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3.2 – A TENSÃO CENTRAL: O PRIVILÉGIO DE EXPLORAÇÃO MONOPOLÍSTICA COMO EXCEÇÃO RADICAL AO REGIME DA

LIVRE INICIATIVA: UMA CONTRIBUIÇÃO DE DENIS BORGES

BARBOSA

Denis Borges Barbosa121 comenta que nem todo sistema constitucional contempla, em seu texto básico, o direito de Propriedade Intelectual, bem como que nenhuma outra Carta Política chega a pormenorizar tanto tal direito quanto a brasileira.

Afirma ele que na Constituição americana precedem (em tempo e dignidade) mesmo os dispositivos que protegem os direitos fundamentais, introduzidos pelas Emendas, aludindo que norma de supremacia federal, a regra de que os autores de criações intelectuais e tecnológicas têm direito à proteção de suas realizações, tem sido discutida com profundidade há mais de dois séculos (justificando-se isso em razão da importância econômica, tanto interna quanto diplomática da Propriedade Intelectual).

Alude Borges que os direitos de Propriedade Intelectual são inevitáveis, haja vista que, das muitas formas possíveis de estímulo ao investimento criativo, a história real das economias de mercado se inclinou por um modelo especial, qual seja, aquele que confere ao criador ou investidor um direito de uso exclusivo sobre a solução tecnológica ou sobre a obra do espírito produzida.

Borges nos ensina que sempre foram possíveis duas formas de o mercado estimular ou apropriar a criação:

Aquela a que acabamos de nos reportar acima, que seria a da apropriação privada dos resultados por meio da construção jurídica de uma exclusividade artificial como a da patente ou do direito autoral, etc.

Ou aquela da socialização dos riscos e custos incorridos para criar. Explica o referido autor o porquê da exclusividade e artificialidade.

Em razão da natureza evanescente desses bens imateriais, que, quando colocados no mercado, naturalmente se tornam acessíveis ao público, num episódio de imediata e total dispersão (isto é, a informação ínsita na criação deixa de ser escassa, perdendo a sua economicidade).

Tais criações técnicas, abstratas ou estéticas, possuem características específicas.

Aquilo que certos economistas chamam de não-rivalidade: o uso ou consumo do bem por uma pessoa não impede o seu uso ou consumo por outras, em toda extensão, e sem prejuízo da fruição da primeira;

E também aquilo a que esses mesmos autores se referem como não-exclusividade: salvo intervenção estatal ou outras medidas artificiais, ninguém pode ser impedido de usar o bem, sendo difícil coletar proveito econômico comercializando publicamente no mercado esse tipo de atividade criativa.

Em razão dessas duas características supracitadas, o livre jogo do mercado se mostraria insuficiente para garantir a criação e manutenção do fluxo de investimento em uma tecnologia que requeresse alto custo de desenvolvimento e que se sujeitasse a ser facilmente copiado.

121 F. Propriedade Intelectual: criações industriais, segredos de negócio e concorrência desleal. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 3-92.

Por isso, pensa-se que alguma ação tem que ser intentada, visando corrigir essa deficiência “genética” da criação intelectual, haja vista que existe interesse social na continuidade desse investimento, mesmo numa economia de mercado (para o qual tal tecnologia é naturalmente inadequada), impondo-se, dessa forma, alguma intervenção do Estado, pela ação de algum instrumento de direito.

A forma que o Estado tem de corrigir o desestímulo no investimento de longo prazo na inovação ocorre por meio de uma garantia legal:

Por meio de um uso exclusivo122 ou, então;

 Por um direito não-exclusivo, mas também de repercussão econômica (por exemplo, o direito de fruir dos resultados do investimento cobrando um preço de quem usasse a informação, mas sem ter o direito de proibir o uso);

 Ou ainda por uma garantia de indenização do Estado para quem investisse na nova criação tecnológica.

Essa terceira opção seria a opção em uma economia diversa da de mercado, ou seja, a socialização123 dos custos da criação (o Estado indenizaria o investimento privado na criação divulgada).

Entre nós, José Afonso da Silva, ao tratar do texto relativo à propriedade industrial afirma que “O dispositivo que a define e assegura está entre os direitos individuais, sem razão plausível para isso, pois evidentemente não tem natureza de direito fundamental do homem. Caberia entre as normas da ordem econômica”.124

Também o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho compartilha da mesma opinião, nas 17 edições de seus Comentários à Constituição (São Paulo: Saraiva, 1990, v. 1, p. 51): “Certamente esta matéria não mereceria ser alçada ao nível de direito fundamental do homem”.

Borges salienta que não há direito natural aos bens intelectuais (que necessitam de proteção quanto às cópias – concorrência desleal), referindo-se à proteção legal como necessária para restringir as forças livres da concorrência e criar restrições legais a tais forças, já que o que permanecer fora do escopo da proteção fica no domínio comum da humanidade.

Citando texto de Thomas Jefferson (muito citado na Suprema Corte Americana), Borges alude que não há um direito humano ao royalty, frisando que o direito e a proteção aos bens imateriais é dado de acordo com a vontade e conveniência da sociedade, sem pretensão e demanda de quem quer que seja, ou seja, é um movimento de política, e política econômica mais do que tudo, e não um reconhecimento de um estatuto

122 Deve restar claro que, ainda que protegida por exclusividade, subsiste um direito natural à fruição do domínio público, indicado tanto pela filosofia clássica (Aristóteles, Poética, parte IV), como pela jurisprudência (Morton-Norwich Prods., Inc. 671 F. 2d 1332, 1336 – C.C.P.A.. 1982 – Propriedade Intelectual: criações

industriais, segredos de negócio e concorrência desleal. São Paulo, Saraiva, 2007, p. 9). Outrossim, ainda quando erguido à categoria de Direito Constitucional, os direitos exclusivos, em seu aspecto patrimonial, não são normalmente tidos como parte do Bill of Rights, ou seja, dos direitos fundamentais, restando como tal apenas o aspecto moral dos mesmos direitos, quando reconhecido.

123 Nos fins do século XVIII, essa era uma opção prevista na legislação da alguns países, bem como na Constituição do Brasil, até 1967. Nesse caso, em alguma parte o risco do investimento ou mesmo o equivalente da receita esperada de seus frutos seria assumido pelo Tesouro (vale lembrar que essa é também uma das formas complementares de estímulo ao investimento criativo, em situações em que o mercado, por si só, mesmo com auxílio de direitos exclusivos, não é suficiente para fazê-lo).

fundamental do homem (a essência do homem é que as idéias e criações fluam e voem em suas asas douradas como Verdi propunha, lembra Borges).

Concluímos da contribuição de Denis Borges, que a instituição da Propriedade Intelectual é uma medida de fundo essencialmente econômico (e isso se demonstra mesmo pelo fato de que nem toda propriedade privada está sob a tutela dos direitos a garantias fundamentais125 – aliás, o reconhecimento constitucional da propriedade como direito humano liga-se, pois, essencialmente, à sua função de proteção pessoal, portanto, nem toda propriedade privada há de ser considerada fundamental e como tal protegida!).

Mais que isso, concluímos, pelo estudo por nós elaborado na presente dissertação, que os dispositivos sobre Propriedade Intelectual, ainda que de natureza patrimonial, não obstante se acharem vinculados ao art. 5º da Constituição Cidadã, encontram-se integralmente submetidos às limitações das propriedades em geral, especialmente aquela do uso social, além das limitações típicas dos bens imateriais.

Nesse ponto importante lembrarmos outra contribuição de Thomas Jefferson, no sentido de que o elemento de partida da criação intelectual é sempre os repositórios precedentes, culturais e técnicos da humanidade, sendo, assim, uma apropriação inadequada do domínio comum, considerar como exclusivo o que já era de todos (nesse sentido também é o pensamento de Barbalho, um de nossos constitucionalistas clássicos, quando diz que:

O invento é antes uma combinação do que verdadeiramente criação. Versa sobre elementos preexistentes, que fazem desse repositório de idéias conhecimentos que o tempo e o progresso das nações têm acumulado e que não são suscetíveis de serem apropriados com o uso exclusivo por quem quer que seja, constituindo antes um patrimônio comum, de que todos se podem utilizar.126

Vemos então que, incorporados, necessariamente, os direitos de exclusividade no campo da Propriedade Intelectual, nos sistemas jurídicos dos países, sofrem eles uma tensão central:

A Constituição Federal de 1988 dita que a ordem econômica brasileira tem como fundamentos a livre iniciativa e a livre concorrência, e ao mesmo tempo, determinou ao Poder Público a repressão do abuso do poder econômico, particularmente quando visasse à eliminação da concorrência (artigos 170, IV, e 173, §4º da CF/88). Em assim sendo, poderíamos pensar que se baniria qualquer forma de monopólio, em se aplicando, direta e exclusivamente, os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.

Entretanto, em consideração a outros interesses e valores que considerou relevantes, a Constituição em vigor conferiu ao Estado atuação monopolística em determinados setores da economia (art. 171, I usque IV, e art. 171, §1º, ambos da CF/88), sendo essa mesma lógica utilizada no que tange às patentes, ou seja, em atenção a outros interesses considerados importantes, a Constituição Cidadã previu a patente, que é uma espécie de monopólio temporário, como um direito a ser outorgado aos autores de inventos industriais (art. 5º, XXIX, da CF/88), e tal direito serve a equilibrar interesses, mas não sem sujeitar a sociedade ao risco do abuso que, a experiência tem demonstrado, costuma acompanhar o regime de monopólios.

Cabe-nos ressaltar, nesta dissertação, que na técnica de análise e aplicação constitucional corrente, esse verdadeiro antagonismo gerado pelo direito à patente, se resolve pelos instrumentos de ponderação e

125 Vale aqui lembrar que os direitos fundamentais protegem a dignidade da pessoa humana, representando a contraposição da justiça ao poder, em qualquer de suas espécies.

126 Apud Denis Borges. Propriedade Intelectual: criações industriais, segredos de negócio e concorrência

razoabilidade; bem como o constituinte originário, ao elaborar nossa Constituição vigente, em seu art. 170, realçou que a Ordem Econômica tem como pano de fundo os ditames da Justiça Social, observando-se, dentre os princípios ali elencados, o da livre concorrência.

Portanto, como também elencado no art. 174 da CF/88, temos que cabe ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercer funções de fiscalização, incentivo e planejamento (mormente coibir abuso de poder econômico que vise à dominação de mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros) e, no que toca à tecnologia, favorecer seu desenvolvimento no país (sendo que o art. 219 da CF/88 o qualifica como um desenvolvimento autônomo).

Portanto, diante dessa tensão máxima aqui tratada (entre a liberdade constitucional básica do livre acesso às criações e o Direito Constitucional de exclusividade sobre as criações intelectuais), mister se torna a imposição, quanto à patenteabilidade, o balanceamento dos dois interesses; o interesse público a ser protegido contra monopólios e, ao mesmo tempo, de ter acesso aos novos itens, em face do interesse nacional como um todo em estimular as invenções premiando os inventores pelas suas invenções (lembrando que, no que tange à biodiversidade, ainda há tensões outras específicas, a saber: a) colisão entre a proteção dos interesses do investidor e do criador e o princípio do uso social das propriedades; b) a cláusula finalística da Propriedade Industrial; c) os parâmetros constitucionais de proteção à tecnologia e à autonomia tecnológica, d) a tensão de interesses entre a economia nacional e o capital estrangeiro).

Finalmente, cabe-nos um último comentário, com o auxilio de Denis Borges, no que se refere a proteção de cultivares, tema que toca mais de perto o estudo elaborado na presente dissertação, senão vejamos.

Nesse campo, os efeitos da proteção são mais limitados, limitando-se à produção para os fins de comercialização, à oferta para venda e à venda de sementes ou material de plantação da variedade (tal fato: a) confere ao fazendeiro a possibilidade legal – supondo que ele tenha a capacidade técnica em fazê-lo – de produzir sua própria semente sem ter que pedir uma licença ou pagar royalties; b) o direito que é atribuído não compreende quaisquer direitos em variedade futuras que sejam criadas – mas não produzidas por uso repetido – a partir da variedade protegida; c) a extensão da proteção é restrita e não compreende, em geral, os produtos da variedade; d) não existe um sistema de dependência – exceto no caso específico de variedades que exijam uso repetido de outra variedade para sua produção comercial, e) não há reivindicações que possam definir seu campo de proteção).

Lembramos, contudo, como já dito anteriormente, que a cláusula final contida no inciso XXIX do art. 5º da CF/88 condiciona o direito de Propriedade Intelectual ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico do país e, como os direitos relativos à Propriedade Intelectual não derivam diretamente da Constituição Cidadã, mas da lei ordinária, leis ordinárias que veiculem tal matéria apenas serão constitucionais127 na medida em que visarem ao interesse social do Brasil favorece o desenvolvimento tecnológico brasileiro e, ainda, favorecerem o desenvolvimento econômico do país.

127 Sendo assim, lei ordinária sobre Propriedade Intelectual que vise atender interesse de política externa do Governo, em detrimento do interesse social ou do desenvolvimento tecnológico do Brasil, incidirá em vício insuperável, confrontando e atentando contra as finalidades que lhe foram designadas pela Lei Maior.

3.3 – A CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS: UMA