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A “década perdida”: a contraditória coexistência da agenda democrático-social com a agenda neoliberal

3 POLÍTICA SOCIAL E ESTADO NA AMÉRICA LATINA: PARTICULARIDADES DE SUA CONFIGURAÇÃO HISTÓRICA E DE SUAS

3.2 CRISE ECONÔMICA E POLÍTICAS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA: 40 ANOS DE UMA TRANSIÇÃO TURBULENTA

3.2.1 A “década perdida”: a contraditória coexistência da agenda democrático-social com a agenda neoliberal

Dois fenômenos simultâneos caracterizaram a América Latina nos anos 1980. De um lado a economia, que vivenciava um período de crise e endividamento externo, de outro a política, marcada pelos processos de transição à democracia.

Com relação ao primeiro fenômeno, os países latino-americanos passaram a sofrer os impactos do processo de crise econômica – que afetou inicialmente os países centrais – entre finais da década de 70 e início de 80, a qual foi transmitida aos países da região pelo comércio e financiamento, gerando endividamento e aceleração inflacionária, além de dependência ao sistema financeiro internacional pelo aumento da taxa de juros e dos acordos para renegociação e pagamentos da dívida externa. Diante disso, foram abalados os seus pilares econômicos e políticos, sendo que o seu enfrentamento requisitou mudanças que afetaram a produção e implicaram em uma nova organização do território e do Estado.

Em 1982, após mais de 30 anos de crescimento, caiu o PIB em toda a América Latina e muitos países, incluindo os maiores e mais diversificados, viram-se em dificuldades para cumprir os compromissos com os encargos da dívida externa, submetendo-se ao monitoramento do FMI e adotando políticas recessivas de ajuste que debilitaram seriamente as economias da região [...]. Os custos sociais foram imensos, com crescentes taxas de desemprego, queda nos salários reais e uma profunda deterioração das condições de vida da população da região, com um significativo aumento das desigualdades sociais (FLEURY, 1994, p. 213).

Embora os fatores determinantes fossem predominantemente externos, há que se considerar a convergência dos fatores internos, de caráter estrutural e política econômica, que repercutiram, a partir de 1980, em uma crise da dívida que afetou a América Latina e o Caribe que impactou em transformações no setor econômico, em particular ao setor industrial, bem como trouxe consequências no plano das políticas sociais (FAJNZYLBER, 2000)

Desde então, em comum entre as produções teóricas acerca da experiência latino-americana e caribenha dos anos 1980 está o destaque ao retrocesso experimentado pela grande maioria dos países no âmbito econômico e social, em comparação a outras regiões do mundo, em particular aos países industrializados, assim

como, em relação a ela mesma, na perspectiva dos sucessos materializados nas décadas anteriores. Então, visando ilustrar a magnitude do atraso em matéria de desenvolvimento, foi cunhada a expressão “década perdida”.

Assim, em consequência ao esgotamento do modelo de industrialização, alicerçado no protecionismo estatal e nos retrocessos dos anos 1980, os países iniciaram a década de 1990 com o peso das implicações econômicas e sociais, tornando necessário o estabelecimento de mudanças, por meio da reforma do Estado, buscando vincular-se a economia de mercado. Dessa forma, “os efeitos devastadores da crise financeira e a explosão da crise da dívida externa nos anos 80 levam a um reforço do modelo que vinha sendo aplicado em alguns países desde meados da década anterior pelo Banco Mundial, o FMI e o governo dos EUA, no chamado ‘Consenso de Washington’” (SOARES, 2000, p. 14).

A partir de então, propaga-se nos países periféricos o referencial teórico neoliberal, que passou a dar sustentação às mudanças no papel do Estado. Contrário às intervenções no mercado por parte do Estado, defende a estabilidade monetária através da disciplina orçamentária, da contenção de gastos sociais e da necessária realização de reformas fiscais.

Na década de 1990, o neoliberalismo havia se estendido no continente como em nenhuma outra região do mundo. Nascido na extrema direita do Chile de Pinochet, teve outros adeptos de direita, como Alberto Fujimori no Peru, mas também conquistou forças historicamente identificadas com o nacionalismo, como o PRI mexicano, o peronismo argentino – através dos governos de Carlos Menem – e o MNR na Bolívia. A partir daí alcançou a socialdemocracia, com o Partido Socialista do Chile, a Ação Democrática da Venezuela e o Partido da Social Democracia Brasileira. Ocupou praticamente todo o espectro político do continente, da direita à esquerda, tornando-se um modelo hegemônico no conjunto da América Latina (SADER, 2009, p. 50).

Assim, conforme explicitado anteriormente, o modo de produção capitalista encontrou formas de retomar internacionalmente os seus pilares de crescimento, a partir de um conjunto de medidas na esfera econômica e social, dando vazão a “[...] uma nova etapa do capitalismo - o especulativo – na qual o capital produtivo está subsumido ao capital fictício, restringindo, significativamente, a expansão do capital substantivo na sua capacidade de remuneração” (MOTA; AMARAL; PERUZZO, 2010, p. 37).

Embora nos países da América Latina o desenvolvimento dessa etapa do capitalismo tenha se dado em condições particulares, dada a configuração sociopolítica da região, os países foram integrados ao movimento de internacionalização da economia e incorporados aos processos especulativos (MOTA; AMARAL; PERUZZO, 2010).

Concomitantemente a essa conjuntura, diversos países iniciaram um processo de transição à democracia, pondo fim aos governos militares que vigoravam na região. Cabe destacar que desde finais da década de 80 o movimento das esquerdas latino- americanas orientava-se no sentido da superação das ditaduras militares, o que culminou anos depois no resultado de eleições.

Coexistindo com a agenda de reformas pró-mercado, estava em pauta nos principais países latino-americanos uma agenda democrático-social que apontava para a expansão da cidadania, com a universalização dos mecanismos de proteção social e ampliação da democracia participativa a complementar as instituições representativas tradicionais.

A década de 1980 configura-se, portanto, como um período de transição democrática em boa parte da América Latina, marcado por reformas cujas agendas apresentavam como centro as discussões relacionadas à proteção social. A expectativa de implantação de uma democracia política associada a uma democracia social povoou os anseios das sociedades que emergiam de regimes autoritários. Buscava-se elevar as metas de universalização de direitos, combinados com acentuados graus de democratização, por meio da descentralização, transparência dos processos decisórios e ampliação da participação.

Dentre as conquistas formais71 desse período, faz-se menção aos direitos sociais, sendo que:

[...] muitos deles reconhecem na sua legislação o conceito de direitos sociais, e escolheram o seguro ou a seguridade social públicos como forma institucional de garantir assistência médica, aposentadoria, auxílios à perda da renda por acidente, doença ou maternidade e, em

71 Faz-se menção às conquistas no plano formal, embora se leve em consideração as limitações da

operacionalização da seguridade social pública na América Latina, as quais podem ser divididas em três principais itens: (1) a deficiente cobertura populacional, por estar muitas vezes mediada por uma relação trabalhista estável, deixando grandes parcelas sem proteção; (2) em alguns países há sistemas de seguridade social que oferecem benefícios diferenciados, especialmente no que se refere às aposentadorias, repercutindo em uma marcante estratificação entre os beneficiários; e, (3) na quase totalidade dos países inexiste proteção econômica em caso de desemprego, assim como políticas de geração de emprego e de intervenção no mercado de trabalho (LAURELL, 2002).

muitos casos, programas de habitação, de subvenções familiares e de lazer. [...] na grande maioria dos países, o Estado é o principal responsável pela educação, em todos os seus níveis [...] (LAURELL, 2002, p. 159-160).

Essa conjuntura de ampliação dos processos democráticos e de reconhecimento dos direitos sociais ocorreu, contraditoriamente, em paralelo à reforma do Estado, por meio dos ajustes e reformas pró-mercado, com a ofensiva das políticas orientadas pelo referencial neoliberal, que marcam o campo político na década de 1990. Sob esse aspecto, “o neoliberalismo conseguiu criar um consenso em torno de suas políticas, contando com forte propaganda internacional, mas jogando também com o fantasma da inflação, o ponto de apoio fundamental na América Latina para a criminalização do Estado e a introdução de duras políticas de ajuste fiscal” (SADER, 2009, p. 45).

A partir de então, pode-se perceber um gradual esvaziamento da perspectiva de direito social que tanto demorou a ser reconhecida e, que nem mesmo chegou a ser posta em prática em sua completude, em função das orientações de recorte teórico neoliberal que tomaram forma, especialmente, “[...] com um programa de reformas que levaria à redução do aparato institucional e dos gastos sociais do Estado, bem como o redimensionamento e reorientação da política social” (ALGEBAILE, 2005, p.88).

Tal perspectiva foi adotada por sucessivos governos na região latino-americana, como, por exemplo, no Brasil, impactando nas garantias presentes na Constituição Federal de 198872.

A partir dos anos 1990, observa-se nos países da América Latina a instalação e predominância de “[...] um estado de direito que poderia ser chamado de estado de

direito democrático, típica configuração de democracia liberal [...] O que quer dizer que

está ocorrendo, no campo jurídico-político, a prevalência da democracia formal” (VIEIRA, 2004, p. 103, grifos do autor), ou seja, estão instaladas em sociedades muito pouco democráticas, ou até mesmo pouco mobilizadas em prol de questões democráticas.

São sociedades que passam por sérias transformações econômicas, que as levaram, [...] a uma política econômica com política social

72 Os avanços contidos na Constituição Federal de 1988, na definição de um novo conjunto de direitos e

novos desenhos para as políticas e instituições sociais sofreram o impacto da introdução da perspectiva neoliberal adotada por sucessivos governos, traduzindo-se em pouca efetividade aos preceitos constitucionais.

direcionada a cuidar momentaneamente de indigentes, de maneira focalizada, dispersa e seletiva. Aparecem programas e diretrizes, relacionados com a política social; tais programas e diretrizes revelam somente pretensões de uma política social. (VIEIRA, 2004, p. 104).

Diante disso, na vigência do estado de direito o problema maior se expressa não em reconhecer os direitos, mas em criar as condições para a ampla realização dos direitos proclamados, ou seja, “[...] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (BOBBIO, 1992, p. 25), sendo que “[...] para protegê-los não basta proclamá-los. [...] O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos” (BOBBIO, 1992, p. 37).

As mudanças nas relações entre Estado e sociedade, decorrentes da adoção de medidas de ajuste estrutural, serão analisadas na sequência dessa produção, em que se dará ênfase às implicações do direcionamento do referencial neoliberal no papel do Estado e buscar-se-á sintetizar os aspectos constituintes das políticas sociais no período.

3.2.2 A política social latino-americana sob o direcionamento do referencial

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