.

81“[...] um movimento conflituoso que se desenvolve até a vitória opressora de um dos termos em

luta: a vitória da dominação, que termina subjugando a apropriação. Mas, não o suficiente para que essa desapareça” (tradução nossa).

82 “[...] um aspecto da prática social (práxis), mas um aspecto secundário e superior que se traduz na

linguagem por sentidos” (tradução nossa).

83 “[...] transforma em seu bem, algo exterior, de modo que pode falar-se de tempo ou espaço urbano

apropriados pelo grupo que tem modelado a cidade [...]”(tradução nossa).

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Lefebvre (1976) diferencia localização e espacialização. O primeiro faz referência à separação das diferentes esferas da vida, como morar e trabalhar, relacionado à fragmentação do espaço considerado (ou tratado) como neutro ou indiferente. A espacialização de uma prática social é algo relativo à apropriação do espaço e vincula-se a uma prática articulada ao seu conjunto.

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Conforme Lefebvre (2013), todo corpo, além de ter um espaço, de ocupá-lo, é um espaço. Isso significa que enquanto produz o espaço, o homem também se produz. Assim, considerando seus movimentos, sentidos e gestos, pensar as relações sociais implica pensar o corpo, pois, ele vive ao realizar o mundo com o outro.

Essa perspectiva encaminha para uma das tríades, proposta por Lefebvre (2013), para a análise do processo de produção do espaço: prática espacial, representação do espaço e espaço das representações, termos dialeticamente complementares.

Pode-se compreender como prática espacial aquilo que se insere na ordem da produção e da reprodução social, ao que é próprio de cada contexto social e assegura sua continuidade. É a maneira pela qual uma sociedade realiza seu espaço, e na modernidade, essa é definida pela vida cotidiana86. Situa-se na esfera do percebido, ou seja, se baseia na materialidade e nos símbolos nela implicados (LEFEBVRE, 2013). Para Carlos (2007, p. 11), a prática espacial se refere às “[...] formas e momentos de apropriação do espaço como elemento constitutivo da realização da existência humana”, estando relacionada ao movimento, às ações e relações que os indivíduos desenvolvem enquanto vivem. Isso ocorre em momentos e espaços particulares, que se constituem – junto a diferentes processos sociais – em condicionantes de seu fazer. Serpa (2007) acrescenta que são as práticas espaciais que asseguram a manutenção de uma relativa coesão social, afinal, elas sustentam seus processos de produção e reprodução.

Em relação às representações do espaço, Lefebvre (2013, p. 100) argumenta que “[…] estarían penetradas de un saber (una mezcla de conocimiento y ideologia) siempre relativo y en curso de transformación”87

. Diz respeito ao espaço concebido, aquele elaborado pelas estratégias, técnicas e saber desenvolvidos nos âmbito estatal e científico, cujo conteúdo está presente nos discursos, definições, teorias e descrições do espaço. Ditas representações são consequência da necessidade de criar, além de formas, uma imagem que as permeie e lhe atribuam um valor ou um sentido específico, daí fazer-se uso de signos e códigos que, decorrentes das relações de produção, possuem por propósito favorecer a reprodução socioespacial.

E os espaços de representações, a que se referem? Para Lefebvre (2013, p. 92), eles “[...] expresan (con o sin codificación) simbolismos complejos ligados al lado clandestino y subterráneo de la vida social, pero también al arte (que eventualmente

87 “[...] estariam penetradas de um saber (uma mescla de conhecimento e ideologia) sempre relativo e

podria definirse no como código del espacio, sino código de los espacios)”88

. Segundo o autor, rompendo com as regras da coerência e da coesão colocadas pelas representações do espaço, são mais vividos do que concebidos.

Penetrado pelo imaginário e pelo simbolismo, os espaços de representação têm como fonte a história da cada povo e a do indivíduo – o que envolve os lugares em que se mora, transita, atua. É, pois, o espaço da experiencia (corporal) vivida; “El espacio de representación se vive, se habla; tiene un núcleo o centro efectivo [...] Contiene los lugares da la pasión y de la acción, los de las situaciones vividas y, por consiguiente, implica inmediatamente el tiempo”89

(LEFEBVRE, 2013, p. 100).

A cidade é um espaço onde o homem se situa e se reconhece. Então, a prática socioespacial é, assim como o capital e o Estado, responsável por sua produção: ela cria obras e produz coisas. Mas, como a tomada de um espaço pelo capital repercute na prática socioespacial? Essa é uma questão que se apresenta quando se traçam linhas sobre a produção do espaço em Lauro de Freitas e, sobretudo, como isso interfere na vida dos que residem no Aracui e em Pitangueiras.

3.2. LAURO DE FREITAS, EXPANSÃO DO CAPITALISMO INDUSTRIAL E A