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Embora sejam bastante comuns estudos e publicações sobre a gestão universitária em geral, o mesmo não ocorre com relação ao gestor universitário, em particular. No entanto, num dos trabalhos emblemáticos sobre a instituição universitária contemporânea, Clark Kerr (1982)8 entende o reitor como um personagem de muitas faces, no sentido de que deve olhar para diversas direções, evitando “dar as costas” a qualquer grupo importante. A despeito de Kerr (1982) considerar o reitor latino-americano como menos voltado para o exterior de sua instituição – o que talvez fosse verdadeiro à época –, atualmente este papel vem se modificando radical e rapidamente.

Para Kerr (1982), o reitor deve possuir um conjunto extenso de características:

Espera-se do reitor da universidade, nos Estados Unidos, que seja um amigo dos estudantes, um colega dos docentes, um excelente confrade nas associações de ex- alunos, um administrador idôneo para com os curadores, um bom orador para o

7 Para uma discussão aprofundada sobre a ação gerencial pública no Brasil, ver Junquilho (2000).

público, um regateador astuto com as fundações e agências federais, um político com os deputados estaduais, um amigo da indústria, do trabalho e da agricultura, um diplomata persuasivo com os doadores, um paladino da educação em geral, um protetor das profissões (particularmente direito e medicina), um porta-voz para a imprensa, um erudito na expressão da palavra, um funcionário público em níveis estadual e nacional, um amante da ópera e igualmente de futebol, um ser humano decente, um bom marido e pai, um membro ativo de sua igreja. Acima de tudo, deve deleitar-se em viajar de avião, fazer refeições em público e comparecer a cerimônias públicas. (KERR, 1982, p. 37)

O próprio autor adverte: “Ninguém é capaz de ser todas essas coisas. Alguns conseguem não ser nenhuma delas” (KERR, 1982, p. 37). Segue o autor:

Ele deve ser firme e, no entanto, delicado; sensível para os outros e insensível para consigo mesmo, voltar-se para o passado e para o futuro e, no entanto, manter-se firmemente plantado no presente; ser ao mesmo tempo visionário e racional, cordial e no entanto ponderado; saber o valor de um dólar e entender que não se compram idéias; ser inspirado em suas visões e, no entanto, cauteloso no que faz; um homem de perspectivas amplas mas capaz de perceber minúcias conscienciosamente; um bom americano mas pronto para criticar sem medo o status quo; um pesquisador da verdade onde ela não ofenda muito; uma fonte de pronunciamentos sobre diretrizes públicas quando estas não se reflitam em sua própria instituição. Deve ter ares de um rato, em casa, e parecer-se com um leão fora de casa. Ele é um dos marginais numa sociedade democrática – dos quais há muitos outros – colocado à margem de muitos grupos, muitas idéias, muitos empreendimentos, muitas características. Um marginal que, no entanto, está situado bem no centro do processo global. (KERR, 1982, p. 37-38)

A transcrição dessa longa citação tem como propósito não mais do que mostrar o quanto a identidade – ainda que grande seja a parcela da identidade atribuída por outros – de um reitor é idealizada. Não se trata, portanto, de um perfil formal, mas de um conjunto de expectativas nutridas por uma comunidade em relação ao indivíduo que assume uma função de tanto prestígio social.

Como o próprio autor admite, nenhum indivíduo é capaz de possuir todas as características e alguns outros sequer possuem alguma delas. No entanto, isso não elimina as expectativas (embora as frustre na prática), as quais, entretanto, sempre se manifestam à época das eleições para o cargo de reitor nas universidades brasileiras, por exemplo. Além de se evidenciarem discussões acerca dos projetos e dos planos de governo, a comunidade

também discute e evidencia as características pessoais de cada candidato, e não apenas o seu currículo profissional.

No entanto, o próprio Kerr (1982) adverte que uma das questões centrais é saber se o reitor será um líder ou um burocrata. Para o autor, o reitor é “líder, educador, criador, iniciador, manipulador de poder, perquiridor; e é também burocrata, zelador, herdeiro, conciliador, persuasor, ‘bitolador’. Mas acima de tudo é um mediador” (KERR, 1982, p. 41).

Para Warren Bennis, não existe um tipo ou uma personalidade de reitor, ou uma qualidade, característica e estilo únicos, ou, mesmo, um bom currículo que garanta a capacidade de um reitor. Para o autor, existem vários enfoques bem sucedidos no gerenciamento de universidades. No entanto, Bennis (1999) identifica os possíveis estilos encontrados, pelo menos nas universidades americanas, tal como descritos no Quadro 3.

É importante ressaltar que a tipologia de Bennis (1999) é baseada em sua experiência e na realidade norte-americana. Apesar disso, de certo modo, ela representa possibilidades que eventualmente podem ser encontradas na realidade brasileira. No entanto, para os fins desta tese tal tipologia é meramente ilustrativa.

É igualmente conveniente destacar que Bennis (1999) recomenda que uma universidade deve estabelecer sua metáfora específica ou imagem coletiva do que é a universidade ou o que ela poderia ser e, a partir daí, decidir pelo tipo de reitor de que necessita. Em outras palavras, pode-se dizer que o autor está sugerindo que a instituição universitária estabeleça sua identidade organizacional de modo a encontrar um gestor que se identifique com ela, que ele mesmo tenha uma identidade, por assim dizer, compatível com a da instituição.

Quadro 3 - Estilos de reitor, segundo Warren Bennis Estilos

encontrados Características principais

Gerente/ Solucionador de

problemas

Aquele que identifica problemas reais e recruta as melhores mentes para trabalhar neles. Facilmente confundido com o perfil tecnocrata

Tecnocrata (perfil desfavorável)

Em vez de colocar as pessoas certas, tenta descobrir sistemas que irão transcender o erro humano. Suas preocupações são pragmáticas, resolvendo problemas morais e ideológicos com insensibilidade, arregimentando inimigos facilmente.

Líder / Mediador Baseado no modelo de relações de trabalho, atua num ambiente em que não há como tomar decisões sem agradar a uns e desagradar a outros. Gerente colegiado Gerente acadêmico que cujo comprometimento principal é para com uma disciplina acadêmica, que assume a reitoria como um colega do corpo docente

e não como um gerente profissional.

Líder comunitário ou pós-moderno

Normalmente dirige uma faculdade, não uma universidade. Costuma-se identificar muito com os alunos; não só os apóia como também se junta a eles, inclusive em manifestações e em greves; é um ativista e normalmente um jovem.

Líder carismático Aquele que exerce uma grande atração sobre seus seguidores. Estilos

encontrados não recomendados

Características principais Reitor da lei e da

ordem Basicamente um gerente autoritário que se que autodenomina chefe e quer imprimir ordem e regras para o funcionamento.

Pluralista ausente Sua principal função é levantar fundos para construir prédios e atender outras necessidades, além de nomear subordinados competentes. Gasta seu tempo com cerimônias e deixa as coisas acontecerem.

Burocrata / empresário

Leva o corpo docente ao desespero, pois imprime um ritmo empresarial à universidade, fazendo-o funcionar mais como uma ferrovia do que como uma universidade.

Renascentista ou multitarefa

Super-homem ilusório que vez por outra assume um dos estilos anteriores. Aquele que é tudo para todos, representando vários papéis. Nunca se sabe o que se esperar dele.

Fonte: Adaptado de Bennis (1999).

No Brasil, Finger (1986) entende que uma universidade não pode ser gerenciada como uma empresa. Diante disso, espera-se que o reitor desempenhe os papéis de educador, líder educacional, representante da universidade perante o público em geral, coordenador-geral das atividades e líder administrativo. Como líder administrativo, espera-se que ele cumpra as seguintes funções, dentre outras:

- “fazer cumprir as decisões tomadas pelos órgãos colegiados superiores da universidade;

- incentivar a pesquisa e tentar conseguir meios para sua realização; - manter um staff operante e bem articulado;

- promover uma constante reflexão sobre os problemas acadêmicos e os meios de realização da universidade;

- criar um sistema de comunicação eficiente;

- estabelecer um processo onde todos os escalões da universidade tenham condições de contribuir e participar;

- estabelecer e incentivar as atividades culturais da universidade;

- criar facilidades para o aperfeiçoamento do corpo docente da universidade; - estabelecer os objetivos específicos da universidade;

- estabelecer um quadro geral de referência onde ele tome somente as decisões mais importantes” (FINGER, 1986, p. 15-16).

Tal como Finger (1986), Cunha (1999) também entende que a universidade não pode e nem deve ser gerenciada como uma empresa ou, tampouco, por exemplo, pelos métodos da “qualidade total” empresarial, o que não implica não considerar a qualidade como um valor central, desde que se esclareça o que qualidade significa na instituição (TRIGUEIRO, 1999).

Ao que parece, o “perfil” atribuído ao reitor sugere que ele deva ser o representante da ideologia e dos valores da instituição universitária. O exame das características apontadas sugere que o reitor seja uma espécie de guardião e gestor da filosofia e identidade institucionais. No entanto, filosofia e identidade são, por sua vez, reflexo de disputas entre as diversas concepções sobre o que é e o que deve ser a universidade. Nesse sentido, ser o guardião da universidade poderia implicar a representação de um determinado grupo de interesses, que luta pela predominância desses, numa espécie de coalizão dominante. Entretanto, gerir a universidade não implica atender apenas a um determinado grupo de interesse. Ao contrário, uma universidade é povoada por diversos centros de poder (KERR, 1982) que de algum modo precisam ser conciliados. Nesse sentido, Trigueiro (1999, p. 110) defende a elaboração de um projeto institucional, que significa “o conjunto dos interesses, necessidades, demandas, objetivos, diretrizes e ações planejadas pela universidade, capaz de dar sentido, coesão, fundamentação ao próprio desenvolvimento da organização, auxiliando na competição externa e incrementando a integração interna”. Esse é o sentido que Kerr (1982, p. 117) atribui ao papel de mediador do reitor:

[...] liderança ativa e de soluções próprias de estadistas; o de manter o campus unido contra ataques externos; o de manter a paz em oposição à ruptura; o de usar idéias e princípios para reforçar elos; o de confiar na persuasão ao invés de na força; o de procurar aquiescência ao invés de administrar por decreto; o de ser o guardião do bom senso no debate, da decência nas relações humanas e da sensatez na ação; o de harmonizar os elementos discordantes numa entidade produtiva.

Tal descrição não implica desconsiderar a existência dos conflitos. Ao contrário, pressupõe tanto sua latência quanto sua manifestação, cabendo ao reitor, em última instância, saber lidar com eles, seja no sentido de resolvê-los, seja no sentido de estimulá-los, criativa e produtivamente. Portanto, o cargo de reitor contém um forte componente político, e a habilidade nesse campo é um dos requisitos e uma das características mais evidentes de sua identidade gerencial.

Essa situação ambígua a que o reitor (e, de resto, todos os membros da universidade) está submetido se deve, em parte, à própria natureza da instituição9. Em princípio, ela é o locus de geração e transmissão de conhecimento; logo portadora de um espaço de liberdade, de criação intelectual livre e de inovação. Por outro lado, a universidade é também uma burocracia, e como tal, também portadora de suas mazelas e emperramentos. Assim, segundo Elisa Reis, as universidades “vivem uma contradição muito grande, uma tensão permanente entre um ser local de rotina, burocracia, e um ser local de inovação, criação de conhecimento. Como qualquer outra instituição no mundo, a universidade rotinizou-se e burocratizou-se” (NUSSENZVEIG, 2004, p. 150). Continuando seu argumento, Elisa Reis afirma que a universidade “tornou-se um conjunto de práticas racionalizadas e, como tal, enfrenta os mesmos problemas que toda organização moderna: como conciliar rotina e inovação?” (NUSSENZVEIG, 2004, p. 150-151).

Neste contexto está o reitor, que deve ser capaz de conciliar dois aspectos a princípio contraditórios (rotina X inovação). Observa-se que na estrutura universitária a maior parte das decisões se dá de forma colegiada, o que, de certo modo, dilui a responsabilidade individual,

ou seja, a do reitor e de seus pares gestores. É nesse sentido que toda gestão universitária combina princípios colegiados com burocráticos, o que introduz duplicidade de critérios, o que, às vezes, cria uma grande área de irresponsabilidade. Nos dizeres de Elisa Reis, “tendemos a criar uma terra de ninguém, em termos de responsabilidades, porque usamos critérios colegiados para avaliar performances burocráticas, e usamos critérios burocráticos para avaliar performances colegiadas. Autonomia e responsabilidade muitas vezes se chocam” (NUSSENZVEIG, 2004, p. 151).

Flávio Fava de Moraes, ex-reitor da USP, concorda com Elisa Reis ao apontar a situação de ambigüidade que o reitor enfrenta, quando afirma que a qualidade de tal autoridade é “mais visível quando a burocracia é menor, assim como seus defeitos e sua mediocridade são mais patentes quanto maior a burocracia. Quando a burocracia é grande, o reitor defende-se naquele emaranhado; quando ela é pequena, ele prejudica-se no mesmo emaranhado (NUSSENZVEIG, 2004, p.153).

Portanto, como se pode perceber, o reitor (e, por conseguinte, os demais gestores universitários) está inserido numa instituição que ele representa e gerencia, a qual está em crise ou em xeque, sendo-lhe exigido, como um tipo especial de gestor público, uma forma de atuação (e uma identidade) diferenciada e calcada em princípios, a piori, alheios aos seus e de sua instituição.

Assumir uma função gerencial na administração superior de uma instituição universitária é conseqüência de diversos fatores, tais como a história de vida, das experiências, da qualificação, do apoio dos pares e do domínio de algumas habilidades, que certamente variam no tempo, no espaço e de acordo com a situação específica. No entanto, sua atuação e sua identidade estão fortemente relacionadas à própria identidade da instituição.

Para os fins desta tese, pressupõe-se que no exercício do trabalho de reitor duas situações estão presentes:

a) o indivíduo não assume um cargo de gestor sem um mínimo de desejo ou vontade de fazê-lo; e

b) necessariamente, ao assumir um cargo de gestor, o indivíduo necessita construir uma identidade gerencial.

No caso dos gestores universitários, eles são (em sua maioria)10, antes de tudo, professores. A princípio, a identidade de professor não é desconstruída ou eliminada, pois, ao término do mandato gerencial, pelo menos em tese, os ex-gestores normalmente retornam às suas atividades docentes. Assim, a questão da identidade gerencial emerge como conceito central a ser discutido, pois a investigação de sua construção permite compreender como os indivíduos estruturam sua ação.

10 É importante salientar que alguns cargos de gestão podem ser e às vezes são ocupados por servidores técnicos-