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3.3 – A CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS: UMA CONTRIBUIÇÃO DE CANOTILHO E A PONDERAÇÃO DOS

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PERTINENTES. A NECESSIDADE

DE UM NOVO ENQUADRAMENTO LEGAL VISANDO À PROTEÇÃO

DE “DIREITOS INTELECTUAIS COLETIVOS”

Em artigo intitulado “A análise estrutural da posição jurídico-prestacional”, Canotilho pretendeu revisitar o acerto teórico e dogmático de suas anteriores incursões pelo tema da “socialidade estatal” e pela “constituição dos direitos econômicos, sociais e culturais”.

No referido artigo, constata que o resultado, em termos práticos, não se mostrou animador.

Constata, desde logo, a necessidade de transformação nos planos doutrinário, metodológico e jurisprudencial, quanto à concretização dos princípios da socialidade nos Estados de direito democráticos.128

Revendo suas posições anteriores sobre o problema, em um trabalho intitulado “Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais”,129 procurou fazer um estudo analítico-estrutural sobre a “posição jurídico-prestacional”.

Seu objetivo era recortar uma posição jurídico-prestacional com a mesma densidade jurídico- subjectiva dos direitos de defesa, contudo e embora tenha sido reconhecido que o Estado, os poderes públicos e o legislador estão vinculados a proteger e a garantir prestações existenciais, a doutrina e a jurisprudência abraçaram uma posição cada vez mais conservadora, confirmando-se tal fato pelas seguintes assertivas:

 As prestações existenciais partem do mínimo para uma existência minimamente condigna;  São consideradas mais como dimensões de direitos, liberdades e garantias (direito à vida,

direito ao desenvolvimento da personalidade, direito ou princípio da dignidade da pessoa humana) do que como elementos constitutivos de direitos sociais;

 A posição jurídico-prestacional assenta primariamente em deveres objetivos, prima facie do Estado, e não em direitos subjetivos prestacionais derivados diretamente da constituição;130  A metódica jurisprudencial tende a transformar-se numa metodologia funcional de obtenção

de vencimento decisório.

Adentremos aos conceitos formulados por Canotilho: os direitos sociais e “camaleões normativos”, no trabalho supramencionado. Ele retorna ao tema quase dez anos depois em um trabalho intitulado “Metodologia

128 O autor em comento sugere que se veja uma incisiva discussão do problema no trabalho coletivo coordenado por M. Bovero, Quale Libertà. Dizionario mínimo contro i falsi liberali. Roma/Bari, Laterza, 2004.

129 Publicado inicialmente no número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia, 1988, e republicado no nosso livro Estudos

sobre Direitos Fundamentais. Coimbra, 2003, p. 35 e ss.

130 Tal como se poderá ver na retórica argumentativa do Tribunal Constitucional Português, no caso referente ao rendimento social de inserção (Ac. 590/02), a jurisprudência reconduz o direito ao rendimento social de inserção à ideia de “conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna” e acaba por colocar entre parênteses os próprios direitos econômicos, sociais e culturais. Veja-se a crítica deste Acórdão em Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra, 2004, p. 67.

‘fuzzy’ e ‘camaleões normativos’ na problemática atual dos direitos econômicos, sociais e culturais”.131 Nesse estudo, procurou problematizar a dependência legal dos direitos constitucionais sociais tendo em conta a “reserva de cofres financeiros”.

De certo modo, sua perspectiva dirigia-se no sentido de salvar a dimensão normativa da socialidade através de dois esquemas:

 Procurar novas vias para a “des-introversão” da socialidade estatal;

 Distinguir entre direitos constitucionais sociais e políticas públicas de realização de direitos sociais.

A linha ideológica de fundo poderia ser assim resumida: o caráter dirigente da Constituição Social não significa a otimização direta e já dos direitos sociais, antes postula a graduabilidade de realização desses direitos (graduabilidade não significa, porém, reversibilidade social).

O problema dessa posição reside no fato de que ela foi rapidamente ultrapassada pela chamada “crise do Estado Social” e pelo triunfo esmagador do “globalismo neoliberal”.

Significa que em causa está não apenas a graduabilidade, mas também a reversibilidade das posições sociais, haja vista que o direito é política, o direito é economia.132

Canotilho chama a atenção para o fato de ter começado a ganhar centralidade metódica aquilo a que chamou “paradoxia da autosuficiência” das normas jurídico-constitucionais, sobretudo o “superdiscurso” social em torno dos direitos fundamentais, tratando-se, como parece óbvio, de uma proposta de leitura crítica da “constituição dirigente social”.

As críticas dirigidas pelos cultores da sociologia crítica e pelos adeptos da constituição (quadro rebelde a programas constitucionalizados), levaram-no a considerar que as “políticas constitucionalizadas” fecharam a comunicação com o direito responsável expresso na criação jurídica por meio de pactos e daquilo que chamou de “concertação social” com o direito reflexivo gerado na “rua”, no “asfalto”, no “emprego paralelo”, na “economia subterrânea”.

Encontrava-se, então, a socialidade constitucional dirigente colocada sob a pressão de dois “antinormativismos”, a saber: o das sociologias críticas e o dos teóricos liberais.

O compromisso constitucional possível para manter a força normativa da constituição social passava então, no entendimento do referido autor, por uma leitura mais pós-positivista da socialidade estatal.

Recentemente, Canotilho revisita o local incerto da sociabilidade, retomando ao tema dos direitos sociais e a socialidade estatal,133 procurando fazer o contraponto da situação quanto à constituição portuguesa de direitos sociais, ressaltando que a carta constitucional de direitos sociais mais não é do que um conjunto de preceitos sem determinabilidade aplicativa, impositivos de políticas públicas, caracterizadas pela mistura de

131 Esse trabalho foi preparado para um colóquio em Madrid, promovido pela Universidade Carlos III, sobre Derechos Economicos, Sociales e Culturales, em 22/26 de abril de 1996. Está também publicado em Estudo

sobre Direitos Fundamentais, p. 93 e ss.

132 Cf., precisamente, o trabalho “O tom e o dom na teoria jurídico-constitucional dos direitos fundamentais”, em

Estudos, p. 115 e ss. O texto inicial foi lido no Colóquio Internacional de Direito Constitucional realizado em Recife (22/24 de agosto de 1996).

133 Cf. o trabalho de 2006: “30 anos de Constituição da República: a sedimentação dos direitos fundamentais e o local incerto da socialidade”, texto inédito, embora com leitura em Coimbra (Curso de Direitos Humanos) e em São Paulo (Curso de Direito Social).

“keynesismo econômico” e de “humanitarismo socializante” e contestando o arquétipo antropológico (diz ele que a dimensão estruturante da socialidade andava ligada

e ainda se mantém

a uma concepção antropológica complexa, cujo centro é o indivíduo como pessoa, como cidadão e como trabalhador),134 sendo que, com suas críticas, não pretende colocar o discurso no plano do ideologismo, que pensa hoje obsessivo nos quadrantes liberais que procuram um “revisionismo” sem fronteiras de forma a purificar as “constituições” por meio da expulsão dos direitos econômicos, sociais e culturais (a ele interessa mais a desconstrução do arquétipo antropológico).

Começa, então, o doutrinador, pela hipertrofia da dignidade da pessoa humana, salientando que, aparentemente, o recurso à dignidade da pessoa humana como princípio “ontofenomenológico fundante” da dignidade social da pessoa humana nada teria de problemático.

O desenvolvimento da personalidade ancorado na dignidade da pessoa ainda é, segundo ele, o fundamento mais inquestionável das prestações sociais a cargo do Estado.

Contudo, o “teste dóxico” de jurisprudência constitucional portuguesa aponta para o “esvaziamento solidarístico” dessa estratégia discursiva do Tribunal Português, e o leading case é o Acórdão nº 509/02 sobre o rendimento de inserção social que veio alterar o anterior regime do rendimento mínimo garantido.

Alude que o cerne argumentativo do Tribunal acabou por ser o da conformidade ou não do regime legislativo definidor do subsídio de inserção social com o princípio jurídico-constitucional fundante da dignidade da pessoa humana (realçando Canotilho que tal princípio postularia sempre um agasalho prestacional assegurador de uma existência minimamente condigna).

A dignidade da pessoa só seria afetada, se o regime jurídico-legislativo não garantisse os “mínimos” da dignidade, mas alerta que o problema reside na estratégia discursiva do Tribunal, que, sob a aparente solidez da dignidade da pessoa humana, acaba por proceder à redução “eidética” da socialidade, colocando entre parênteses os direitos econômicos, sociais e culturais.

Indo adiante, alude que, em toda a sua radicalidade, a orientação do Tribunal conduziria ao seguinte resultado desolador:

[...] não há direitos sociais autonomamente recortados, mas refracções sociais da dignidade da pessoa humana aferida pelos standards mínimos da existência. A segunda deslocação da socialidade remete-nos para a problemática da dessubjectivação regulatória. De uma forma ou de outra, os figurinos do “service publique” à francesa e do “Daseinsvorsorge” à alemã justificavam a existência de serviços garantidores de cidadania social e económica quanto aos bens públicos essenciais. Subjacente à missão do Estado Social estava a ideia dos “bens sociais” (saúde, ensino, segurança, trabalho) como bens públicos que só excepcionalmente podiam ser prosseguidos por privados. A convergência das políticas liberalizadoras (globais e europeias) e privatizadoras juntamente com a atribuição a entidades independentes da competência regulatória conduz a uma rotação de trezentos e sessenta graus na qualificação desses bens. Agora são bens privados que só excepcionalmente devem ser prosseguidos por serviços

134 Essa “trindade antropológica”, segundo Canotilho, por mais ontologicamente radicada que seja, vê-se confrontada com quatro deslocações contextualizadoras: (i) acentuação da dignidade da pessoa como princípio fundante da sociedade, mas simultaneamente dessubstantizador da autonomia jurídico-constitucional dos direitos sociais; (ii) dessubjetivização regulatória conducente à substituição da cidadania social pela cidadania do consumidor; (iii) dessolidarização liberal empresarial relativamente aos encargos sociais; (iiii) crítica da eficácia e eficiência dos serviços públicos sociais pelas correntes econômico-reguladoras da boa “governação”.

públicos. A socialidade estatal é um lugar incerto. Por um lado, a ideia de serviços públicos de interesse económico geral é uma fórmula de manutenção do acesso a bens essenciais (energia, água, telecomunicações) não já na qualidade de cidadão social, mas sim na qualidade de utente ou de consumidor.

Canotilho nos desperta para o fato de que é possível que, em termos de eficácia e eficiência, o “novo modelo” seja mais transparente e racional, contudo, nos alerta para o fato de não se mostrar líquido e certo, que lá onde falha o mercado, o Estado Social possa ser substituído por um conglomerado de serviços privados aqui e ali sensíveis às responsabilidades sociais.

Isso nos conduz ao outro teste da socialidade: quem estiver atento às tendências políticas e econômicas neoliberais facilmente compreenderá que o mercado de serviços tende a preencher o espaço social em domínios tão sensíveis como hospitais, estabelecimentos de ensino, sistemas de segurança social, bem como que a atual pressão no sentido de transformar os serviços públicos em indústrias de serviços não tem necessariamente de ser remetida para o campo dos malefícios econômicos do neoliberalismo.

Ele nos traz dois exemplos, um relacionado com o direito à saúde e outro referente ao direito ao ensino.

Como primeiro exemplo, o autor cita a Lei Constitucional Portuguesa de nº 1/97 (4ª Revisão) acrescentou ao art. 64º (direito à saúde) um novo inciso no qual se estabelece:

“Art. 64º, nº 3.

Para assegurar o direito à saúde incumbe prioritariamente ao Estado:

d) – Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e qualidade”.

Tal inciso (sublinhado por nós) consagra a expressa valorização constitucional dos padrões de eficiência e qualidade que, além de estar em consonância com as disposições da União Européia, nas quais se estabelece como objetivo a garantia de um nível elevado de proteção da saúde humana, sugere o novo contexto do princípio da “economicidade” na prestação de serviços públicos.

Além disso, também aponta para diversos esquemas organizativos do serviço público de saúde como gestão empresarial e regime convencional e para sistemas específicos de monitorização e controle dos respectivos serviços.

De outra parte, o elevado nível de proteção pressupõe a excelência e “governação clínica” (clinical governance) como veículo de qualidade clínica e como instrumento de excelência assistencial.

Canotilho deixa claro que a otimização dos direitos sociais não deriva só ou primordialmente da proclamação exaustiva do texto constitucional, mas da boa governança dos recursos públicos e privados afetados ao sistema de saúde.

O segundo exemplo trazido por Canotilho relaciona-se com o direito ao ensino, asseverando o autor que o paradigma constitucional português do ensino assenta na centralidade de uma rede de estabelecimentos públicos de ensino; contudo, a idéia de rede passou a ser interpretada por alguns setores como rede de estabelecimentos de ensino, abrangente do ensino particular e cooperativo, em que é reconhecida a todos os estabelecimentos de ensino uma dimensão pública.

O ensino é, em todos os setores – público, privado e cooperativo –, um serviço público, sendo óbvio que essa interpretação só será uma interpretação em conformidade com a Constituição se ela não implicar a neutralização do imperativo constitucional de criação da rede de estabelecimentos públicos estatais de ensino público, haja vista ser essa a matriz republicana de ensino constitucionalmente consagrado.

Lembra o autor que vale a pena aprofundar as deslocações normativas de sentido, insinuadas pelo conceito de rede ampliada de serviço público de ensino, porque, ao se incorporar na rede o ensino particular e cooperativo se procura, direta ou indiretamente, fomentar esquemas de concorrência entre os vários estabelecimentos de ensino aos quais não está alheia a idéia de marketing comercial.

Essa concorrência seria, de resto, um fator decisivo para aumentar a eficiência e a rentabilidade do ensino público, pois permitiria que os utentes diretos do serviço – as famílias – se convertessem em árbitros do mercado de ensino através do exercício do direito à escolha de escola.

Mais do que isso, a concepção jacobina de ensino, traduzida na unicidade e uniformidade da oferta escolar, seria substituída por um sistema plural marcado pela flexibilidade do sistema educativo. Mais apto para a concretização do livre desenvolvimento dos jovens (combatendo-se, inclusive, de forma mais eficaz, os fenômenos de abandono e de insatisfação escolar).

Por último, analisou Canotilho que o esquema em concorrência serviria de esteio à própria relegitimação do sistema de ensino por meio dos mecanismos de avaliação e controle externos, indispensáveis à promoção de qualidade e eficácia de toda a rede de estabelecimentos de ensino, sendo muito bom de se ver que o núcleo central das novas propostas reconduz à transformação de todo o sistema de ensino a uma empresa educacional, centrada em problemas da utilização racional dos recursos e da gestão da qualidade.

O objetivo intrínseco da liberdade de aprender e de ensinar por meio da escola pública dá lugar a uma outra compreensão finalística, nas palavras do autor:

O direito à escola é o direito à aprendizagem das leges artis de uma profissão inserida no mercado de trabalho. Em termos mais analíticos, dir-se-ia que o direito à escola é (1) o direito à obtenção de meios para estudar; (2) direito à aprendizagem das leis da profissão; (3) direito a resultados formativos em concorrência com as exigências da procura e da oferta do mercado de trabalho para jovens. O actual confronto de modelos – a “Universidade pública republicana” e a “universidade privada livre” – demonstra, com exuberância, que também neste domínio a socialidade estatal já não é o que era, embora continuemos fiéis à bondade da escola pública republicana, livre, igual e laica.

Canotilho redigiu um estudo com o seguinte título: “A ‘governance’ do terceiro capitalismo e a constituição social”, em cujo campo da análise retoma alguns passos dos itinerários anteriores, mas procura também questionar o modelo de ação social universal insinuado pela “governance” do terceiro capitalismo.

Em substituição do Estado Social constitucionalmente conformado, propõe-se – umas vezes de forma sub-reptícia, outras vezes em termos abertamente frontais – que o terceiro capitalismo, com a sua sociedade aberta, conduziria, necessariamente, a um corolário lógico, senão vejamos.

A empresa privada, ao atuar no mundo global, seria o único sujeito capaz de responder a um modelo de ação social universal,135 apontando Canotilho as seguintes proposições para justificar tal tese:

O Estado Social é o tipo de Estado que coloca entre os seus princípios fundantes e estruturantes o princípio da socialidade; o princípio da socialidade postula o reconhecimento e a garantia dos direitos sociais; a garantia dos direitos sociais pressupõe uma articulação do direito (de todo o direito, a começar pelo direito constitucional) com a economia intervencionista progressivamente neutralizada pela expressão do mercado global.

É certo que o Estado social – ou melhor, o “modelo social” tal como ele, de forma diversa, ganhou substância na Europa Ocidental – ergueu os direitos sociais à dimensão estruturante da juridicidade e da democracia.

Comentando melhor, cada uma das proposições acima elencadas, Canotilho argumenta que, por um lado, passadas que foram as disputas sobre a incompatibilidade entre Estado de direito e Estado social (ou, se preferirmos, entre o princípio da juridicidade e o princípio da socialidade), ganhou relativa estabilidade a compreensão constitucional do Estado como Estado de direito social.

Já, por outro lado, diz que o reconhecimento e a garantia dos direitos sociais passaram à dimensão estruturante do próprio princípio democrático e, com efeito, a idéia de liberdade igual estrutura o princípio democrático, haja vista que: arranca do postulado inquestionável (desde as primeiras declarações de direito) de que os homens nascem livres e iguais em direitos; a liberdade e igualdade começam pela garantia dos direitos de liberdade e, dentre estes, dos direitos fundamentais da pessoa humana (direito à vida, direito à integridade física e pessoal, direito ao desenvolvimento da personalidade, direito à família); a liberdade igual passa pela progressiva radicação de uma igualdade real ou substancial entre as pessoas.

A articulação da socialidade com “democraticidade” torna-se, assim, clara, concluindo o festejado autor que só há verdadeira democracia quando todos têm iguais possibilidades de participar no governo da polis.136

Devemos ressaltar algumas de suas palavras, no artigo sobre o qual nos debruçamos:

Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ignorância, analfabetismo e exclusão. A democracia só é um processo ou procedimento justo de participação política se existir uma justiça distributiva no plano dos bens sociais. A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõem, assim, uma base jusfundamental incontornável, que começa nos direitos fundamentais da pessoa e acaba nos direitos sociais.

Ao comentar sobre os pressupostos econômico-financeiros do Estado social, Canotilho realça o quão caros são os direitos sociais, bem como que algumas prestações indispensáveis à efetivação desses direitos devem ser asseguradas pelos poderes públicos de forma gratuita ou “tendencialmente” gratuita.

Ao comentar sobre tais pressupostos econômico-financeiros, alude que o Estado social só pode desempenhar positivamente suas tarefas de socialidade, em se verificando quatro condições básicas:

 Existência de provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos (o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coação tributária);

 Existência de uma verdadeira estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva);

136 A indissociabilidade de democracia e direitos sociais tem sido posta em relevo por vários autores. Citaremos apenas Baldassare, A. Diritti della persona e valori costituzionali. Turim, Giappiehelli, 1997.

 Existência de um orçamento público equilibrado, de forma a assegurar o controle do déficit das despesas públicas e a evitar que um déficit elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda;

 Taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado (3%, pelo menos, ao ano).

Mas a verificação de todas as condições coloca o Estado social em reais dificuldades, porque, em primeiro lugar, o modelo social subjacente às premissas indicadas é, dizem alguns, um modelo dos países ricos.

Em segundo lugar, mesmo nos países ricos ela pode ser posta em causa por vários motivos (desde o crescimento incontrolável das despesas com alguns serviços, como o serviço de saúde, passando pelo desequilíbrio das obras públicas regionais e locais e terminando na existência de déficits estruturais – como, por exemplo, políticas de coesão econômica e territorial).

É por isso que, desde os anos 70, se insiste na crise fiscal do Estado e, a partir da década de 90, o tema que se torna obsessivo é o da sustentabilidade do modelo social, e as críticas ao Estado social e as constituições programático-sociais inserem-se nesse contexto, insistindo uma significativa parte dos políticos e economistas influentes na reorientação das políticas das finanças e da despesa pública.

Segundo Canotilho, no banco dos réus está a célebre política do déficit spending: endividamento do Estado com a finalidade de financiar a despesa pública, sobretudo a despesa social.

O Estado social como instrumento da inclusão social:

Para o constitucionalista, a crise do Estado social tornou-se, para muitos, um problema do ocaso da socialidade e nas sociedades funcionalmente diferenciadas não há lugar para políticas de inclusão.

A chamada individualização da sociedade significa o indeclinável direito e dever de cada indivíduo