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CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICAS SOBRE A IDENTIDADE: UMA PROPOSIÇÃO

3 IDENTIDADE

3.4 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICAS SOBRE A IDENTIDADE: UMA PROPOSIÇÃO

A despeito de haver algumas discordâncias ou focos diferenciados de análise, foi possível identificar alguns elementos comuns aos diversos autores que tratam do conceito de identidade:

a) De maneira geral, a identidade está associada a conceitos como identificação, autoconceito, auto-estima, relações sociais e processos de socialização. Dito de outro modo, é necessário certo senso de pertencimento e de aceitação social (reconhecimento) para que o indivíduo possa realizar seu projeto identitário (político).

b) A identidade se constrói na relação com o outro. Ou seja, há sempre a perspectiva do indivíduo e a perspectiva do outro em relação àquele indivíduo (e vice-versa). Tal relação implica uma dimensão simbólica, na medida em que se constitui numa relação de troca, envolvendo tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos da realidade.

c) Ao mesmo tempo indica semelhanças e diferenças entre os indivíduos, tomando-se o outro ou os outros (grupos, países, culturas etc) como referências.

d) A identidade é dinâmica e processual. Ou seja, ela não se constitui numa essência nem se apresenta como uma configuração rígida, imutável. Admitem-se, inclusive, múltiplas identidades. Isso implica uma dimensão temporal, histórica, política e ontológica (expressa numa narrativa subjetiva e reflexiva) e admite a metamorfose da configuração identitária ao longo do tempo.

e) A identidade guarda relação com o mundo social (vivido; da prática, da ação, incluindo o mundo do trabalho e das organizações) e o mundo institucional (estrutura), em que este, em alguma medida, leva o indivíduo a agir de determinadas maneiras e/ou coloca limites à sua ação. Ou seja, a identidade se constrói na prática, na ação, havendo, portanto, uma relação dialética entre estrutura e ação, mas nunca um determinismo ambiental.

f) Da mesma forma, a linguagem é elemento central na identidade, seja como elemento integrador, como no caso de jargões ou dialetos próprios de certos grupos, seja como elemento que direciona a ação dos indivíduos, uma vez que estes atribuem valores (avaliações e classificações) aos objetos (pessoas e coisas). Ou seja, a linguagem constitui o quadro simbólico por meio do qual o mundo é ordenado e organizado.

Pelo menos um aspecto é crucial em todas as abordagens: o caráter mutável, transitório e temporário da identidade. Segundo Hall (2004), o indivíduo do Iluminismo “está morto”. O indivíduo sociológico clássico não reflete bem a identidade do indivíduo no mundo social atual. Isto é, não se aceita com facilidade a existência de uma “essência” identitária.

Resta o sujeito pós-moderno (HALL, 2004), com sua identidade fragmentada, múltipla e multifacetada. Fragmentada e múltipla porque cada indivíduo pertence a diversos grupos com os quais se identifica ou pode vir a se identificar, independentemente de se comprometer com todos eles. Ou seja, a identidade não é uma unidade, embora diga respeito ao âmago do indivíduo e também ao núcleo central da sua cultura coletiva (ERIKSON, 1987). Ou seja, diz respeito à interação entre o indivíduo e a sociedade no decorrer do tempo.

A identidade também é multifacetada, na medida em que diz respeito a diversos aspectos e processos que caracterizam a vida do homem na e em sociedade: culturais, biográficos (históricos), sociais, institucionais, físicos, psicológicos, comportamentais, biológicos, políticos, espirituais (ou religiosos), raciais, cognitivos e lingüísticos. Evidentemente, apenas alguns deles serão discutidos neste trabalho. No entanto, trabalhar o conceito sob tantos ângulos ainda é um enorme desafio para as ciências sociais e para a ciência em geral.

Por outro lado, tal complexidade do contexto implica considerar que a configuração identitária de um indivíduo também se dá de forma complexa e não determinística, em função das diversas possibilidades que se lhe apresentam. Esta visão é compatível com um dos principais avanços na física atual, que é o conceito de estruturas dissipativas, proposta pelo físico-químico Ilya Prigogine. As estruturas dissipativas podem ser entendidas da seguinte forma: numa mistura química entre diversas moléculas, a reação pode gerar determinada configuração visível e equilibrada. Em sistemas longe do equilíbrio, a estrutura pode aparecer sob formas variadas. Cada estrutura pode surgir com certa probabilidade; ou seja, não há uma configuração estabelecida a priori. Pode-se afirmar que as moléculas incorporam o tempo, pois o tempo pode dar origem a diversas estruturas. Em outras palavras, em sistemas longe do equilíbrio, o complexo e o instável podem surgir. Portanto, a dinâmica dos sistemas complexos não pode ser explicada a partir de leis universais inquestionáveis. O futuro, tal

como as estruturas dissipativas, não está determinado (PRIGOGINE, 2002); ele é caracterizado pela incerteza (PRIGOGINE, 1996).

O que o autor quer dizer, em outras palavras, é que os sistemas complexos não podem ser explicados com base nas partículas individuais, mas com base nos conjuntos, e que a física deve integrar as estruturas de conjunto, tal como não se pode fazer sociologia com base num único indivíduo. Ou seja, diversas propriedades da matéria não se definem no nível da partícula (PRIGOGINE, 2002).

Em resumo, o estudo dos processos de não-equilíbrio pressupõe um mundo instável e caótico, em que conceitos como auto-organização e estruturas dissipativas explicam a dinâmica dos sistemas abertos considerando a existência do tempo unidirecional, em que este é irreversível, ao contrário da física newtoniana e quântica. Nesse sentido, os sistemas são produtos de sua história. Em outras palavras, os processos se modificam com o passar do tempo. Além disso, os sistemas passam a ser vistos não mais como fechados, mas como dinâmicos instáveis, em que prevalecem a flutuação e a instabilidade. (PROGOGINE, 1996).

As premissas do mundo físico-químico podem ser aplicadas no sentido de se conceber a identidade como uma possibilidade manifesta em determinado período de tempo. Assim, a identidade de um indivíduo pode ser vista como uma manifestação dentre várias possíveis, dada a complexidade do sistema que o envolve (o indivíduo inserido numa determinada sociedade, cidade, país, etnia, sexo, e assim por diante) e as possibilidades e lógicas de ação daquele indivíduo. Segundo Bergson (citado por Prigogine, 2002, p. 44), “a realidade é apenas um caso particular do possível”.

Portanto, propõe-se que a identidade seja definida ou entendida como uma estrutura dissipativa. Ou seja, no decorrer do tempo do indivíduo cognoscitivo e reflexivo diversas possibilidades vão se configurando, sendo que em alguns momentos umas e outras se mostram mais aparentes e significativas, como uma espécie de padrão dinâmico (KELSO,

1995) ou flutuação, cuja característica central é a irreversibilidade de tal configuração. No entanto, sua característica dinâmica lhe confere a possibilidade de se manifestar contínua e diferentemente, numa espécie de processo de auto-organização. Portanto, ao contrário do que sugere a literatura sobre identidade em geral, a dinâmica do processo de construção da identidade não é linear, não é meramente uma seqüência de eventos.

Evidentemente, definir identidade como uma estrutura dissipativa ou como um padrão dinâmico é um artifício metodológico – uma metáfora, utilizando uma abordagem transdisciplinar21 – que permite criar uma analogia entre um sistema físico-químico e um sistema social ou um processo psicossociológico. Como alerta Prigogine, embora haja vínculo de sua teoria (e da física como um todo) com a sociologia e haja a possibilidade de transferência de certos elementos, é preciso um certo cuidado, “porque o mecanismo da decisão, elemento essencial na descrição da sociologia e da economia, é evidentemente muito diferente no caso das moléculas e no caso do homem [...] uma decisão depende da memória do passado e da antecipação do futuro; é, portanto, algo de muito mais complexo” (PRIGOGINE, 2002, p.39).

Em outras palavras, o indivíduo também pode decidir, em alguma medida, sobre sua identidade, sobre quem ele é e sobre quem ele quer ser; ou seja, a identidade é também um projeto. Portanto, conceber metaforicamente a identidade como uma estrutura dissipativa permite avançar na sua compreensão, ao retirar o possível caráter de linearidade de sua construção. A identidade direciona a ação e é fruto e processo da história do indivíduo, de seus processos cognitivos, de influências culturais, da flecha do tempo e de decisões individuais, mas também fruto de probabilidades e incertezas ambientais, de processos biológicos e psíquicos inconscientes, na medida em que o indivíduo vive numa sociedade

multifacetada – tal como visto anteriormente –, numa sociedade em que ele mesmo é multifacetado.

Retomando-se a questão central desta tese – a identidade gerencial dos altos gestores das universidades –, é importante destacar que o professor, ao assumir um cargo ou função de gestão, passa a construir sua identidade gerencial na e pela ação gerencial. Assim, a identidade gerencial se constrói na prática da gestão dentro de um contexto específico de ação, isto é, a universidade.

Esse contexto diz respeito às chamadas “relações de trabalho”, que são aquelas que ocorrem entre empregadores e empregados em uma organização e são mediadas pelas relações de poder na e para a realização do trabalho (MELO, 1991). As relações de trabalho se expressam por meio de diversos processos e mecanismos relacionados principalmente à organização do trabalho, às condições de trabalho, à gestão de recursos humanos e às formas de regulação de conflitos, os quais, em seu conjunto, são condicionados por fatores macrossociais, tais como o mercado de trabalho, a organização político-sindical e a regulação do Estado. Além disso, de certo modo, são reflexo e reproduzem características da sociedade e da cultura mais ampla em que estão inseridas (MELO, 1991). É nesse sentido que Sainsaulieu (1997) e Dubar (1997) afirmam que se dá a construção da identidade pelo trabalho (embora o segundo diminua o peso que o primeiro atribui ao posto de trabalho sobre a mesma).

De outro modo, pode-se afirmar que, se a ação do indivíduo no trabalho é mediada pelas relações de poder e se a identidade é construída na e pela ação (inclusive no trabalho), portanto a identidade é construída (também) no contexto das relações de trabalho e de poder. Assim, a identidade é um processo político construído na ação, configurando um projeto sempre em andamento e a reconstruir. Como lembra Wautier (2001), para Bajoit (1992) toda relação é fonte de identidade e de alteridade, o que torna o indivíduo ao mesmo tempo ele

próprio e diferente dos demais. Assim, “ser sujeito é procurar realizar seu projeto identitário nas relações com os outros” (BAJOIT apud WAUTIER, 2001, p. 47)22, sejam essas relações de trabalho ou não.

Não se pretende com tal assertiva pressupor que a identidade gerencial seja exclusivamente construída ao se assumir a função. Ao contrário, a identidade é ao mesmo tempo resultado e processo de uma história, de uma biografia e de um conjunto de sistemas de ação e relações. O que se pretende destacar neste trabalho é uma das manifestações ou configurações possíveis da identidade por meio de uma de suas expressões empíricas: o “personagem” (CIAMPA, 1991) reitor, o alto gestor universitário.

Entretanto, antes de se discutir a construção da identidade dos altos gestores propriamente ditos, é fundamental que se delineie o cenário, ou pano de fundo ou, melhor dizendo, o campo social ou contexto de ação daqueles “personagens”: a universidade pública federal brasileira.