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O liberalismo em um contexto de emergência da pobreza como questão social A consolidação do modo de produção capitalista como modelo hegemônico

2 CAPITALISMO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: CONTRADIÇÕES E DESDOBRAMENTOS DA COMPLEXA

2.2 FASES DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E SUAS MANIFESTAÇÕES NA CONCEPÇÃO DE ESTADO E DAS POLÍTICAS SOCIAIS: UMA

2.2.1 O liberalismo em um contexto de emergência da pobreza como questão social A consolidação do modo de produção capitalista como modelo hegemônico

mundial a partir do século XIX ancorou-se no predomínio do referencial teórico do liberalismo, como orientador das formulações políticas, econômicas e sociais. Esse referencial tem como principal expoente Adam Smith, que formulou a tese do funcionamento livre e ilimitado do mercado e justificou a necessária e incessante busca do interesse individual37, o qual asseguraria o bem-estar coletivo, tornando-se o fio condutor da ação do Estado liberal.

Tal reconhecimento do mercado como regulador das relações sociais realiza-se a partir de uma suposta “ausência” da intervenção Estatal, que, em realidade, não se refere à extinção de todas as funções38 atribuídas ao Estado, apenas os resume às ações que garantam maior liberdade ao mercado e ao fornecimento da base legal necessária (BOSCHETTI; BEHRING, 2007). Assim cabe esclarecer que:

[...] existia um claro componente transformador nessa maneira de pensar a economia e a sociedade: tratava-se de romper com as amarras parasitárias da aristocracia e do clero, do Estado absoluto, com seu poder discricionário. O cenário de uma burguesia já hegemônica do ponto de vista econômico, mas não consolidada como classe politicamente dominante, propicia o antiestatismo [...]. É evidente que essa dimensão se esgota na medida em que o capital se torna hegemônico e os trabalhadores começam a formular seu projeto autônomo e a desconfiar dos limites da burguesia a partir das lutas de 1848, e das lutas pela jornada de trabalho [...]. (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 59).

A sociedade do período fundava-se no mérito de cada indivíduo em potencializar suas capacidades naturais e, a partir dos seus interesses, buscarem a melhoria das condições de existência, o que indiretamente acarretaria no bem-estar coletivo. A partir

37 Entendia-se que se cada indivíduo agisse em seu próprio interesse econômico, quando atuasse junto a

uma coletividade de indivíduos, maximizar-se-ia o bem-estar coletivo, ou seja, “é a ‘mão invisível’ do mercado livre que regula as relações econômicas e sociais e produz o bem comum” (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p. 56).

38 Adam Smith pensava em um Estado com apenas três funções: a defesa contra os inimigos externos; a

proteção a todo indivíduo de ofensas dirigidas por outros indivíduos; e o provimento de obras públicas que não pudessem ser executados pela iniciativa privada (BOBBIO, 2004).

deste referencial teórico39 e dos valores morais da época, defendia-se que não fossem despendidos gastos do Estado com os pobres, em atendimento às necessidades sociais, devendo a pobreza ser minorada pela caridade privada, evitando-se o estabelecimento de uma relação de dependência e acomodação. Apenas aos segmentos que não possuíssem condições de competir no mercado de trabalho (crianças, idosos e deficientes) caberia a assistência mínima do Estado, como um paliativo.

Com relação aos salários, compreendia-se que não poderiam ser regulamentados, pois interviria no preço do trabalho, que deveria ser definido e manter-se equilibrado unicamente através da oferta e procura no âmbito do mercado. Deste modo, de maneira geral essa orientação:

[...] elege o mercado como locus referencial para o estabelecimento da dinâmica societária. Assim, cabe ao Estado a função de árbitro, legislando sobre as funções pertinentes à garantia e à segurança da nação, tais como: a defesa contra os inimigos externos, a proteção de todo indivíduo e o provimento de obras públicas, que, pela particularidade econômica, não comportariam ser executadas pela iniciativa privada (PERUZZO, 2007, p. 290-291).

No entanto, conforme explicitado anteriormente, a força de trabalho passa a se organizar na segunda metade do século XIX, a fim de reagir à exploração, período em que “[...] a luta de classes irrompe contundente em todas as suas formas, expondo a questão social: a luta dos trabalhadores com greves e manifestações em torno da jornada de trabalho e também sobre o valor da força de trabalho” (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p.54). Já as estratégias burguesas para responder às reivindicações “[...] vão desde a requisição da repressão direta pelo Estado, até concessões formais pontuais na forma das legislações fabris” (BEHRING, BOSCHETTI, 2007, p.54).

Sob esse aspecto, situa-se a emergência da pobreza como questão social enquanto “[...] parte do processo mais geral de desenvolvimento capitalista, no qual as relações sociais e econômicas foram duramente afetadas pelos processos de industrialização e urbanização, rompendo com as relações tradicionais de autoridade e de solidariedade, [...] dando lugar a processos de constituição de novas classes e atores coletivos em uma nova ordem social e política” (FLEURY, 1994, p. 63-64). A partir de

39 Compreende-se que a modesta intervenção estatal na garantia de direitos sociais não emana de uma

natureza pré-definida do Estado, mas foi criada e defendida deliberadamente pelos liberais, em um movimento de disputa política.

então, são criadas novas demandas sociais e diferentes padrões de incorporação das mesmas pelos Estados Nacionais.

Diante de tal conjuntura o Estado, por meio de sua intervenção, reprime as reivindicações e manifestações dos trabalhadores, período em que inicia-se a regulamentação das relações de produção, através da legislação fabril. São, portanto, as lutas em torno da jornada de trabalho que passam a ser tratadas no âmbito do direito formal, que conformam as primeiras expressões da questão social.

Cabe destacar que uma das características centrais das respostas dadas à questão social pelo Estado sob orientação liberal é que:

[...] não se admite o conceito de direitos sociais, ou seja, o direito de ter acesso aos bens sociais pelo simples fato de ser membro da sociedade, e a obrigação desta última de garanti-los através do Estado. O ponto de vista liberal é, ao contrário, que ao gozo dos benefícios

deve corresponder uma contrapartida: o desempenho de trabalho ou o seu pagamento (LAURELL, 2002, p. 155, grifos nossos).

Assim, com a adoção dos princípios liberais pelo Estado, a resposta dada à questão social no final do século XIX foi, sobretudo, repressiva, incorporando poucas demandas da classe trabalhadora, que estabeleciam apenas melhorias parciais nas condições de vida dos trabalhadores, inviabilizando-se as possibilidades de expansão das ações e o reconhecimento dos direitos sociais.

Essa prolongada luta de classes permaneceu ainda mais acirrada em finais do século XIX e na passagem ao século XX, período marcado pela pressão desenvolvida pelo operariado pelo reconhecimento dos direitos sociais e pela resistência burguesa em concedê-los.

No que se refere aos aspectos econômicos, pode-se considerar que nas décadas iniciais do período marcado pela hegemonia do pensamento liberal, a economia mundial teve um acelerado progresso técnico e um contínuo, porém irregular, crescimento econômico, atrelado ao estabelecimento da divisão mundial do trabalho e de uma rede de fluxos e intercâmbios globais (HOBSBAWM, 1995). Assim, o capitalismo expandiu- se pelo mundo. Porém, ao mesmo tempo e pela primeira vez na história, “[...] a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas” (NETTO, 2001, p.42).

A pobreza passava a se tornar uma ameaça real às instituições sociais existentes, passando o Estado a ser utilizado pelas classes dominantes para administrá-la, no sentido de amenizar seus efeitos, reprimindo as reivindicações e os protestos. Acerca dos efeitos causados pela forma de organização da proteção social no Estado liberal, tem-se que “[...] de um lado, constitui um mecanismo que disciplina os trabalhadores, pois condiciona a proteção social à contribuição salarial. Por outro, provoca importantes desigualdades sociais e de consumo” (LAURELL, 2002, p. 156).

Assim, embora a ação do Estado cumprisse nesse período uma função essencial ao desenvolvimento do capitalismo ao reduzir – mesmo que minimamente – os efeitos da pobreza, a sua forma de intervenção baseada no livre jogo da concorrência e no desenvolvimento das capacidades e habilidades individuais, não foi suficiente para se evitar a crise econômica de 1929, abalando internacionalmente a crença nos mecanismos de mercado40 para a construção de instituições sociais e políticas.

Com relação às transformações operadas nesta fase de monopolização intensa do capital destaca-se a concentração de capital nas mãos de poucos capitalistas, o aumento de produtividade na busca por ampliar constantemente a lucratividade, assim como, aspectos conjunturais complexos, especialmente pela crise ter eclodido no primeiro pós- guerra (PAIVA; OURIQUES, 2006).

A crise de 1929 pode ser caracterizada como “[...] uma crise de superprodução e, portanto, uma ameaça de asfixiamento do sistema que não consegue realizar as mercadorias produzidas” (FRIGOTTO, 1996, p.70). Essa crise determinou novas estratégias para o seu enfrentamento, dentre as quais a reorganização dos processos produtivos e de gestão do trabalho e, também, o intervencionismo do Estado na economia e sociedade.

Cabe destacar que dentre as “reações” diante desta crise encontram-se dois paradigmas: o capitalista, pela via da social-democracia, assim como, a experiência socialista41, as quais se afirmam como dois diferentes modelos de desenvolvimento e de projetos societários, que passaram a disputar espaços no cenário mundial (ROTTA, 2007).

40 “As experiências históricas demonstraram que o mercado acabou se constituindo num padrão

‘anárquico’, ‘subversivo’, ‘revolucionário’, e ‘desorganizador’ dos arranjos sociais. [...] Percebeu-se que o liberalismo ameaçava as estruturas da sociedade como um todo e não apenas os interesses econômicos de classe” (ROTTA, 2007, p. 333).

41 Acerca da implantação do “socialismo real” na Rússia, suas características, organização, expectativas e

Com relação às experiências de “reforma” do capitalismo, pela via da social- democracia basearam-se na necessidade de planejamento da economia e da vida em sociedade, a fim de evitar as crises do livre jogo das forças de mercado (HOBSBAWM, 1995). Ou seja, buscava-se superar os problemas apresentados pelo mercado, aliando resultado econômico à liberdade individual.

Tornava-se necessário, pois, de um lado, atender às pressões dos trabalhadores por direitos sociais e, por outro, garantir os patamares de acumulação do capital, indo ao encontro das necessidades da burguesia (ROTTA, 2007).

Diante disso, no decorrer das primeiras décadas do século XX, a fundamentação teórica de recorte liberal passou a não dar conta da compreensão das transformações sociais, tendo em vista o processo sócio-histórico em curso que, somados aos aspectos políticos e econômicos decorrentes da I Guerra Mundial, trouxeram à tona o questionamento da tese liberal, a partir de um novo referencial teórico, o Keynesiano. No próximo item, abordar-se-á as transformações operadas com a liderança deste referencial, assim como as modificações na esfera da produção e das novas atribuições do Estado, com especial ênfase aos aspectos sociais.

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