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CAPÍTULO 1 ORALIDADE: HISTÓRIA, CONSTITUIÇÃO E ENSINO

2.3. Constituição do sujeito no círculo bakhtiniano

Entendendo o momento de realização da fala não mais como resultado exclusivo da consciência individual de um falante e da situação imediata que envolve o dito,o papel do sujeito que enuncia também se modifica, visto que ele passa a ser compreendido no interior das relações sociais de que participa. Assim, ele constitui- se como um ser social, histórico e ideológico, que se constrói na interação e na relação com o universo da cultura.

Aquilo que é normalmente chamado de “individualidade criativa” expressa a linha fundamental, firme e constante daorientação social de um homem.

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O centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão, não está no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo.

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Ao contrário do que diz a doutrina do objetivismo abstrato, o enunciado singular (“parole”)de modo algum éum fato individual (...).

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A estrutura do enunciado, bem como da própria vivência expressa, é uma estrutura social.

(VOLÓCHINOV, 1929/2017. p. 215-217. Ênfase nossa)

32 A grande temporalidade, como compreende os estudos bakhtinianos, está diretamente ligada à “complexa unidade da cultura humana”, situada, portanto, na história, ou melhor, no diálogo entre história e cultura. A discussão proposta por Bakhtin ao falar no “grande tempo” reforça a importância de não se observar apenas o momento imediato (e sua relação com o passado e futuro próximos) em que um enunciado apresenta seu acabamento, mas, pelo contrário, é fundamental considerar que “cada imagem precisa ser entendida e avaliada no nível do grande tempo”, pois é na relação entre a atualidade (pequeno tempo) e o grande diálogo infinito e inacabável da história (grande tempo) que ocorre a “renovação interminável dos sentidos em todos os contextos”. (BAKHTIN, 1979/2011c, p. 406, 407, 409, respectivamente)

A ênfase dada à constituição social do sujeito evidencia que este, no diálogo constante com a sociedade que o cerca, assimila as diversas vozes que nela circulam. Assim, seu interior não é formado por apenas uma voz, mas inúmeras vozes sociais que, no embate e no encontro, vão se reelaborando, evidenciando que o próprio indivíduo é dialógico.

Essas vozes são interiorizadas ora como voz de autoridade – verdade incontestável, sobre a qual não se pode argumentar – ora como uma palavra internamente persuasiva – esta sim mais flexível e aberta à mudança. É na relação dialógica dessas duas formas de vozes que está pautada a consciência ideológica do sujeito. Uma consciência evidentemente heterogênea, visto que este está mergulhado em uma sociedade em cujos valores não são unos.

Dada a dinâmica dialógica que envolve nosso mundo interior, os enunciados produzidos por esse sujeito vão aparecer como resposta a essas vozes sociais interiorizadas. Por esse motivo é que Volóchinov (1929/2017) assume a tese de que todo enunciado é de certa forma um discurso citado, seja pelo fato de termos a consciência da bivocalidade, conseguindo delimitar o discurso do outro – o que em geral é feito, no texto escrito, com o uso de aspas –, seja pela não percepção dessa alteridade, dada a já incorporação dessas vozes à sua consciência interior – o que resultaria no texto escrito, por exemplo, na não utilização de aspas.

A compreensão de um indivíduo cuja consciência interior está repleta de vozes sociais e cujos enunciados são entendidos como discurso citado poderia fazer crer na existência de um sujeito passivo, que simplesmente “recebe” do meio em que vive todo o conteúdo ideológico do grupo social. O Círculo distancia-se desse pensamento e mostra que o sujeito assume uma postura ativa, tanto no papel de ouvinte:

(...) o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda, ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (...).

quanto no de falante:

O próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc.

(BAKHTIN, 1952-53/2016, p. 25-26)

Neste processo, os papeis de falante e ouvinte estão intrinsicamente ligados visto que “todo falante é por si mesmo um respondente” e no processo de compreensão “o ouvinte se torna falante”. (BAKHTIN, 1952-53/2016, p. 26 e 25, respectivamente)

O sujeito evidencia, com isso, sua não passividade, o seu não assujeitamento, uma vez que, ao apropriar-se do discurso alheio, ele o analisa, reelabora, rejeita, enfim, faz escolhas e, com isso, também contribui, a partir de sua interação no mundo, com o processo social da linguagem.

Realiza-se, portanto, um caminho de mão dupla: tanto a atividade social é relevante para a formação da consciência individual do sujeito, quanto este, contribui para reelaborar o discurso social.

No interior da teoria bakhtiniana, o sujeito será ao mesmo tempo social e singular, pois que responde de maneira específica e única às diversas vozes que circulam na vida, constituindo-se ideologicamente em relação a elas.

Faraco (2009, p. 86-87) sintetiza essa questão mostrando que “o sujeito é social de ponta a ponta”, pois tanto a origem quanto a lógica da consciência são exteriores a ela, mas também “singular de ponta a ponta”, visto que cada consciência é um reflexo de condições específicas e singulares, assim como cada Ser é um evento único.

A responsividade que caracteriza esse sujeito, sempre em constante diálogo no interior de uma dada situação concreta, portanto sempre respondendo a algo, é apenas um dos aspectos a serem considerados quando compreendemos a constituição de sujeito na teoria bakhtiniana. Outraimportante questão a ser observada é a responsabilidade desse ser que enuncia, ou seja, o seu comprometimento frente ao dito.

Para unir esses dois termos, Sobral propõem o uso da palavra “responsibilidade”, um neologismo formado a partir dos conceitos do que é “responsível” (que admite resposta) e “responsável” (que assume responsabilidade). Assim, é possível observar que “um responder responsável (...) envolve necessariamente um compromisso ético do agente.”(SOBRAL, 2005, p. 20)

Nessa perspectiva, o sujeito é um ser ético, responsável pelo seu dizer e situado em uma dada realidade concreta, com a qual está em constante diálogo, respondendo ao todo e, ainda, integrando de forma participativa essa realidade.

Essa concepção de sujeito vem ao encontro do que entendemos como central no trabalho com a oralidade ao final do ensino médio. Mais que apenas ensinar as formas da língua – ou do gênero discursivo – de que os alunos poderão fazer uso para se expressar em uma dada situação. É fundamental também formar cidadãos que, assumindo uma consciência crítica,sejam capazes de apropriarem-se de diversas vozes para, então, interferiremde forma responsável na realidade da qual fazem parte.