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A construção dos direitos na sociedade de classes: confluência de aspectos econômicos, políticos e sociais

2 CAPITALISMO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: CONTRADIÇÕES E DESDOBRAMENTOS DA COMPLEXA

2.1 TRANSFORMAÇÕES SOCIETÁRIAS E A CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NA SOCIEDADE DE CLASSES

2.1.2 A construção dos direitos na sociedade de classes: confluência de aspectos econômicos, políticos e sociais

O Estado europeu do século XIX, ancorado nos princípios liberais, foi pródigo no estabelecimento dos direitos civis, que tendem a limitar os poderes do Estado, reservando aos indivíduos uma esfera de liberdade em relação a ele, garantindo, por exemplo, o direito à propriedade privada (PEREIRA, 2000). Nesse sentido, as idéias liberais do iluminismo foram importantes na luta contra o absolutismo, pelo reconhecimento de que o ser humano é portador de direitos, dentre estes a liberdade individual (COUTO, 2006).

28 Essas iniciativas pré-capitalistas de proteção social são consideradas por Pereira (2000) como sinônimo

genérico de proteção aos pobres e que se diferenciam substancialmente da concepção ampliada de proteção social que se tem, desde meados do século XX, que “[...] engloba a seguridade social (ou segurança social), o asseguramento ou garantias à seguridade e políticas sociais” (PEREIRA, 2000, p.16, grifos do autor).

A mobilização e a organização da classe trabalhadora foram determinantes para que se conseguisse assegurar importantes conquistas na dimensão dos direitos políticos, como o direito ao voto, de organização em sindicatos e partidos, de livre expressão e manifestação. Diferentemente dos direitos civis, os direitos políticos são coletivos, garantidos a todos29 independentemente da relação com a propriedade privada.

[...] a generalização dos direitos políticos é resultado da luta da classe trabalhadora e se não conseguiu instituir uma nova ordem social, contribuiu significativamente para ampliar os direitos sociais, para tencionar, questionar e mudar o papel do Estado no âmbito do capitalismo a partir do final do século XIX e início do século XX. (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p. 64).

Os direitos sociais configuram uma fase que foi precedida por duas outras, a dos direitos civis, ou os “direitos de liberdade” que são entendidos como “[...] todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado” (BOBBIO, 2004, p. 52). A fase seguinte compreende os direitos políticos, “[...] os quais – concebendo a liberdade não apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como autonomia – teve como consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder político (BOBBIO, 2004, p. 52). Sob esse aspecto, compreende-se que os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores foram determinantes para a conquista de direitos, especialmente no campo dos direitos civis e políticos, não sendo suficientemente fortes para garantir que as políticas e direitos sociais ultrapassassem, num primeiro momento, os limites de parcelas do mercado de trabalho urbano e formal (COUTO, 2006). Assim, diferentemente dos direitos civis e políticos, os direitos sociais exigem uma intervenção sistemática do Estado para a sua realização. Dito de outra forma, “os direitos sociais exigem para a sua realização prática a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva” (BOBBIO, 2004, p. 87).

A discussão acerca dos direitos sociais configura-se como uma tentativa de responder às demandas postas pelas acentuadas desigualdades provocadas pela apropriação privada das riquezas socialmente produzidas (COUTO, 2006). Nesse

29 Cabe salientar que as Constituições liberais restringiram o direito político aos proprietários, sendo que a

sentido, esses direitos que “[...] vem se constituindo desde o século XIX”, somente “[...] ganharam evidência no século XX”, período em que foi exacerbada a contradição entre produção social e acumulação privada (COUTO, 2006, p. 35).

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, os direitos sociais são alçados à condição de direitos universais. A partir de então, em tempos diferenciados, essa dimensão do direito social passa a ser instituída no corpo doutrinário das nações.

Partindo-se de tais premissas, pode-se considerar que “os direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem” (BOBBIO, 2004, p. 51). Essa compreensão que circunda o debate acerca das políticas sociais resgata elementos da dimensão histórica, do contexto e da complexidade dos processos nos quais as mesmas são engendradas, ou seja, requer apreendê-la em sua totalidade.

Sob esse aspecto, as políticas sociais são originárias não apenas das transformações ocorridas no capitalismo, mas em estreita relação com isso, pela dinâmica das lutas políticas que se expressam nos processos de ampliação dos direitos sociais (PAIVA; OURIQUES, 2006).

Foram as lutas sociais que romperam o domínio privado nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública exigindo a interferência do Estado no reconhecimento e a legalização de direitos e deveres dos sujeitos sociais envolvidos, consubstanciados nas políticas e serviços sociais (IAMAMOTO, 2005, p. 14).

Foi o movimento conflituoso da luta de classes que exigiu a modificação da intervenção estatal na economia, no sentido de que fosse administrado o processo de acumulação emergente e as implicações sociopolíticas que daí decorresse. O financiamento público de parte dos custos da mão-de-obra, por meio das políticas sociais, possibilitou o incremento da acumulação privada, consistindo, então, em uma engrenagem modelar no desenho do Estado capitalista, sobretudo dos países centrais desde o segundo quartel do século XX. A política social, como mecanismo que socializa os custos da reprodução da força de trabalho para o conjunto da sociedade é, portanto,

uma dessas estratégias acionadas nessa nova fase da regulação capitalista (PAIVA; OURIQUES, 2006).

As estratégias de intervenção do Estado, organizadas de acordo com as exigências da acumulação ampliada do capital, não são alheias à dimensão de luta de classes em cada sociedade e época determinadas. Ou seja, as políticas sociais são também resultantes da luta dos trabalhadores por direitos sociais.

No que se refere aos aspectos conjunturais, a implantação das políticas sociais ocorreu de forma gradual e com diferentes características entre os países, dependendo “[...] dos movimentos de organização e pressão da classe trabalhadora, do grau de desenvolvimento das forças produtivas, e das correlações e composições de força no âmbito do Estado” (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p. 64). Diante disso, apenas em meados do século XX “[...] o Estado capitalista passa a assumir e a realizar ações sociais de forma mais ampla, planejada, sistematizada e com caráter de obrigatoriedade”. (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p. 64).

Demarca-se, assim, o contexto social de posterior emergência das políticas sociais aos elementos que emergiram em finais do século XIX e se complexificaram no século XX, a partir do reconhecimento da classe trabalhadora como ator político fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. Destarte, deve-se considerar também a existência de um vínculo entre as políticas sociais e os processos de legitimação que o Estado e as classes dominantes desenvolvem junto às classes assalariadas.

Sob esse aspecto, “as estratégias de intervenção do Estado, organizadas de acordo com as exigências da acumulação ampliada do capital, não são alheias à dimensão de luta de classes em cada sociedade e em cada época determinada” (PAIVA; OURIQUES, 2006, p. 169). Assim, partindo-se de uma perspectiva marxista, compreende-se que a criação do Estado de Bem-Estar Social tem funções contraditórias, pois “[...] responde aos interesses das classes dominantes quanto à acumulação de capital, mas é pressionado a responder, também, a necessidades sociais e a ampliar o acesso a direitos” (SILVA, 2004, p. 61).

Em geral, o Estado de Bem-Estar Social caracteriza-se por assegurar aos cidadãos condições de bem-estar, como por exemplo, o acesso a serviços públicos como saúde e educação. Entretanto, assim como há divergências teóricas entre os estudiosos

quanto à emergência do Welfare State,30 as condições em que essas garantias ocorrem variam de um modelo para outro. Nesse sentido, diversos países desenvolveram diferentes concepções e formas de intervenção Estatal referentes ao exercício de modelos de proteção social, tendo variado desenvolvimento entre as nações, seja em termos de alcance e constituição de fundos, quanto dos impactos sociais e políticos, o que impossibilita o estabelecimento de um padrão único.

Sob esse aspecto, cabe mencionar a classificação básica dos regimes (ou modelos básicos) de Bem-Estar Social, elaborada por Esping-Andersen, que vem sendo utilizada nas análises do Serviço Social e áreas afins, considerando-se que os diferentes países de capitalismo avançado podem ser divididos em liberal, conservador e social-

democrático (ESPING-ANDERSEN, 1990).

No regime liberal, “[...] prevalecem a minimização do Estado, a individualização dos riscos e o fomento do mercado. A assistência social tem um peso relativo e é baseada nas necessidades e na comprovação de meios, não sendo reconhecida como direito”. (SILVA, 2004, p. 68). Esse regime pode ser exemplificado pelas experiências desenvolvidas nos EUA, Canadá e Inglaterra, tendo o Estado forte orientação de mercado (LAURELL, 2002).

No regime conservador, “[...] os benefícios dependem de trabalho, renda e contribuição prévia compulsória” (SILVA, 2004, p. 67). Indo além, os benefícios “[...] variam conforme a inserção na estrutura ocupacional, capacidade de organização e pressão” (SILVA, 2004, p. 67). Embora se baseie em direitos sociais, envolve efeitos redistributivos mínimos, podendo ser exemplificado pelas experiências alemãs e italianas (LAURELL, 2002).

Já no regime social-democrata, “[...] são assegurados benefícios básicos e iguais para todos, independentemente de contribuições prévias. Baseia-se nos princípios da universalidade, da solidariedade e da igualdade [...]” (SILVA, 2004, p. 68). Caracterizado pelo universalismo e pela redução no papel do mercado no âmbito do bem-estar social, tem como exemplo os países escandinavos (LAURELL, 2002).

A literatura das ciências sociais categoriza a seguridade social a partir de duas abordagens31, a primeira referente ao padrão inglês de proteção social, baseado no

Plano Beveridge – em que a proteção social mais do que um seguro configura-se em um

direito, cuja cobertura deve ser universal – e, a segunda, relacionada ao padrão alemão, fundado por Bismarck – tendo por ênfase o seguro, amparando-se em critérios de seletividade para o acesso aos benefícios (VIANNA, 1994).

A Alemanha, a partir de 1883 torna-se a pioneira na criação do primeiro modelo de proteção social sob a ação do Estado, durante o governo de Otton Von Bismarck, denominado sistema bismarckiano. Orientado pela lógica do seguro social obrigatório, que se vinculava a algumas categorias específicas de trabalhadores formais, mediante contrato e contribuição prévia em que os trabalhadores renunciavam a uma parte dos seus ganhos para constituir um fundo. Esse sistema compreendia uma “[...] estrutura contributiva de seguro saúde, acidente de trabalho e aposentadoria com vistas a fazer frente à mobilização crescente da classe trabalhadora alemã e ao ideário socialista” (MENDES; WÜNSCH; COUTO, 2006, p. 213).

Anos mais tarde, em 1942, foi implantado na Inglaterra o Plano Beveridge, o qual também influenciou a criação e/ou reformas nos sistemas dos principais países. Esse sistema de Seguridade Social inovou “[...] por ser nacional e unificado e conter um eixo distributivo, ao lado do contributivo”. Desse modo, o caráter distributivo se processa na medida em que a participação nos recursos do fundo não está condicionada a contribuição, atendendo também aos excluídos do mercado formal de trabalho, além de ampliar e unificar as modalidades de seguro social para os benefícios suplementares, subvenções às famílias e isenções fiscais (PEREIRA, 2000, p. 93).

Sabe-se que a instauração do Estado de Bem-Estar na Inglaterra visava, dentre outros aspectos, superar a vulnerabilidade decorrente de um contexto de insegurança, racionamento e controle dos preços. Foi o sentimento de vulnerabilidade comum que fez com que os anseios por liberdade, igualdade e segurança fossem considerados inerentes ao funcionamento da sociedade e da economia (SILVA, 2004).

Portanto, embora as medidas embrionárias e rudimentares de proteção social sejam encontradas em um contexto remoto, conforme se abordou, mesmo nas

31 Para além da categorização explicitada, cabe salientar que tem-se a existência de diferentes modelos de

Estado de Bem-Estar social ou Welfare State, que estão diretamente relacionados a forma específica de regulação social. Consultar Vianna (1994).

sociedades pré-capitalistas, é no contexto do Pós-II Guerra Mundial, na Europa, que se afirma a conquista da proteção social como direito, em meio a uma conjuntura particular do modo de produção capitalista, de produção e consumo em massa.

Sob esse aspecto, a consolidação da proteção social na sociedade capitalista pode ser traduzida nos modelos de Estado de Bem-Estar social ou Welfare State, os quais correspondem a um conjunto de políticas econômicas e sociais, respondendo às necessidades sociais e também às demandas do capital em se manter preservado, tornando-se “[...] a fase de ouro das políticas de proteção social32, na qual a otimização da satisfação das necessidades humanas básicas33 tornou-se uma tendência promissora, a partir da Europa” (PEREIRA, 2000, p. 112).

A ampliação da interferência estatal na sociedade em geral e na economia em particular deveu-se às preocupações em diminuir a tensão social determinada pelas novas relações de produção. Primeiro, a assistência social para os indigentes. Depois o seguro social em face da exigência de tutela dos trabalhadores em condição de necessidade ou com redução da capacidade laborativa. E, por último, a provisão estatal em favor de todos os cidadãos, por intermédio da seguridade social (SILVA, 2004, p. 62, grifos do autor).

Assim, as configurações dos sistemas de proteção social acompanharam a conquista dos direitos, tanto civis quanto políticos e, mais contemporaneamente, os direitos sociais, tendo em vista que estes buscam garantir, no marco da legalidade, condições de vida digna (PERUZZO, 2007).

A garantia dos direitos sociais por meio das políticas sociais públicas esteve condicionada às mudanças ocorridas nas condições econômicas de produção, assim como, pelo desenvolvimento das lutas de classes, em um contexto de organização do movimento operário e da adoção de regras e dinâmicas socioinstitucionais, sob as quais estrutura-se o regime político dos Estados Nacionais.

32 Foi nesse período que significativos direitos trabalhistas e sociais foram garantidos, como o

estabelecimento da jornada de trabalho e a regulação do trabalho de crianças e adolescentes, legislação em relação à saúde do trabalhador, dentre outras regulamentações das atividades laborativas (PERUZZO, 2007).

33 Cabe salientar a distinção existente entre os conceitos de mínimo e básico. “Enquanto o primeiro tem a

conotação de menor, de menos, em sua acepção mais ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta” (PEREIRA, 2000, p. 26).

Compreender as políticas sociais como processo e resultante das relações complexas e contraditórias que se estabelecem entre Estado e sociedade civil, no âmbito dos conflitos e lutas de classe que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo, requer o reconhecimento de que tanto o Estado quanto as próprias políticas sociais assumem funções determinadas, acerca das quais se problematizará no próximo subitem.

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