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Papel das economias dos países da América Latina no conjunto das economias do primeiro mundo: condicionantes históricos da dependência

3 POLÍTICA SOCIAL E ESTADO NA AMÉRICA LATINA: PARTICULARIDADES DE SUA CONFIGURAÇÃO HISTÓRICA E DE SUAS

3.1 DEPENDÊNCIA, SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO E POLÍTICAS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA

3.1.1 Papel das economias dos países da América Latina no conjunto das economias do primeiro mundo: condicionantes históricos da dependência

As duas primeiras décadas do século XX alteraram a estrutura produtiva mundial, e dentre estes se incluem os países da região latino-americana, implicando em novas questões políticas e sociais que determinaram a mudança na relação Estado/sociedade, especialmente com o declínio do modelo primário-exportador59, em consequência das transformações operadas no sistema econômico mundial após a I Guerra Mundial.

Diante disso, “o continente viveu cinco décadas de contínuo desenvolvimento econômico que compuseram um ciclo longo expansivo, desde os anos 1930, quando foram postas em prática distintas formas de reação à crise de 1929, até o esgotamento do modelo primário-exportador e da hegemonia liberal” (SADER, 2009, p. 49).

Na América Latina, até então, as exportações representavam “[...] praticamente a única componente autônoma do crescimento da renda, como também o setor exportador representava o centro dinâmico de toda a economia” (TAVARES, 2000, p. 220); diferentemente das economias centrais, em que as exportações, embora importantes não detinham a exclusiva responsabilidade pelo crescimento da economia, pois ocorria a combinação das variáveis interna e externa, permitindo que “[...] o aproveitamento das oportunidades do mercado exterior se desse juntamente com a diversificação e integração da capacidade produtiva interna” (TAVARES, 2000, p. 220).

No entanto, o desequilíbrio externo fez com que a maior parte dos países da região adotasse uma série de medidas a fim de defender o mercado interno dos efeitos da crise no mercado internacional. Essas medidas consistiam basicamente em

59 Ver o estudo sistematizado de Tavares (2000), em que aborda os antecedentes, o auge e o declínio do

“restrições e controle das importações, elevação da taxa de câmbio e compra de excedentes ou financiamento de estoques, visando antes defender-se contra o desequilíbrio externo do que estimular a atividade interna” (TAVARES, 2000, p. 223).

Com a perda da importância relativa do setor externo60 conseguiu-se substituir parte dos bens que antes se importavam, aumentando a participação da atividade interna na formação da renda nacional, tornando-se vigente um novo modelo de desenvolvimento, em que se procurou repetir, em condições sócio-históricas distintas, a experiência de industrialização dos países desenvolvidos.

Desenvolveram-se projetos econômicos de industrialização substitutiva de importações em alguns países – de forma mais concentrada no México, na Argentina e no Brasil, mas também, ainda que menos marcada, na Colômbia, no Peru e no Chile. Esses processos vieram acompanhados de projetos político-ideológicos de caráter nacional, que fortaleciam a classe trabalhadora, os sindicatos e as forças partidárias de caráter nacional, assim como de ideologias e identidades nacionalistas. Ao mesmo tempo, constituíram-se novos blocos sociais no poder (SADER, 2009, p. 49).

O processo de substituição de importações, caracterizado como “[...] um processo de desenvolvimento interno que tem lugar e se orienta sob o impulso de restrições externas e se manifesta, primordialmente, através da ampliação e diversificação da capacidade produtiva industrial” (TAVARES, 2000, p. 230), foi viabilizado, portanto, pela presença maciça do Estado no processo produtivo e na regulação social, pois compreendia-se que para alcançar o crescimento econômico os países pobres deveriam implantar idêntico processo de industrialização desenvolvido na Europa, nos Estados Unidos ou na União Soviética. Ou seja, “[...] para alcançar o modelo, o imperativo que se apresentava às sociedades subdesenvolvidas era a ‘modernização’, entendida tanto em nível de sociedade quanto dos comportamentos individuais” (ROTTA, 2007, p. 337).

Essa concepção encontrou guarida nos países latino-americanos, que a partir de alianças com o capital internacional aceleraram seu processo de industrialização e modernização. Todavia, tal projeto ancorava-se em um “desenvolvimento dependente”

60 Cabe destacar que “[...] o setor externo não deixou de desempenhar papel relevante em nossos países;

apenas houve uma mudança significativa nas suas funções. Em vez de ser o fator diretamente responsável pelo crescimento da renda, através do aumento das exportações, sua contribuição passou a ser decisiva no processo de diversificação da estrutura produtiva, mediante importações de equipamentos e bens intermediários” (TAVARES, 2000, p. 224).

que manteve sua continuidade e teve retardado seus questionamentos até o final da década de 1970, durante a sucessão de golpes militares (ROTTA, 2007).

Essa condição de dependência dos países periféricos diante da acumulação de capital em determinadas regiões é que a teoria da dependência61 se propôs a analisar e problematizar. Sob esse aspecto, cabe salientar que a nomenclatura economia periférica costuma ser utilizada para denominar um país ou região que apresente:

[...] instáveis trajetórias de crescimento, forte dependência de capitais externos para financiar suas contas-correntes (fragilidade financeira), baixa capacidade de resistência diante de choques externos (vulnerabilidade externa) e altas concentrações de renda e riqueza. Isso caracterizaria o subdesenvolvimento dessas economias (CARCANHOLO, 2009, p. 251).

A percepção convencional tende a conceber a situação de subdesenvolvimento como sinônimo de ausência de desenvolvimento, ou seja, “atraso” em relação às experiências de economias avançadas, o que tornaria possível extrair das mesmas seus modelos (medidas corretivas) a fim de superar o atraso e atingir seus patamares de desenvolvimento (CARCANHOLO, 2009).

Tal compreensão considera as situações de desenvolvimento e subdesenvolvimento como fenômenos quantitativamente diferenciados. Porém, ao contrário de tal perspectiva,

A dialética do desenvolvimento assim percebida concebe que o subdesenvolvimento de alguns países/regiões resulta precisamente do que determina o desenvolvimento dos demais. [ou seja], a lógica de acumulação de capital em escala mundial possui características que, ao mesmo tempo, produzem o desenvolvimento de determinadas economias e o subdesenvolvimento de outras (CARCANHOLO, 2009, p. 252).

Nessa perspectiva, as citadas características de uma economia periférica “[...] possuem um caráter estrutural, determinado pela própria condição de dependência, não

61 Refere-se à teoria da dependência na sua versão marxista, encontrada na obra “Dialética da

dependência”, de Marini, Ruy Mauro, lançada originalmente em 1973, que “[...] propõe uma reinterpretação da história do capitalismo, colocando no centro a contribuição da América Latina e de outras regiões semelhantes, que no pensamento dominante eram depreciadas com termos como “atraso”, “estorvo” ou “subdesenvolvimento” (CECEÑA, 2009, p. 41). Nesta obra, Marini (1973, p. 101) postula que “o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho” (nome que concede ao processo de violação do valor da força de trabalho), e assim, identifica o núcleo central de como se reproduz o capitalismo dependente.

passíveis de superação/solução pelo mero manejo ‘adequado’ do instrumental de política econômica” (CARCANHOLO, 2009, p. 252). Ou seja:

[...] a dependência representa uma situação em que a estrutura socioeconômica e o crescimento econômico de uma região são determinados, em sua maior parte, pelo desenvolvimento das relações comerciais, financeiras e tecnológicas de outras regiões. A dependência é gerada e reproduzida a partir da internacionalização capitalista e de sua tendência a concentrar e centralizar os excedentes que resultam da acumulação mundial nos centros dinâmicos do sistema mundial (SANTOS, 1991, p. 105).

Diante disso, o subdesenvolvimento não seria um primeiro estágio rumo à condição desenvolvida, o que poderia ser simplificadamente representado por uma linha ascendente, mas, ao contrário, é “[...] característica antagônica e complementar62 ao processo de desenvolvimento dentro de uma mesma lógica global de acumulação capitalista” (CARCANHOLO, 2009, p. 253). Em outras palavras, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento só podem ser explicados através da compreensão das próprias leis gerais do capitalismo63, tratadas no capítulo anterior.

Sob esse aspecto, pode-se considerar que o capital se reproduz de maneira particular nos países de capitalismo central (OSORIO, 2006). Esses países precisaram incorporar de maneira ativa os trabalhadores para a sua realização, pois necessitavam do mercado interno para a ampla produção que a elevação da produtividade gerava, razão pela qual tornava-se imperativo criar as condições para aumentar a exploração e, ao mesmo tempo, elevar o consumo dos trabalhadores.

Alguns aspectos incidiram diretamente e tornaram possível tal alteração nos países do capitalismo central, como as transformações produtivas – ou como de praxe denominadas revoluções tecnológicas –, assim como pela ativa incorporação da América Latina no mercado mundial, como região produtora de alimentos, pois isso “[...] barateou elementos do capital variável e incidiu na redução do tempo de trabalho

62 Desenvolvimento e subdesenvolvimento constituem “[...] um par dialético marcado pelo antagonismo e

pela complementaridade. [...] Antagonismo, justamente por tratar de situações distintas dentro da lógica de cumulação capitalista mundial, mas complementaridade por serem necessariamente elementos constituintes dessa lógica” (CARCANHOLO, 2009, p. 253-254).

63 Nessa perspectiva, Sader (2009) destaca que a principal originalidade da obra de Ruy Mauro Marini,

está na sua capacidade de compreender a constituição das nossas formações sociais de forma indissoluvelmente intrincada com a constituição do sistema capitalista internacional, no interior da qual nascem, como um de seus elementos constitutivos e, ao mesmo tempo, condicionados por esse tipo de inserção subordinada.

necessário nas economias centrais, no momento em que as exportações regionais de matérias-primas operavam no sentido de baratear o capital constante” (OSORIO, 2009, p. 181).

Dessa forma, a América Latina desempenhou um papel fundamental aos países do capitalismo central no século XIX, no momento em que a concentração de riquezas permitiu gerar novos modos de produzir – através da invenção de máquinas e da substituição relativa do trabalho vivo, a qual marca o surgimento da grande indústria e o estabelecimento das bases para a divisão internacional do trabalho – devido à sua capacidade para “[...] criar uma oferta mundial de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia capitalista internacional, se acrescentará logo a de contribuir para a formação de um mercado de matérias-primas industriais, cuja importância cresce em função do próprio desenvolvimento industrial” (MARINI, 1973, p. 20).

Com isso não somente os custos de produção foram diminuídos em função da diferença de preços relativos, mas também a contribuição em grãos e alimentos permitiu desvalorizar a força de trabalho e, com isso, dar um salto de qualidade na produção e nos mecanismos de extração da mais-valia. Assim:

[...] a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a produção de mais-valia relativa. [...] o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região contribuir para essa mudança qualitativa nos países centrais, se dará fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. Esse é o caráter contraditório da dependência latino-americana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista [...] (MARINI, 1973, p. 23).

A geração das condições e possibilidades para a extração da mais-valia relativa sustentam-se a partir da implantação de um sistema de extração da mais-valia absoluta em amplas regiões do mundo, dentre as quais a América Latina. Nessa relação reside a essência da dependência, ou seja, “[...] na profunda contradição que aparece como consequência do contraste entre a capacidade produtiva do trabalho nos países que se situam no centro do sistema capitalista (consumidores de “bens de salário”) e a superexploração do trabalhador nos países periféricos (consumidores de “bens de produção” dos países centrais)” (GANDÁSEGUI, 2009, p. 267-268).

Tais elementos constitutivos que conformam as particulares formas de reprodução do capitalismo nos países da América Latina demarcam a inserção subordinada que sua economia representa no conjunto das economias. Assim, contraditoriamente, o desenvolvimento da produção latino-americana – que permitiu à região contribuir qualitativamente com os países centrais –, deu-se fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador, tendo em vista que:

[...] a produção latino-americana não depende, para a sua realização, da capacidade interna de consumo. Assim, dá-se a partir do ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital – a produção e a circulação de mercadorias – cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, quer dizer, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias (MARINI, 1973, p. 50).

A partir de tais premissas pode-se aferir que quanto maior for o desenvolvimento capitalista, maior será a superexploração do trabalhador na periferia e, em particular, do trabalhador latino-americano. Tal compreensão não nega a existência de superexploração nas chamadas economias centrais, embora “[...] a diferença reside em que, nas economias dependentes, essa modalidade de exploração se encontra no centro da acumulação [...] dando origem a uma forma particular de reprodução capitalista e uma forma particular de capitalismo: o dependente” (OSORIO, 2009, p. 174-175).

Destaca-se que a situação de dependência não implica na impossibilidade de crescimento da economia dependente, bem como não é sinônimo de estagnação, mas que “[...] quanto mais cresce, no alicerce da superexploração da força de trabalho, mais aguça as diferenças específicas do capitalismo central. Dessa forma, em situação de dependência, maior desenvolvimento capitalista, com acréscimo da economia dependente, implica maior dependência [...]” (CARCANHOLO, 2009, p. 258). Ou ainda, dito de outra forma, “o desenvolvimento econômico possível na América Latina se daria somente com o aprofundamento da dependência e da desigualdade social” (SADER, 2009, p. 32).

Após evidenciar os condicionantes da dependência nas relações econômicas dos países da América Latina com o conjunto das economias do primeiro mundo, no

próximo item serão tratados seus desdobramentos nas características assumidas pelas políticas sociais na região.

3.1.2 Superexploração do trabalho e políticas sociais na América Latina: origens e

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