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Capítulo 3 A escola, os alunos e os textos: considerações sobre o contexto particular de

3. Visão geral do corpus: relação com as instruções, construções recorrentes do destinador e

3.2. Construção recorrente do destinatário

Na maior parte dos textos, os destinatários são construídos discursivamente como heróis, espécies de salvadores capazes de resolver o caos instaurado na cidade. No trecho abaixo, isso fica evidente:

8) Éres a única esperança dos jovens desta humilde cidade.

Obrigada por tudo (red. 15, Ana Lopes, 6ºano)

Fiorin (2015), retomando conceitos da semiótica de linha francesa, explica que esse tipo de construção indica uma manipulação segundo as modalidades do saber, em que o destinador sabe fazer com que o destinatário queira fazer, o que constitui a estratégia de manipulação denominada sedução. Trata-se da associação de imagens positivas àquele que se deseja convencer, de tal modo que, se ele não realizar o que lhe é proposto, nega os valores a ele atribuídos, como quando uma mãe que diz ao filho pequeno, querendo que ele coma tudo: “Pus essa comida no seu prato porque você é grande e é capaz de comer tudo" (FIORIN, 2008:30). Do mesmo modo, o destinador, no exemplo 8, ao categorizar o destinatário como a “única esperança dos jovens desta humilde cidade”, vincula-o a valores extremamente positivos: o único capaz de resolver o problema, sendo que este problema é grave e afeta os jovens, população mais vulnerável, e, como se não bastasse, estes jovens pertencem a uma cidade também vulnerável, classificada como humilde. O destinatário é, assim, elevado à condição de herói, sendo a personificação da esperança. Se ele não fizer o que orienta o destinador, negará esta imagem positiva a ele relacionada, desconstruindo-a, provando-a mentirosa.

Este destinador reconhece que, se sua secretaria receber o dinheiro, as outras não o receberão, e, de modo astuto, antevendo aí uma possível maneira de o destinatário desvencilhar- se de sua sedução, propõe um modo de amenizar esta polêmica, afirmando que o investimento em sua área beneficiará todas as outras também:

9) Se tu deres o dinheiro para a secretária de segurança, podemos beneficiar as outras

secretarias de varias formas (red.15, Ana Lopes, 6ºano).

Essa estratégia foi verificada, no entanto, em poucos textos, embora fosse sugerida na proposta de redação; em geral, o enunciador não se refere ao caráter polêmico da situação, o

115 que pode ser um ponto frágil em sua argumentação. Ele não tenta prever uma possível resposta em que o destinatário afirme reconhecer todos os problemas apontados, mas considere que há situações ainda mais urgentes a serem resolvidas.

Em poucos textos, encontramos um destinatário que é intimidado pelo destinador:

10) prefeito voce poderia mandar dinhero pra jente porque nois tamos pasando nesesidade eu

vo espera um poco mais que voce não mandar voce vai ve com migo por que eu quero dar educação pra todos por que ele merese em tam voce manda muito o brigado e foi prais criansa brigado espero que mande (red.31, Juliana, 7ºano)

11) Senhor Prefeito Exigimos Eta verba para a construção de delegacias especializadas para

combate à organizações criminosas e contratação de policiais (red.93, Bernardo, 9ºano)

No fragmento 10, o destinador intimida explicitamente o destinatário com uma expressão idiomática informal tradicionalmente usada para ameaças: “Você vai se ver comigo”. No entanto, não há uma definição do que será feito efetivamente caso o contrato não se efetue, e a leitura completa do texto revela que o enunciador não desenvolve a intimidação. No fragmento do texto 11 (redação 93), a ameaça é mais indireta, e pode ser pressuposta pelo uso da forma verbal “exigir”, haja vista que ela nunca é usada em situações de subserviência; ao contrário, marca um sujeito que detém algum poder, condição para que possa exigir algo. Nesse contexto, o destinatário é colocado em posição de dever fazer o que se exige, não importando sua vontade. Essa configuração caracteriza a estratégia de intimidação, em que o destinador pode fazer o destinatário dever fazer, a partir de uma ameaça:

Na tentação e na intimidação, o manipulador mostra poder e propõe ao manipulado, para que ele faça o esperado, objetos de valor cultural, respectivamente positivo (dinheiro, presentes, vantagens) e negativo (ameaças) (BARROS, 2001: 38).

Encontramos também quatro textos em que os destinatários foram tentados, como no caso abaixo:

12)“Mas se o senhor mandar concertar isso vai ter mais impostos para cidade e para o senhor.

E também resutaria em uma gratidao da população trazendo mais votos para o senhor”. (Henrique, 9, red.4)

116 No trecho acima, o destinador destaca as vantagens que o destinatário terá caso faça o que se pede: impostos, gratidão e votos. Quem tem poder para oferecer tudo isso ao destinatário não é o destinador propriamente dito, mas a população da cidade. Quando o sujeito manipulador pode fazer com que o manipulado queira fazer algo, oferecendo uma recompensa, tem-se a tentação.

Por fim, encontramos uma provocação, que ocorre quando o destinador sabe fazer com que o manipulado deva fazer algo. Contrariamente à sedução, trata-se da associação de imagens negativas àquele que se deseja convencer, de tal modo que se ele não realizar o que lhe é proposto, confirma os valores indesejados a ele atribuídos. Seguindo o mesmo contexto do exemplo anterior, a mãe provocadora diria: “Pus essa comida no seu prato, mas eu sei que, como você é pequeno, não consegue comer o que está aí” (FIORIN, 2008:30).

13) “Prefeito escute o meu pedido está habitação de que eu estou falando precisa muito, muito

desce dinheiro, e não jogue essa carta no lixo porque si não está ignorando pessoas igual a você!” (red.70, Edgar, 8ºano)

O enunciador associa uma imagem negativa ao enunciatário, ao pressupor que ele seja capaz de jogar a carta fora, e, se de fato ele o fizer, confirmará tal imagem. Antevendo essa situação, o enunciador associa mais uma imagem negativa ao enunciatário: a de um egoísta. Entretanto, se ele não der a verba, ou seja, se ainda não fizer o que lhe pede o enunciador, pode desvencilhar-se da manipulação respondendo que leu a carta, que não a ignorou, mas que não pode atender ao pedido. Para ser uma provocação mais prototípica, o enunciador precisaria dizer: “se você não repassar a verba estará ignorando pessoas iguais a você”. Casos assim poderiam ser problematizados pelo professor em sala de aula, em uma eventual reescrita coletiva do texto, por exemplo.

A predominância da estratégia da sedução como única ou principal estratégia de manipulação (51 textos) revela destinadores que não se constroem como sujeitos de poder, e tampouco constroem o destinatário (figurativizado como prefeito) como um sujeito de dever, uma vez que a sedução se caracteriza por um saber fazer o outro querer fazer. Em 36 textos, a sedução aparece articulada à tentação: o destinador promete benfeitorias (tentação), mas ele ainda não tem o poder para realizar tais ações prometidas, e ter poder é uma exigência para a realização da tentação; contudo, ele terá o poder assim que receber o dinheiro. Assim, temos um destinador desprovido de poder, que procura convencer o destinatário a querer lhe dar o

117 poder (verba), pois, com este poder, ele será capaz de oferecer vantagens do interesse do destinatário. De todo modo, o destinatário agirá sempre pelo querer, nunca pelo dever. Vários utilizam a forma “por favor”, e pedem “ajuda”, reforçando essa imagem do prefeito como aquele que detém o poder de resolver.

As redações 93 (9º ano, exemplo11deste capítulo), onde vemos o uso do termo “exigir” referindo-se à verba da prefeitura, e 82 (9º ano), em que encontramos o verbo “dever” (“Seu prefeito você deve mandar esse dinheiro para a saúde”), são exceções em nosso corpus. Em geral, conforme dito, os alunos preferem construir enunciadores que sabem (mas não podem) fazer o outro querer (e não dever) fazer algo. No próximo item, estudaremos mais detidamente essa construção discursiva, e, no próximo capítulo, como as estratégias referenciais constroem estes efeitos de sentido.

Podemos nos questionar, ainda, por que a maior parte dos alunos opta por essa argumentação baseada fundamentalmente no pedido por ajuda, em que o destinador, desprovido de qualquer poder, só pode suplicar a misericórdia de um herói. Isso pode refletir práticas comuns no cotidiano das crianças, que muitas vezes manipulam seus pais por meio da estratégia da sedução, já que ela não envolve um “poder” por parte do enunciador, mas um saber fazer o outro querer fazer. Além disso, essa estratégia pode refletir um modo tradicional de muitos brasileiros relacionarem-se com a política, expressando uma expectativa de uma ação paternalista por parte do representante político, ainda que pesquisas recentes tenham mostrado que esse tipo de relação tem diminuído em função do fortalecimento da sociedade civil (cf. ANDRADE e SANTOS, 2015) e do inconformismo político de parte dos cidadãos (cf. CASTRO, 2015). Na posição de secretário, o enunciador fictício dos textos, seria pertinente o uso de estratégias argumentativas vinculadas ao dever do prefeito e ao poder dos cidadãos, as quais foram, contudo, pouco utilizadas pelos alunos. A informação contextual de que não havia, à época da pesquisa, nenhum tipo de organização estudantil na escola, de modo que os estudantes ou não faziam suas demandas, ou as faziam oralmente e de modos não institucionalizados para alguns professores, pode reforçar, na escola, essa relação mais submissa que muitas vezes o cidadão que não ocupa uma posição de poder tem com quem a ocupa. Talvez, se esses alunos participassem mais da organização escolar, tendo algum espaço oficial para discussão, suas práticas argumentativas fossem diferentes.

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