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Capítulo 3 A escola, os alunos e os textos: considerações sobre o contexto particular de

3. Visão geral do corpus: relação com as instruções, construções recorrentes do destinador e

3.3. Construção recorrente do destinador

No que diz respeito ao destinador, percebemos uma preferência pela 1ª pessoa do singular associada à 1ª do plural, ou pelo uso apenas da 1ª pessoa do singular. Alguns destinadores incluem-se entre as pessoas afetadas pelos problemas, mas se diferenciam como aqueles que, se dotados de um poder fazer (figurativizado como a verba), serão capazes de resolver o problema. A maioria, no entanto, não se inclui entre as vítimas, colocando-se como aqueles, que, sozinhos ou com sua equipe, agirão para resolver os problemas que afligem a cidade, desde que recebam a verba.

No texto 42, a aluna Denise (8º ano) emprega uma estratégia interessante: coloca o narrador em 1ª pessoa do singular para destacar o que ele vai fazer, e, ao discorrer sobre os responsáveis pelos problemas da cidade, usa a 1ª pessoa do plural; ou seja, quando fala dos pontos positivos, usa “eu”, e para tratar dos pontos negativos, usa “nós”, incluindo o prefeito (interlocutor):

14) “Olá querido prefeito como secretario da saúde fiquei sabendo que o senhor recebeu uma

quantia de dinheiro para envestir em aguma coisa, então senhor prefeito gostaria de lhe enformar que aque na Santa Brasilândia só temos 1 hospital e temos muitas pessoas com suspeita de dengue, temos um número de população e ela está crescendo cada vez mais e do jeito que está não está nada bem, preciso de dinheiro para construir hospais, com esse hospital vou conseguir ajudar muitas pessoas que precisa da nossa ajuda, essas pessoas estão muitos preucupadas com seus filhos doentes, idosos com dengue e por isso preciso desse dinheiro pelo menos eu te garanto que esse dinheiro será bem emvestido”(red.42, Denise, 8ºano)

O destinador é introduzido pela expressão “como secretario da saúde”, e depois sempre retomado por elipses dos pronomes de primeira pessoa do singular ou do plural. Em alguns textos, a 1ª pessoa do singular é utilizada apenas para pedir a verba ou definir as responsabilidades específicas do destinador, como construir algo a partir da verba recebida. Já as necessidades são descritas a partir da 1ª pessoa do plural, pois são demandas de toda a população. Neste texto, o destinador inicia seu discurso com a 1ª pessoa do singular para indicar por que sabe sobre a verba e informar o prefeito sobre alguns problemas na área da saúde. É perfeitamente compreensível a escolha do enunciador, afinal, nem todos precisam saber sobre a verba suplementar, e é natural que caiba ao secretário informar o prefeito. Em seguida, ele passa a usar a 1ª pessoa do plural para descrever alguns fatos relacionados à saúde: “temos 1

119 hospital e temos muitas pessoas com suspeita de dengue, temos um número de população e ela está crescendo cada vez mais e do jeito que está não está nada bem”. De fato, não é ele quem “tem” tais problemas sociais (uso conotativo do verbo “ter”), mas toda a gestão pública; trata- se de uma estratégia de preservação da face, em que o destinador não se coloca como o único responsável pelos problemas, incluindo também o prefeito. Na verdade, o “nós” utilizado em muitos textos é um tanto quanto impreciso, podendo ora incluir prefeito e secretário, ora secretário e sua equipe, ora prefeito, secretário e população. Esse “ter” está usado no sentido de “haver”, assim, a aluna poderia ter escrito “há apenas 1 hospital....há muitas pessoas com suspeita de dengue...” , o que deixaria o texto mais impessoal e preservaria não só sua face, mas também a do prefeito. Contudo, ela preferiu pontuar a responsabilidade compartilhada pelos problemas, ao invés de construí-los discursivamente como se não tivessem culpados, simplesmente acontecessem, o que é uma estratégia argumentativa.

Por fim, o destinador volta a ser construído como 1ª pessoa do singular, para indicar que é ele quem precisa do dinheiro para construir hospitais, que ele garante o bom investimento, e que é ele quem, com os hospitais, ajudará as pessoas que precisam de ajuda, no entanto, para dizer isso, ele diz “vou conseguir ajudar muitas pessoas que precisa da nossa ajuda”, o que pode não ser uma boa estratégia argumentativa, pois ele sozinho se coloca como o responsável por ajudar quem precisa da gestão municipal. Já que ele indicou a gestão como responsável, junto com ele, pelos problemas, seria mais persuasivo indicá-la como responsável, junto com ele, pela solução e pela “ajuda” prestada. Assim, seria mais persuasivo se ela tivesse escrito: “preciso de dinheiro para construir hospais, com esse hospital vamos conseguir ajudar muitas pessoas que precisa da nossa ajuda”.

É nesse sentido que talvez possamos apontar um erro de estratégia argumentativa ou um problema na construção do enunciador, e não apenas apontar como erro a utilização de dois focos narrativos em um texto, como prescrevem manuais de redação, afinal, em se tratando de texto, não é possível ditar regras de antemão, sendo necessário analisar cada caso em seu próprio contexto. Esse uso revela, então, um deslize em que possivelmente a aluna não refletiu sobre a forma empregada e seu prejuízo para a argumentação e a preservação das faces, como vinha fazendo até então.

Uma parcela menor dos alunos construiu os enunciadores a partir da 3ª pessoa do singular, trazendo objetividade ao texto ao retirar as marcas do sujeito que fala. O texto 15, da aluna Ana Lopes (6º ano) e também o 93, do Bernardo (9º ano) usam esse recurso para gerar impessoalidade em apenas um momento. No 1º caso, o objetivo é afastar o enunciador de quem

120 receberá o dinheiro, assim, a aluna escreve: “gostaria que tu mandaste o dinheiro para a construção de uma delegacia especializada” e, mais adiante, “Se tu deres o dinheiro para a secretária de segurança”. Se ela tivesse escrito “gostaria que tu mandaste o dinheiro para mim”, criaria um efeito de sentido de proximidade, mas ela quer criar um efeito de distanciamento especificamente no que diz respeito ao dinheiro, por isso também não diz “para eu construir”, mas “para a construção”. O efeito de distanciamento dá-se apenas neste ponto, pois, no restante do texto, ela procura criar um tom até de intimidade com o prefeito, chamando-o de “queridíssimo prefeito” e usando a 1ª pessoa do singular:

15) Queridíssimo Prefeito,

Sou uma secretária da segurança, e gostaria que tu mandaste o dinheiro para a construção de uma delegacia especializada em organizações e precisamos de policiais especializados. Como tu já deves saber, os jovens de Santa Brasilândia têm sido recrutados. E meu filho foi um deles. Graças a os criminosos. Se tu deres o dinheiro para a secretária de segurança, podemos beneficiar as outras secretarias de varias formas.

Éres a única esperança dos jovens desta humilde cidade. Obrigada por tudo,

Ana Lopes. (red.15, Ana Lopes, 6ºano)

No texto 93, o efeito de impessoalidade é usado para reforçar o papel social de quem está sendo prejudicado com a precariedade da segurança: a população, portanto, uma coletividade, não o enunciador, um indivíduo. Assim, o aluno inicia seu texto com a 1ª pessoa do plural, mas em determinado momento não diz “nós”, mas “a população de Santa Brasilândia”:

16) “Senhor Prefeito Exigimos Eta verba para a construção de delegacias especializadas para

combate à organizações criminosas e contratação de policiais pois o índice de crimiosidade está aumentando a cada dia, e está prejudicando a população de Santa Brasilândia” (red.93, Bernardo, 9ºano)

Há ainda textos em que o destinador não é explicitado textualmente, como veremos no próximo capítulo.

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3.4. Temas recorrentes

Como vimos na proposta de redação, os alunos deveriam escolher qual secretário municipal gostariam de simular ser, podendo optar por umas das seguintes áreas: transportes, habitação, educação, segurança e saúde. A tabela a seguir mostra a distribuição de escolhas por ano:

Tabela 8 – Escolha dos temas de redação

6º ano 7º ano 8º ano 9º ano Total

Saúde 14 3 13 12 42 Segurança 7 2 7 5 21 Educação 2 7 7 3 19 Transportes 2 1 1 5 9 Habitação 1 0 2 5 8 Fuga do tema21 1 1 1 1 4

Vemos que a maioria dos alunos escolheu a área da saúde (40,77%), seguida por segurança (20,38%) e educação (18,44%). Transportes e habitação foram as áreas menos escolhidas (8,73% e 7,76%, respectivamente). O grande número de alunos que escolheu defender o investimento para a área da saúde pode refletir uma das grandes preocupações dos brasileiros no ano de 2015: segundo pesquisa realizada pelo Ibope22, a “melhoria nos serviços de saúde” estava em 1º lugar no ranking de ações que deveriam, na opinião da população, ser priorizadas pelo governo no ano seguinte. A 2ª medida considerada prioritária era “combater a violência e a criminalidade”, o que também se verifica em nosso corpus, em que a segurança foi a segunda área mais escolhida pelos alunos. “Melhorar a qualidade da educação” ocupava, em 2015, a 5ª posição no ranking (em 2014, a 3ª), enquanto “ampliar os programas de educação/moradia popular” ficou em 12º lugar, e “aumentar o investimento em estradas e rodovias”, em 16º.

Vemos, portanto, que as escolhas dos alunos coincidem com a preocupação da população em geral, o que pode indicar que, longe de uma alienação em relação aos problemas sociais, os alunos demonstram uma conexão com as preocupações dos cidadãos e, em termos

21 Indicamos como “fuga do tema” os casos de redações em que o aluno escolheu todas as áreas ou não a indicou e não foi possível descobrir.

22http://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/cresce-preocupacao-dos-brasileiros-com-o- desemprego/.

122 gerais, com o modo como eles procuram reivindicar soluções, como vimos no tipo de argumentação mobilizada por eles, o que será ainda melhor desenvolvido no capítulo que segue.

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Capítulo 4 - Referenciação e argumentação no Ensino Fundamental II: análise de textos

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