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CAPÍTULO 1 ORALIDADE: HISTÓRIA, CONSTITUIÇÃO E ENSINO

1.3. Oralidade sob a perspectiva interacional face a face

1.3.2. Constituição do texto oral

O que de fato caracterizaria a língua falada? Em busca de uma resposta, alguns artigos da coletânea percorrem esse estudo, evidenciando as relações entre fala e escrita.

Rodrigues (2003) aponta para o fato de que a mera transcrição do discurso oral para o plano do escrito não seria suficiente para considerá-lo como “língua escrita”. De fato, esse tipo de compreensão fatalmente nos guiaria para uma concepção de língua escrita como mera reprodução da fala, ideia a muito superada.

A autora alerta que no processo de transcrição da fala dados como expressão facial, gestos, olhares e movimentos do corpo se perdem, privando o pesquisador de uma compreensão mais global da situação comunicativa. Para suprir essa defasagem, são relevantes algumas pistas verbais sinalizadas no processo de transcrição, como “risos”, ou indicação de “vozes” que se entrecruzam com o discurso analisado.

Urbano, ao tratar da questão do planejamento do texto oral, aponta que existe uma diversidade possível, a saber: (1) planejamento prévio e local, (2) planejamento temático ou de conteúdo, (3) planejamento verbal, (4) planejamento rítmico, (5) planejamento de formas e modos de utilização do discurso, (6) planejamento estilístico, (7) planejamento pragmático, dentre outros. Mas, para afastar qualquer ideia dicotômica, acrescenta que “esses níveis, considerados de modo geral sob a perspectiva do texto falado, podem, com exceção talvez dos níveis prosódico e psicológico, aplicar-se perfeitamente ao planejamento do texto escrito.” (URBANO, 2006, p. 134)

Reforçando a relação entre o oral e o escrito, sob o enfoque de um continuum, Leite apresenta como uma crônica produzida pelo mesmo jornalista, mas divulgada em meios diferentes – rádio e jornal impresso – e, portanto, ligados a modos de produção oral e escrito, podem estar relacionados:

O texto escrito, pensado, preparado e articulado, foi oralizado na rádio, mas os dois [o publicado na rádio e o do jornal impresso] são tão intimamente ligados que é quase impossível separá-los, e, assim, dizer o que é próprio da oralidade e o que é da escrita. O que é da oralidade na escrita está estilizado. O que é escrito no oral nasceu estilizado. Ambos, por isso, são pertencentes ao gênero secundário14. Esse é um caso típico em que a oralidade deve-se não

somente à utilização da fala para sua veiculação como também a alguns recursos que intencionalmente o enunciador usou. Nesse caso, o enunciado é falado-escrito assim como o escrito é um escrito-falado.

(LEITE, 2006, p. 90-91)

14 Ao usar esse termo, a autora retoma um conceito bakhtiniano, segundo o qual os gêneros poderiam ser divididos em primários e secundários. No primeiro caso, estariam ligados a “circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea” – oral, na maioria das vezes – e seriam, por isso, mais simples. No segundo caso, apareceriam em “circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita”. (BAKHTIN, 2011, p. 281). Essa concepção, no entanto, tem sofrido críticas por induzir a um pensamento que retoma a polarização entre os discursos orais e escritos, dicotomizados em relação a uma possível simplicidade ou complexidade. Trataremos no próximo capítulo sobre essa questão.

A análise por ela empreendida evidencia como o planejamento foi necessário tanto na produção do discurso escrito como na sua reelaboração para a modalidade oral, não havendo, pois, uma divisão desse aspecto em cada um dos modos de representação da língua: fônico ou gráfico.

Sua tese confirma que, embora o conteúdo básico da mensagem tenha sido mantido, o meio mudou a mensagem. Baseia-se, para isso, na análise da expressividade, a qual foi construída tanto na relação com o que foi enunciado, quanto na relação do interlocutor com os enunciados dos outros (BAKHTIN, 2011). Nas palavras da autora:

A expressividade do enunciado oral é direcionadora, cria outro texto, porque dirige a imaginação do ouvinte. A expressividade do texto escrito deixa ao leitor a construção, em sua mente, das cadências, dos tons e da intensidade com que o texto vai sendo lido, e o sentido, construído.Assim, por exemplo, todo o diálogo que o enunciador travou consigo mesmo, e que foi lido de uma maneira e obrigou o ouvinte a pensar naqueles enunciados daquele modo, e não de outro, podem ter sido lidos de modos diferentes por milhares de leitores.

(LEITE, 2006, p. 103)

Essa ideia defendida por Leite (2006) já evidencia que não é possível um total distanciamento do escritor no momento de produção do texto escrito. Entendemos, então, que tal distanciamento pode ocorrer em função do gênero escolhido ou da finalidade da comunicação, mas que isso acontece tanto na língua falada quanto na escrita. Não é, pois, uma especificidade exclusiva de uma ou outra modalidade.

Outra característica importante sobre o discurso oral – e que não deixa de ter sua correspondente no texto escrito – é a possibilidade da (re)formulação linguística para adequar ou qualificar o discurso. Hilgert (2006), observando a construção linguística de diálogos constituídos na interação face a face, faz apontamentos que evidenciam a metadiscursividade – o dizer sobre o dizer – em que os próprios falantes assumem uma postura de observadores do seu dito, acrescentando comentários ou observações em seus textos.

Para ele, essa marca no enunciado só confirma o caráter heterogêneo da linguagem, sua característica dialógica. Assim, retomandoBakhtin (2011), o autor afirma:

Para além das relações dialogais face a face, o dialogismo se revela no caráter responsivo dos discursos. Todo discurso, ao mesmo tempo em que responde a outros discursos, desencadeia novas formas de manifestação discursiva. Confluem, assim, por procedimentos mostrados ou não, diferentes vozes na constituição dos discursos, o que implica dizer que eles não são monológicos.

(HILGERT, 2006, p. 165).

Esse caráter da linguagem – o dizer sobre o dito – revela um posicionamento de quem enuncia, pois ao modalizar seu discurso ele manipula sua linguagem, negociando sentidos para instaurar um novo ponto de vista na constituição do enunciado produzido.

Outras duas características citadas pelo autor (HILGERT, 2006) apontam para o aspecto da metadiscursividade que podem ocorrer tanto no contexto oral quanto no escrito. São elas: a não-coincidência do discurso consigo mesmo e a não- coincidência das palavras consigo mesmas. Enquanto as primeiras referem-se à menção, no texto, ao discurso de outrem (“como se diz”, “tem um ditado aí”, “como chamam...”), as segundas tratam da tentativa de explicar, de outra forma, uma palavra ou expressão de sentido mais aberto (como ocorre, por exemplo, ao citar “minha terra” e, em seguida, colocar “eu falo do Rio Grande do Sul do Brasil”). Em ambos os casos, o que fica evidente é o foco em uma autoria compartilhada, em que se evidencia ainda mais o discurso dito e o discurso citado, caracterizando-se ainda mais o aspecto heterogêneo da língua.

Apontamentos como os tratados neste tópico evidenciam que as discussões acerca da relação entre fala e escrita foram bastante significativas no interior dos grupos de estudos a que estavam ligados os pesquisadores do projeto Nurc, não só por ressaltar a importância de uma correlação entre as duas modalidades da língua, como também por discutir aspectos pontuais do discurso oral, especialmente os evidenciados em situação de conversação espontânea.

As gravações registradas no interior dessa pesquisa serviram igualmente de base para a elaboração de gramáticas voltadas à discussão do texto falado. Tais

estudos transcorreram também – como as obras do projeto Nurc – na década de 90 e adentraram os anos 2000.Trataremos desses estudos no tópico a seguir.