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O desencantamento na sociedade moderna: o que falta?

1. A gênese do Problema e as Minhas Inquietações

2.1 O desencantamento na sociedade moderna: o que falta?

O ser humano, por reprimir dimensões de si da maior importância, como suas necessidades especificamente espirituais e religiosas, entre outras, padece de uma certa ambivalência. As experiências de Pavlov com animais sinalizaram uma neurose própria do estado de indecisão. Este estado de indecisão, que marcou a sociedade moderna, afetou profundamente as pessoas. A indecisão gera titubeios e ambivalências. Questões fundamentais são reprimidas por várias instâncias da sociedade, inclusive pela ciência, que acabam por produzir obsessões e ilusões ou desencantos. Para o psiquiatra suíço, Paul Tournier, no seu livro Mitos e Neuroses: desarmonia da vida moderna, a maioria dos cientistas, hoje, se omite em relação aos problemas que afetam as pessoas por dentro, como aqueles “sobre a sede de amor que o ser humano sente” (TOURNIER, 2002, p. 22). A omissão acontece também em relação à solidão moral, à angústia diante da morte, ao mistério do mal e mesmo sobre reclamos profundo da alma, como sobre o mistério de Deus. Mas, surge a seguinte pergunta: os referidos problemas deveriam fazer parte do elenco de problemas científicos? Certamente esta não é uma questão fácil de se responder.

Sem querer retomar as discussões das fronteiras das ciências, o que tem e o que não tem status científico, devemos buscar uma forma de abraçar temas de tamanha relevância como os já citados. Ora, esses problemas são relevantes socialmente, mas dificilmente fariam parte das preocupações científicas. O que é relevante para a sociedade deveria ser relevante para a ciência, pelo menos deveria ser assim. Mas as coisas de fato não acontecem assim. São temas, talvez, gerais e abstratos demais para serem transformados em objetos da ciência. Nesse caso, o impasse continua. O que a sociedade carece nem sempre fará parte estrita das ocupações científicas. Em outros termos, os problemas científicos não necessariamente são os problemas estritamente da

sociedade e vice-versa. Somando-se a isso, temos um agravante, a ciência não é uma instância isolada da sociedade, ela existe principalmente em função da própria sociedade. Pelo menos deveria ser assim.

Tournier (2002) vale-se de reconhecidos filósofos e cientistas para fortalecer suas idéias. Pascal, por exemplo, já no século XVII, falava sobre o homem coletivo, que esqueceu sua infância e critérios morais de convivência societais, preferiu a razão, como metro e balança da vida. O que fez esse homem foi “lançar fora do campo da sua consciência os conceitos de beleza, de bem, de justiça, e a necessidade de comunicar-se com o seu Criador” (ibid., p. 23). E. Maeder diz que “Sabemos agora que não existe apenas a repressão do instinto, mas também a do ideal, a da consciência” (ibid., p. 24). Outra situação de resistência teimosa e difusa no meio científico é o fato de que a ciência imagina ter superado não apenas a religião ou religiosidade, mas tudo o que pode evocar a espiritualidade humana. Isso não escapou ao seguinte comentário:

Como se explica então que a ciência, que tem estudado tão minuciosamente o homem, tenha permanecido cega por tantos séculos a fenômenos tão capitais? É, que na verdade, desde Descartes a ciência impôs a si mesma um preconceito absoluto: deixou de levar em conta as realidades morais e espirituais. [...] Como se sabe, Descarte tinha uma obsessão pela sorte de Galileu. Ao ver que as controvérsias metafísicas e religiosas punham os homens uns contra os outros, imaginou que poderia conciliá-los, deixando de lado, uma atitude arrojada, todo juízo de valor de ordem moral. Assim instituiu como válidos unicamente os critérios da razão, do bom senso, das medidas de peso, de longitude e de tempo, que não podem ser questionados. (TOURNIER, 2002, p. 26).

Há um mal estar espiritual nas mais variadas camadas da sociedade. Entretanto, homens e mulheres modernos são “enredados por uma engrenagem que [os] leva a fazer concessões contrárias às [suas] consciências. (ibid., p. 28).” Na verdade é muito trabalhoso lutar contra a herança religiosa ocidental. F. Buisson, ícone do “laicismo” dominante, diz: “Aceitamos a idéia de que um povo pode viver sem religião, e há trinta anos estamos trabalhando para dar maior força a esta idéia” (loc. cit.). Afinal de contas, “Se Deus não existisse, tudo seria permitido” (loc. cit.). Não são poucos os que tentam exilar Deus das mentes e das vidas das “elites pensantes” ou dos formadores de opinião,

custe o que custar. Para muitos da sociedade moderna, banir a idéia de Deus é até mesmo uma necessidade científica. Pensar desta forma é acreditar que Deus pode deixar de ser uma preocupação científica. Para esses propugnadores desse ateísmo, “Deus é uma hipótese inútil e custosa, vamos suprimi-la...é necessário, porém, ter em conta alguns valores...como ser honesto, não mentir, não bater na esposa, ter filhos” (loc. cit.). Com relação a tais valores, falam contra eles, a favor deles, mas com freqüência falam deles. Quando não falam, pensam neles secretamente. Não podemos deixar de perceber uma contradição nos argumentos e atitudes de alguns cientistas, quando não valorizam ou se omitem em relação à relevância de tais temas na vida do indivíduo e da sociedade.

Regis de Morais, no seu texto Stress existencial e sentido da vida, suscita o problema da “inanição espiritual” que a sociedade atual vive:

A dessacralização moderna, sua secularização, não pôde perceber que, embora algumas vezes fosse institucionalmente válida, era desastrosa para a intimidade profunda de cada ser humano. Mas, por que a ausência do sagrado desestabiliza – talvez mais que isso – inviabiliza a integridade humana? Haverá uma conduta filosófica para buscarmos responder a essa questão? (MORAIS, 1997, p. 36-7).

O vácuo instalado na sociedade moderna pela marginalização de valores essenciais, não apenas os religiosos, foi preenchido, entre outras coisas, pelo mito do progresso a qualquer custo. Este mito, finalmente acaba atingindo a maioria dessa sociedade. Faz com que homens e mulheres passem a aderir doutrinas contraditórias, como a individualista, a totalitária, a existencialista, a científica, a nietzscheana, a freudiana e assim por diante. Mas esse mito começa expor suas fraturas. Os desencantos, as frustrações e desilusões, há algum tempo, vêm sulcando profundamente a sociedade. Os excessivos apelos de fora começam a dar lugar para os de dentro, da alma humana. É preciso também deixar falar a subjetividade humana.

Mas a predominante idéia de ciência clássica não se permite contaminar pelas sujidades da subjetividade humana. Homens e mulheres de ciência têm preferido a permanência sob o supostamente seguro teto da convenção moderna. Essas convenções não admitem que as pessoas abracem as suas convicções mais profundas. Por isso essas convicções precisam ser rechaçadas ou ocultadas. Isso ocorre porque, parte expressiva da comunidade científica, teme extrapolar os limites estritos da objetividade. A ciência evita, a todo custo, o ingresso em algum território-tabu. Aceita facilmente a idéia que os problemas vêm sempre de fora do ser humano: bactérias, temor, expectação do devir, filhos e políticos. A ambivalência, nesse caso, parece inevitável.

O ser humano precisa de contrapeso para minimizar os efeitos de seu desequilíbrio. P. Tournier (2002) diz que o desequilíbrio do homem acontece, principalmente, em razão do desequilíbrio do espírito. A concentração unilateral da inteligência, o descuido no desenvolvimento do espírito: nas dimensões da beleza, da verdade, do bem e da transcendência, têm trazido prejuízos incalculáveis à toda a humanidade. Como a ciência moderna não se deteve para conhecer os assuntos do espírito humano, parece difícil agora a constatação de que o maior conflito interior do ser humano advém da dissociação entre a vida espiritual e a vida de suas práticas e atitudes cotidianas.

A ciência deve grande parte do seu progresso à tentativa de superar instintos básicos como o anseio e o medo. Podemos afirmar que há uma espécie de guerra universal, filha do medo, que produz dois tipos de reações: “as fortes, ou seja, as ameaças, a agressividade, a injustiça; e as fracas, isto é, o pânico, a pusilanimidade, a fuga” (TOURNIER, 2002, p. 33). Harold Urey, Nobel de física, disse: “Escrevo para atemorizá-los. Eu mesmo sou alguém que tem medo. Todos os intelectuais que conheço têm medo” (loc. cit).

A repressão da consciência pela supressão daquilo que evoca valores provenientes da “filosofia”, da “religião” e da “poesia” trouxe conseqüências desastrosas para a natureza humana. Apesar dessa perda, como negar, pois, aquilo que é mais uterino na humanidade, que se instala no ventre de sua existência – a dimensão do espírito e suas expressões? Em contrapartida, como isto poderia ser detectado pela via da ciência? Não temos como precisar e reduzir a um simples objeto de pesquisa aquilo que transcende a condição da matéria.Como ela, a ciência, pode avaliar o que ignora? Como ignora, por que negar o que não conhece? A ciência, como regra, está atrelada ao que é possível manipular.

Não deve causar espanto quando o médico age com seu paciente como se fosse apenas algum combinado físico-químico. Cuidar do ser humano como um todo, ainda em grande parte da medicina10, continua sendo tabu – um retrocesso intelectual. Ignorar valores, que emanam de condições qualitativas – dimensões não redutíveis a um simples fato ou objeto dissecável – é o mesmo que proclamar a autonomia da razão.

Mas eximir a razão de valores qualitativos é o mesmo que negá-la. Para Tournier, “[a] razão sem [os valores qualitativos] não é mais do que uma crítica, uma crítica a Renan, o doutrinário da ciência” (ibid., p. 34). Arnold Reymond, de igual modo, identifica “Os valores [como] a base de qualquer julgamento racional” (ibid., p. 33). As negativas de “valor” não têm auto-sustentação – não é possível negá-lo -, ainda que algum valor seja negado ou ignorado, o valor permanece ou cria -se um segundo para combater o primeiro. Negar o valor, de certo modo, equivale a estabelecer um outro valor. As cegueiras em relação aos valores qualitativos restringem a ciência unicamente aos valores quantitativos. Não se quer aqui sucumbir a uma visão unívoca e acreditar que o problema está apenas nas lentes científicas. Isto produz, certamente, _________________________________

10Condição muito bem ilustrada no filme de Mike Nichols, protagonizado por Emma Thompson, Uma

um olhar distorcido do real e da verdade, pois

[...] continuamos impregnados dos preconceitos que a ciência nos inculcou. Negamos-nos a basear a nossa concepção de homem no que a religião ou a filosofia nos ensina sobre ele, negamo-nos a dar ao conhecimento metafísico um valor superior, ou pelo menos igual, ao conhecimento científico [...].(TOURNIER, 2002, p. 34-5).

No meio acadêmico universitário, quando se fala do aspecto espiritual do ser humano, geralmente é fazer mera digressão. Aparece como algo fora do contexto. “A universidade oficialmente não pode ocupar-se das concepções morais e religiosas dos estudantes, por mais que elas os levem a um mercantilismo” (ibid., p. 35). O discurso competente dos especialistas detém soberania na cotidianidade acadêmica. Mas “É por puro preconceito que o mundo moderno pretende que os ‘valores’ – as noções morais, religiosas e filosóficas – sejam mais incertos e arbitrários do que as noções científicas” (ibid., p. 36). Desde Kant desconfia-se do conhecimento metafísico, a despeito dessa suspeição, os pressupostos científicos são, em grande parte, metafísicos. Os especialistas, no sentido clássico da palavra, estão acantonados em suas estritas áreas do saber e não sabem, na maioria dos casos, como lidar com a metafísica. Por esse motivo, empurram, quando podem, a metafísica para fora das “fronteiras” bem guarnecidas de suas disciplinas.

Paradoxalmente, a partir mesmo das próprias reflexões científicas, surge uma nova consciência e uma conseqüente procura, com cada vez mais intensidade, pelos valores ditos espirituais. Não há como esconder a atmosfera de insatisfação com os modelos modernos para a vida humana. Os temas sobre o espírito humano têm sido retomados com certo vigor e, cada vez mais, aumenta o número daqueles que se interessam pelos assuntos espirituais. Nesse sentido podemos afirmar que o espírito e a espiritualidade humanos são temas candentes.

2.2 O necessário redimensionamento do olhar sobre o espírito humano