• Nenhum resultado encontrado

1. A gênese do Problema e as Minhas Inquietações

1.2 Uma perspectiva das dimensões simbólica e espiritual humanas

1.2.1 A construção do universo simbólico

Ernst Cassirer, na sua obra Antropologia Filosófica, diz que a clave que designa a natureza humana é o símbolo. Cassirer diz que há uma necessidade de uma revisão crítica de muitos princípios científicos que versam sobre o humano. Por exemplo, os esquemas adotados não são apenas diversos entre as ciências, são também em muitos casos contraditórios. Existe uma diferença enorme entre o orgânico e o inorgânico, só para citar. Em razão disso, é preciso um novo esquema geral de investigação, adequado a esses casos. “A vida é uma realidade última e que depende de si mesma; não pode ser descrita ou explicada em termos da física ou da química”. (CASSIRER, 2003, p. 45).

Von Uexküill chega, pelos princípios empíricos, que é ingênuo supor que existe uma realidade absoluta de coisas que tenham validade para todos os seres viventes. “A realidade não é uma coisa única e homogênea; é, ao contrário, imensamente diversificada, possuindo tantos esquemas e padrões diferentes quantos diferentes organismos existam” (UEXKÜILL apud CASSIRER, loc. cit.). Cada organismo tem um universo próprio e uma “experiência” peculiar e intransferível de espécie para espécie.

Os organismos carregam algo de mais amplo do que revelam os olhares pontuais e menos profundos. Dizer que os organismos são resultados de uma adaptação não passa de um sentido vago, mas certamente eles estão internamente coordenados com o seu ambiente. O organismo não tem condições de sobreviver sem essa cooperação com o meio no qual está inscrito. As leis biológicas governam a vida, pelo menos é o que parece para alguns. Do mesmo modo, o homem e a mulher estão sujeitos a essas leis. Entretanto, o ser humano apresenta uma característica nova, uma “marca distintiva” que parece diferenciá-lo de outros viventes. “Seu círculo funcional não somente tem-se ampliado quantitativamente, mas também tem sofrido mudança qualitativa” (ibid., p. 47). O ser humano tem um modo sem igual de lidar com o ambiente no qual está inserido. Os seus sistemas receptor e efetor, altamente desenvolvidos - outros animais também o tem de modo rudimentar-, lhes possibilitaram a criação de um universo simbólico refinado, de altíssima complexidade. Comparado a outros viventes, o ser humano tem uma realidade incomparavelmente ampliada. É capaz de raciocinar com tamanha complexidade, como fazer reflexão. Para Teilhard de Chardin, na sua obra O Fenômeno Humano, o ser humano é totalmente “outro” em relação aos demais viventes:

O animal sabe. Mas, certamente, ele não sabe que sabe: de outro modo, teria há muito multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas. Conseqüentemente, permanece fechado para ele todo um domínio do Real, no qual nos movemos. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas

outros. Não só simples mudança de grau, mas mudança de natureza, que resulta de uma mudança de estado. (CHARDIN, 1970, p. 187).

Cassirer (2003), fazendo a mesma comparação, fala que existem muitas diferenças entre as reações orgânicas e as respostas dos seres humanos. Em relação aos animais, estes têm uma resposta concreta, direta e imediata em relação aos apelos externos. O ser humano, por sua vez, tem suas respostas, na maioria das vezes, demorada. Isso porque suas respostas são muitas vezes interrompidas e retardadas. O homem não tece seu desenvolvimento de forma regular: em alguns momentos avança e em outros retrocede, em outros parece paralisado e assim por diante. A utilização de sua complexa capacidade de pensar é uma das explicações para que suas respostas sejam lentas. O processo lento do pensamento parece, em primeiro plano, uma vantagem ambígua. Essa capacidade humana pode ser usada tanto para garantir sua existência complexa como para sua autodestruição. J. J. Rousseau, citado em Cassirer, disse que o humano se corrompe, é um animal depravado. A sua capacidade de ultrapassar os limites orgânicos, ir além dos limites de outros viventes, pode representar não apenas vantagens, mas, também, sua própria deterioração. Ele complementa:

O homem não pode escapar de seu próprio logro, não pode escolher outro remédio que não o de adotar as condições de sua própria vida; já não vive somente em um puro universo físico senão em universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião constituem partes deste universo, formam os diversos fios que tecem a rede simbólica, a urdidura, o conjunto de fios tecidos da experiência humana. Todo progresso em pensamento e experiência confirma e reforçam esta rede. (CASSIRER, 2003, p. 47).

A complexidade humana não permite a redução do universo simbólico a uma simples relação entre o biológico e o simbólico. As relações humanas, sejam elas quais forem, são complexas. Não é possível reduzir o homem ao universo simbólico e, do mesmo modo, não podemos reduzi-lo à esfera biológica. O universo simbólico não é tangível. Serve a um só tempo de cenário no qual o ser humano interage com todas as esferas nas quais está inserido, consigo mesmo e com os outros. Neste universo do

abstrato são criados símbolos, são conferidas ao homem as capacidades de atribuir o significado e o sentido pertinentes para quase tudo. O indivíduo é, então, sujeito biológico, genético, mas também simbólico, mas não apenas isso. O ser humano não é produto de uma somatória de dimensões, mesmo porque num feixe complexo de relações surgem novas qualidades. Qualidades que, além das que aparecem, outras podem muito bem estar virtualizadas (como potência) ou ocultadas, que não emergiriam sem esse feixe complexo de relações.

A realidade simbólica humana, portanto, não deve ser negada e diminuída. Negá- la ou diminuí-la é desumanizar o homem. Este universo simbólico é uma construção legítima e parte integrante da totalidade do ser humano, sem a qual comprometeria sua própria humanidade. Diferente dos animais o homem não pode arrostar a realidade “face à face” de modo imediato. “A realidade física parece retroceder na mesma proporção que avança sua atividade simbólica” (ibid., p. 48). O homem caminha para dentro e para fora de si. Ao tratar consigo ou com o mundo, se envereda pelas formas lingüísticas, concebe imagens, sinais, símbolos míticos e místicos, entretanto, “não pode ver ou conhecer nada senão através da interposição deste meio artificial” (loc. cit.). Esta situação não muda, em se falando da esfera teoria ou prática. A tecedura da vida humana ocorre entre emoções, esperanças, contemplações e recolhimentos, sonhos, fantasias, amor, ódio, ilusões e desilusões e cria um espectro de imagens no qual desenvolve sua existência.

Cassirer propõe, mais que uma redefinição, uma correção e ampliação da definição clássica de homem. A despeito dos irracionalismos tão propalados em nosso tempo, cabe ainda a definição de homem como ser racional. “A racionalidade é um acontecimento inerente a todas as atividades humanas” (ibid., p. 48). Esta racionalidade é encontrada nos mitos, no âmago das superstições e das grandes ilusões. Em relação à mitologia, por exemplo, (loc, cit.) “não é uma massa bruta de superstições ou de

grandes ilusões, não é puramente caótica, pois possui uma forma sistemática ou conceitual”. O engano ou o equívoco humano não é puramente um caos, pois mesmo aí aparecem formas organizadas de pensar. Não se pode ignorar, no entanto, que é impossível garantir à estrutura do mito o status de racionalidade. A linguagem, que dá embasamento ao diálogo do homem consigo e com o mundo, tem sido compreendida, em muitos casos, como tendo fisionomia racional ou surge mesmo a partir das fontes da razão, mesmo que essa definição não alcance todo o campo da existência humana. Na linguagem, de maneira geral, toma-se a parte pelo todo. Entretanto, junto com a linguagem conceitual, temos outros tipos, como a das emoções, a poética, a do recolhimento e a da adoração.

Em princípio, segundo Cassirer, a linguagem não expressa simplesmente pensamentos ou idéias, mas principalmente sentimentos e emoções. Se concebermos uma religião, por exemplo, apenas na esfera da racionalidade, como propôs Kant, essa religião não passa de pura abstração. Esse tipo de religião formada a partir de abstrações, existe apenas como forma ideal, mas apenas como sombra de uma religiosidade genuína, daquela que acontece na vida concreta das pessoas. Desse modo, a razão é “um termo verdadeiramente inadequado para abarcar as formas da vida cultural humana em toda sua riqueza e diversidade, todavia todas essas formas são formas simbólicas” (CASSIRER, 2003, p. 49). Em sendo assim, definir o ser humano como animal racional não é suficiente. O homem também é um animal simbólico. Somente quando discernimos as suas características singulares é que passamos a compreender a vocação complexa que se apresenta ao homem e a mulher, como seres simbólicos e espirituais que são.