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A Consolidação das Leis do Trabalho

3 HORIZONTES DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS NO BRASIL

3.2 A legislação trabalhista constitucional e infraconstitucional brasileira

3.2.4 A Consolidação das Leis do Trabalho

Construída sob a vigência da Constituição Federal de 1937, a Consolidação das Leis do Trabalho, assim como as demais normas trabalhistas editadas àquela época, refletiu a ideologia dominante à época de sua promulgação.

Trazendo em seu artigo 8º, inalterado desde a Consolidação, a primazia do interesse público sobre os das classes e os indivíduos, e com conceito inclinado para “doutrinas anticontratualistas, tratando as relações coletivas em termos de contenção à sua espontaneidade” 92, a CLT, à época de sua criação, praticamente esgotou a totalidade dos direitos assegurados às classes trabalhadoras, permitindo aos sujeitos do contrato de trabalho pouco mais do que a estipulação do salário (desde em obediência ao salário mínimo, definido pelo Estado). No plano do direito individual do trabalho, Luiz Werneck Vianna afirma que “... o que fora concebido para ser um mero sistema elementar dos direitos do trabalho transformou-se no seu único direito” 93.

Complementa esta questão Arion Sayão Romita94 ao afirmar:

Na CLT, o conteúdo das relações individuais de trabalho acha-se praticamente estabelecido por antecipação, mercê de disposições imperativas de lei, pouco ou nada restando à manifestação da vontade dos particulares: além do montante salarial, não há o que debater, regatear, negociar, em nível contratual, por parte dos sujeitos do contrato de trabalho; mesmo quanto ao salário, se o estipulador for o mínimo, nem isso...

92 GOMES, Orlando. Questões de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1974. p. 71-72.

93 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 85.

94 ROMITA, Arion Sayão. A Matriz Ideológica da CLT. Disponível em: <http://www.andt.org.br/f/A_MATRIZ_IDEOLOGICA_DA_CLT[1].pdf>. Acesso em: 08 nov. 2016.

O motivo para tal encontra-se explanado na Exposição de Motivos da Comissão Elaboradora do Projeto da CLT. Aos membros da Comissão, a opção pela natureza anticontratualista e a adoção do caráter normativo ocorreu de forma absolutamente natural, uma vez que a liberdade contratual pressupõe a igualdade dos contratantes, enquanto a normatividade reconhece como um fato real a situação de hipossuficiência do trabalhador e utiliza os meios legais para garantir à sua proteção e equipará-lo ao empregador. A intenção declarada era formar uma “organização contra os perigo da liberdade contratual jurídico- formal no campo das relações de trabalho” 95.

Sobressai dessa análise, portanto, que a principal característica do direito individual do trabalho brasileiro é a regulamentação heterônoma da relação de emprego. Evaristo de Morais Filho96 assim se expressa a este respeito:

Esta marca de origem haveria de se manter para sempre na história do Direito do Trabalho brasileiro, tornando-o excessivamente rígido, seco e hermético. A sua fonte, praticamente única, passou a ser a lei, a lei federal, sem a colaboração dos Estados e dos Municípios, e o que é mais, com a sufocação das livres e espontâneas manifestações das categorias sociais, suas destinatárias. Imposta de forma para dentro, roça somente a epiderme das forças organizadas, ou que deveriam sê-lo, na sociedade brasileira: os sindicatos e as empresas, que se têm mantido passivos, à espera do que lhes derem como outorga oficial.

Esse caráter normativo consubstanciado na ampla vedação à negociação individual entre empregado e empregador afastou essas figuras ao ponto de os mesmos considerarem-se estranhos e isolados um do outro, com diálogo mínimo. Dada a pequena liberdade que trabalhadores e empregadores possuem de ajustar os termos do pacto laboral, não há o estímulo (ou até mesmo o porquê) destes manterem diálogos abertos a respeito do contrato de trabalho e dos demais assuntos a ele correlatos, o que os afasta. Atualmente, no Brasil, vive-se um momento em que empregado e empregador são, via de regra, inteiramente estranhos um ao outro, e, por vezes, vistos como inimigos, enquanto na realidade a relação de trabalho é, antes de qualquer coisa, uma relação de interdependência.

A opção pelo caráter predominantemente normativo da CLT era perfeitamente compreensível à época em que ocorreu a consolidação, e não apenas pela influência

95 Id.

96 MORAES FILHO, Evaristo. Temas atuais de Trabalho e Previdência. São Paulo: LTr, 1976. p. 68.

corporativista que guiou a elaboração do referido diploma legal. Nas décadas de 1930 e 1940 o eixo econômico brasileiro deslocava-se da agricultura exportadora para as atividades industriais e o trabalhador nacional passava à, finalmente, ser o protagonista do mercado de trabalho nacional, uma vez que, no primeiro surto industrial, a mão-de-obra utilizada fora principalmente imigrante 97.

Essa mão-de-obra nacional, contudo, advinha principalmente de imigração interna. A concentração da industrialização na região sudeste do país aumentou as diferenças econômicas entre as regiões brasileiras, o que, em conjunto com o processo de urbanização, oferecia aos habitantes das regiões mais pobres (notadamente a região Nordeste) uma ampla gama de empregos que estimulava a migração interna 98.

Ocorria, portanto, que a maior parte da mão-de-obra utilizada nas indústrias àquela época era formada por trabalhadores vindos de regiões pobres do país, geralmente com poucos anos de educação formal, em busca de condições de vida mais favoráveis num local com maiores oportunidades de crescimento profissional. Neste cenário de transformação social e econômica, em que um país essencialmente agrícola passa por um surto de industrialização concentrado em determinadas regiões, a hipossuficiência do empregado em face do empregador era a regra, o que justificava uma legislação normativa e abrangente.

Esse contexto, todavia, sofreu diversas transformações com o passar dos anos, sem que tenha promovido qualquer esforço no sentido de verificar a necessidade de adequação da Norma Consolidada. Ademais, nas oportunidades em que se discutia a necessidade de realização de uma “reconsolidação” das normas trabalhistas, havia pouco (ou nenhum) interesse por parte do Estado em alterar o as normas vigentes, mas tão somente em realizar uma nova compilação albergando as leis espaças editadas após a consolidação. Orlando Gomes99 aponta este fato, acrescentando que:

O anteprojeto de reconsolidação das leis trabalhistas surge historicamente no epicentro dos abalos que acusam, nos países industrializados, a crise do Direito do Trabalho.

Nasce anacrônico. Não há, entretanto, que apedrejar seus autores. A razão é óbvia. Simplesmente não lhes era consentido inovar substancialmente. O declarado

97 MENDES, Raquel. Economia e Sociedade 1030-1964. Disponível em: <https://fichasmarra.wordpress.com/2011/09/25/economia-e-sociedade-1930-1964/>. Acesso em: 15 nov. 2016. 98 Id.

99 GOMES, Orlando. Ensaios de Direito Civil e de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p. 194.

propósito do Governo, ao confiar-lhes sua elaboração, foi encomendar obra que se limitasse a ser mera ordenação sistemática da legislação avulsa, emergente, ao longo dos últimos trinta e seis anos, à margem da CLT. O intento confessado foi, modestamente, dirimir dúvidas nascidas da aplicação desses textos e dos artigos da lei consolidada. Não se pretendeu, em síntese, reformar o vigente ordenamento, admitindo-se apenas alterações suscitadas pelo dever de sistematizar ou pelas sugestões da experiência.

Foi a opção política pela conservação do direito vigente através da absorção, em texto único, das leis, que modificaram ou complementaram a CLT (...).

Por outro lado, enquanto parcela dos juristas100 defende que as feições corporativistas da legislação trabalhista restringem-se ao âmbito do direito coletivo, a redação de dispositivos celetistas atinentes ao direito individual do trabalho desvelam a influência da doutrina corporativista.

Arnaldo Süssekind, Dorval de Lacerda e José de Segadas Vianna101, por exemplo, indicavam a presença dessa influência no artigo 2º da CLT, o qual trazia a conceituação de empregador, como sendo “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço” 102. Na visão dos autores, empresa e empregador constituem dois institutos distintos, de acordo com o seguinte raciocínio:

Outrora, o empregador era a empresa, essas duas pessoas se confundiam. No contrato de trabalho, de um lado, como parte, figurava esse híbrido e do outro, como outra parte, o empregado. Hoje não. O empregador de outrora é o empreendedor, o chefe da empresa, verdadeiro representante dessa última, mas que com ela não se confunde. A empresa é um organismo, isto é, um agrupamento organizado, hierarquicamente, de homens ligados entre si por diversos vínculos, tais como os contratos de sociedade, de salário, etc., com colaboração para a realização de um fim determinado; grupo que possui, quase empre, uma duração independente dos homens que o constituem, uma personalidade diferente dos indivíduos que o compõem.

Não obstante, necessário esclarecer que apesar de a CLT ser, como o próprio nome já indica, uma consolidação, de forma que boa parte do corpo de leis nela consolidadas eram preexistentes à sua criação, a Comissão Elaboradora da CLT se viu obrigada a complementá-la em aspectos de careciam de legislação específica, como o contrato de

100 BALBINOT, Camile. CLT - Fundamentos ideológicos-políticos: fascista ou liberal-

democrática? Disponível em: <www.trt4.jus.br/ItemPortlet/download/10565/Camile_Balbinot.pdf>. Acesso em: 24 out. 2016.

101 SÜSSEKIND, Arnaldo; LACERDA, Doval de; e VIANNA, José de Segadas. Direito Brasileiro do

Trabalho, 2º vol. Rio de Janeiro: A noite, Liv. Jacinto, 1943, p. 21.

102 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-lei N.º 5.452, de 1º de Maio de 1943. Rio de Janeiro, RJ, Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto- Lei/Del5452.htm>. Acesso em: 16 nov. 2016.

trabalho. À época da Consolidação, por exemplo, a única lei brasileira vigente acerca do contrato individual de trabalho era a Lei n.º 62, de 1935, que dispunha apenas sobre rescisão do contrato de trabalho, indenização por dispensa sem justa causa e estabilidade no emprego 103.

A Comissão Elaboradora da CLT, portanto, teve o encargo de preencher aquela lacuna e incluiu na Consolidação um título introdutório e regulou o contrato de trabalho naquilo em que não havia lei aplicável à matéria. Neste tocante, Evaristo de Moraes Filho 104 explica como Oliveira Vianna guiou a Comissão Elaboradora no preenchimento das lacunas para realização da Consolidação:

(...) Nem por isso deixava o Consultor de oferecer solução jurídica a qualquer questão que lhe fosse submetida. Servia-se do direito comparado, dos usos e costumes, dos princípios gerais do direito. Não era por falta de norma expressa de direito positivo que o seu parecer poderia deixar de ser conclusivo (...). Invocava cláusulas de convenção internacional do trabalho, jurisprudência comparada, dispositivos de direito estrangeiro como seus fundamentos de decidir.

Neste diapasão, o fato de a CLT ser uma Consolidação de normas anteriores à sua construção não anula a influência dos ideais predominantes à época sobre a sua formação, tanto em virtude da existência de trechos que foram criados pela Comissão Elaboradora, como porque também a sua simples construção fora orientada por uma ideologia específica que buscava atingir um fim por meio daquelas normas.

Atualmente, contudo, vive-se mais um dentre diversos momentos de conflito entre os ideais norteadores da Consolidação das Leis do Trabalho e os atualmente vigentes na sociedade. À época do surgimento do projeto de “reconsolidação”, Orlando Gomes 105 dissertou a respeito deste conflito de ideais, sendo as suas ponderações aplicáveis ao atual contexto social do Brasil. Argumentava o jurista que:

Sendo a CLT de 1943 a base da reconsolidação, o seu colorido ideológico e o seu tempo histórico foram reavivados pelas mudanças ocorridas no país e pela evolução do Direito do Trabalho.

O confronto mais superficial entre os dois momentos, o aparecimento da CLT e o da apresentação do anteprojeto para a sua reformulação, revela a enorme distância

103 ROMITA, Arion Sayão. A Matriz Ideológica da CLT. Disponível em: <http://www.andt.org.br/f/A_MATRIZ_IDEOLOGICA_DA_CLT[1].pdf>. Acesso em: 08 nov. 2016.

104 MORAES FILHO, Evaristo de. Oliveira Vianna e o Direito do Trabalho no Brasil. In: Quinze ensaios. São Paulo: LTr, 2004. p. 318, 319, 338.

105 GOMES, Orlando. Ensaios de Direito Civil e de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986. p. 194.

cultural que os separa. Muitos dos valores que presidiram a regulação jurídica do trabalho perderam a virtualidade e se degradaram na decorada das forças espirituais subjacentes. Toda vez que isso ocorre e novos valores se agitam para substituir os antigos ainda resistentes ou simplesmente apoiados na rotina, trava-se luta ideológica entre os que declinam e os emergem, desdobrando-se a crise ao longo da transição mais ou menos demorada, mais ou menos turbulenta, mais ou menos radical.

Nos dias de hoje, ante ao desfavorável cenário econômico que se instala no país, surge, novamente, o debate acerca da necessidade de readequação das normas consolidadas à realidade presente. Elaboradas e compiladas sobre a égide de um regime autoritário, em um momento econômico e social bastante diferente do atual, as normas celetistas, em parte, não mais atendem aos anseios dos empregados e empregadores. Seja por não albergarem todas as modalidades de trabalho atuais (o que demanda a busca pelos empregados ao Poder Judiciário para preenchimento das lacunas), seja por conterem normas vigentes mas não mais aplicáveis da forma como imaginada pelo legislador, a mudança da lei consolidada volta ao debate.

E assim como em outros momentos históricos semelhantes, a mudança volta ao debate tendo como principal meio para a sua concretização a flexibilização dos direitos trabalhistas.

4 LIMITES E POSSIBILIDADES DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA NO