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O espírito como função de sentido: a consciência

1. A gênese do Problema e as Minhas Inquietações

1.2 O espírito como função de sentido: a consciência

As abordagens de Frankl (1997) e a de Tillich (1987) têm alguns pontos em comum. Para ambos o espírito é uma dimensão humana e que envolve outras dimensões, como a artística, a racional, a psicológica e a religiosa, dentre outras. Alguns cuidados de Tilllich são vistos também em Frankl, como o de não intelectualizar o ser, como sujeito, ou vê-lo apenas a partir da razão. Para Frankl, a razão é vista, na maioria dos casos, como unilateral sobre a essência do homem. Precisamos, pois, ver “no ser humano uma unidade na totalidade que inclui: corpo, psiquismo e espírito” (FRANKL, 1997, p. 8). Queremos afastar aqui a hipótese de reduzir o sujeito seja à esfera da materialidade seja à esfera da espiritualidade.

É preciso salvaguardar a relação e atuação do homem como agente neste mundo concreto e, ao mesmo tempo, não diminuir a sua dimensão religiosa. Esta última dimensão há muito tempo tem permanecido em estado latente ou subutilizada em grande parte da sociedade moderna. Quando o espírito passa a desenvolver-se, é restituída “à produção humana e à criação artística a dignidade que lhes é merecida, pois emerge não do ‘porão dos instintos, mas das alturas do espírito” (ibid., p. 9). Isso equivale a um giro copernicano em relação aos conhecimentos sobre o espírito da pessoa humana..

Os últimos conhecimentos adquiridos sobre a condição humana, especialmente na área de Humanas, oferecem às ciências psicológicas um “ser” mais pleno de humanidade. A análise existencial da pessoa humana, por exemplo, em lugar de automatismo do aparelho psíquico, aponta a autonomia da existência espiritual. Esta existência espiritual está imersa em um mundo simbólico e de valores mas, ao mesmo tempo, transcende-os. O sujeito é ser de escolhas e decisões. A sua existência ganha com

isso a virtude do “senso de responsabilidade”. “De fato, a análise existencial interpreta a existência humana em sua essência mais profunda, como ser-responsável” (ibid.., p. 15). Mas como desenvolvemos o senso de responsabilidade? Para Frankl, é desenvolvido na consciência. Esta consciência é, na verdade, segundo ele, o “órgão de sentido” humano e, para evitar alguma confusão, chamaremos simplesmente de função de sentido.

A busca de sentido não é apenas necessária para a existência do sujeito, pode também ser encontrado. Nessa busca pelo sentido, a pessoa humana tem a sua raiz e orientação ou desorientação na consciência. Mas como age a consciência? A consciência faz parte da estrutura fundante do ser humano. Mas, se por um lado a consciência pode orientar a pessoa, por outro, ela pode desorientá-lo. A consciência pode enganar a pessoa. Mais que enganar,

[... pode enganar até] o último instante, até o último suspiro a pessoa não sabe se ela realmente cumpriu o sentido de sua vida ou se ela apenas se enganou: Ignoramos et

ignorabimus, não sabemos nem agora, nem mais tarde. O fato de que nem em nosso leito

de morte saberemos se o órgão de sentido, nossa consciência, em última análise não foi vítima de uma ilusão de sentido também implica que uma pessoa não sabe se não é a consciência do outro que tinha razão. Isto não quer dizer que não exista verdade. Somente pode haver uma verdade; mas ninguém pode saber se é ele e não o outro que a possui. (FRANKL, 1997, p. 15).

A consciência pode, pois, tanto orientar como desorientar a pessoa. O sujeito como alguém de sentido, tem na consciência a ocorrência desse sentido. O homem depara-se, no entanto, com pelo menos duas categorias de sentido: na primeira, o sentido está vinculado a uma situação única e ímpar. Na segunda, estão os sentidos universais relacionados com a condição humana. Nessas categorias ocorrem as possibilidades amplas dos valores pessoais. Esses valores, no entanto, não ocorrem sem antes amplas situações de conflitos.

A natureza conflitiva é antes inerente aos próprios valores, porque, em contraposição ao sentido a cada vez único, singular e concreto de situações, os valores são, por definição, sentidos universais abstratos. Nesta qualidade eles têm validade não somente para pessoas insubstituíveis, colocadas em situações irrepetíveis, mas antes a sua validade se estende por amplas áreas de situações típicas a se repetirem, sendo que estas áreas em particular se sobrepõem. Existem, portanto, situações nas quais a pessoa está colocada diante de uma

opção de valores, diante da opção entre princípios mutuamente contraditórios. Para não optar de forma arbitrária, a pessoa dependerá novamente da sua consciência, sendo que exclusivamente a consciência a capacita a tomar uma decisão livre, mas não arbitrária, e sim responsável. Sem dúvida a própria pessoa naturalmente continua livre perante a consciência; mas esta liberdade consiste única e exclusivamente na opção entre duas possibilidades: a de dar ouvidos à consciência ou de rejeitar sua advertência... (FRANKL, 1997, p. 69).

A consciência, que cumpre a função de sentido em relação ao espírito, mantém seu vínculo estreito com a religiosidade. A religiosidade faz parte da condição humana, mesmo que em muitas situações não esteja desenvolvida. Isso implica que o indivíduo irá procurar em outras fontes seu repertório de valores. De uma maneira geral os valores materiais, em maior ou menor quantidade, estão amalgamados com os valores religiosos. De qualquer modo, todas as empresas humanas acontecem através do corpo-espírito. O espírito, no seu aspecto positivo, é o elo que nos aproxima do sagrado, das artes, da solidariedade, de uma vida mais humanizada e humanizante etc., mediante um corpo. É meio do belo e do amor entrarem em toda a existência humana. O sagrado, com maior ou menor consciência, exige do ser humano uma resposta em toda a esfera de sua existência. O ser humano tem preocupações espirituais, como tem preocupações em relação à estética, à política, à ética, às interações sociais e às atividades cognitivas. Para Tillich, no seu livro Dinâmica da Fé, “algumas dessas preocupações são urgentes, muitas vezes até extremamente urgentes...” (TILLICH, 1996, p.5). Mas, a preocupação suprema de uma pessoa não se esgota com as preocupações já citadas, ela procura uma “realização última”. A “preocupação incondicional”, que somente pode ser atendida por um ato de fé. Na Bíblia, no livro de Deuteronômio 6.5, encontramos uma ilustração clássica disso, na tradição judaica: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força”. A fé corresponde à existência da pessoa inteira, isto é, manifesta-se por meio do ser, estar e fazer humanos em um tempo e em um espaço. Fé é uma expressão incondicional do espírito humano voltada para um sentido,

principalmente para o sentido último. Ela faz parte da dimensão do espírito e se manifesta como uma expressão deste:

[A] Fé [é] como estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente é um ato da pessoa como um todo. Ele [o ato] se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos desta [pessoa] dele participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano. Ela não é um processo que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma função especial da vivência humana. Todas as funções do homem estão conjugadas no ato de fé. A fé, no entanto, não é apenas a soma das funções individuais. Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana ao mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma delas. [...] Uma vez que a fé é um ato da pessoa toda, ela participa da dinâmica da vida pessoal. (TILLICH, 1996, p. 7,8).

A fé é um exemplo de que o ser humano precisa de um sentido para viver. O homem precisa crer em alguma coisa. Ele precisa de direção. Por isso projeta e se lança mesmo no desconhecido. A fé é, pois, uma das mais fortes expressões do espírito humano. E, em razão disso, precisa ser orientada, melhor ainda, educada.

O espírito humano, sem a espiritualidade desenvolvida, vira uma zona opaca. Sem o desenvolvimento do espírito o ser humano enfraquece. O espírito humano sem o seu desenvolvimento toda existência espiritual debilita-se. O espírito é a dinâmica da vida. O ser humano não é todo espírito, mas o espírito permeia todo o seu ser. O espírito também não é apenas parte, age como um todo organizador nas condições de ambigüidades das dimensões humanas, permitindo desse modo a unicidade visa a harmonia do ser. Penetra toda a vida da vida humana. De modo que, todo o pensamento e toda ação humanos podem ser coordenados positivamente pelo espírito. De maneira geral, nada pode ser feito sem o espírito, mas podemos dar uma direção ao espírito, educá-lo. A alienação e a desatenção ocorrem como limitações do espírito humano em um corpo igualmente limitado. O espírito age por meio do corpo e tem seus limites neste.

As limitações de nosso corpo dizem que o ser humano não é totalmente livre. Conceber, pois, a história como atualidade viva e concreta das possibilidades humanas quer dizer “[...] afirmar a singularidade e a limitação espaço-temporal da existência de

cada um e, ao mesmo tempo, a sua íntima união com um fluxo de acontecimentos que o envolvem” (ibid., p. 134). O ser humano, nesta concepção, não está, pois, submisso e obliterado à necessidade de uma sucessão de fatos naturais. Apesar disso, está sujeito à dinâmica da vida. O homem está inserido no ventre da história, na intriga dos fatos, e não é totalmente livre. O homem não é inteiramente livre quanto ao devir. A despeito de o homem poder unir o passado ao presente e ao futuro, ou seja, é capaz de transformar a temporalidade, própria da história, em não mera sucessão de instantes descontínuos, mas criando a unidade do tempo em si, carrega consigo a impossibilidade de interferir inteiramente no futuro. K. Popper, citado por Galantino, adverte-nos a abandonar a absurdidade presente no ato de crer que “um ensaio seja capaz de predizer aquilo que acontecerá [...]”. (GALANTINO, 2003, p. 135). Na verdade, diz Popper:

Muitos consideram a história com um rio possante que faz correr sob o nosso olhar as suas águas. Vejamos como este rio flui do passado e, se somos muito experientes, podemos predizer, ao menos em grandes linhas, como fluirá futuramente. A muitos, esta parece uma analogia feliz. Em, ao invés, julgo que ela seja não apenas falsa, mas também imoral.

A história acaba hoje. Podemos tirar lições dela, mas o futuro não existe ainda, e é exatamente esta circunstância que repõe sobre nós uma enorme responsabilidade porque

podemos influir sobre o futuro, podemos aplicar todas as nossas forças para fazê-lo. Para

fazer isto devemos nos servir de tudo aquilo que temos aprendido no passado. (Grifo nosso). (loc. cit).

O trecho popperiano sinaliza para o limite histórico do ser humano e, ao mesmo tempo, a possibilidade de colher resultados positivos de sua presença contemporânea, em si, no âmbito do limite do fascínio suas fronteiras. Mas o pensamento de Popper não deixa de indicar a nossa liberdade relativa. Mostra o quanto somos livres para agir. Agir e mesmo interferir em nosso futuro, no futuro de nossa sociedade e de nosso planeta. Somos, pois, seres de sentido e responsáveis pelas nossas decisões.

E nesta liberdade que o ser humano vive numa constante na busca de um sentido. Apesar disso, cada vez mais o homem moderno sofre da sensação da falta de sentido, com a circunstância agravante de um “vazio existencial". Os sintomas desta crise de existência se manifestam através de tédio e indiferença. O tédio consiste em uma perda

de interesse pelo mundo, enquanto a indiferença, por sua vez, significa uma falta de iniciativa para melhorar ou agir transformando as coisas no mundo. Para Frankl, não é difícil identificar esse “vazio existencial”, mas ele não pode ser percebido ...

[...] no sentido de uma neurose noogênica ou psicogênica, mas [como] uma neurose sociogênica. Sem dúvida, a sociedade industrializada está sempre visando satisfazer todas as necessidades humanas possíveis, e seu fenômeno concomitante, a sociedade de consumo, visa até mesmo criar necessidades que possam depois ser por ela satisfeitas. Apenas a necessidade mais humana de todas, a necessidade de sentido, é frustrada pela sociedade. [...] Nestas condições, é compreensível que especialmente a geração jovem padece mais da sensação de falta de sentido, o que é corroborado pelos resultados de pesquisas empíricos. A este respeito gostaria de mencionar a síndrome da neurose de massa constituída pela tríade "dependência (de drogas etc.), agressão e depressão" e que comprovadamente tem como causa a sensação de falta de sentido. (FRANKL, 1997, p. 79). R. de Morais fala sobre os agravantes do sentimento de inanidade humana que vêm de toda parte, mas que, felizmente, existe uma esperança. Tomemos como ilustração, o alerta de Vialatoux, mencionado por Morais, sobre certas biologias, tão difundidas no meio científico, mas que provocam riscos imediatos e freqüentes ao bem estar ao sujeito e à sociedade. Felizmente, há aquelas que tentam resgatar esse bem estar social:

[...] mas nesse sentido também está o fato de não podermos aceitar certas biologias niveladoras do homem como os irracionais, pois biologias avançadas como as de Henri Laborit ou Von Uexküll já demonstraram a existência, no homem, de um cérebro criativo (neocórtex humano) que estabelece definitivamente uma superior peculiaridade, que é só da nossa espécie. Implica, para além de tudo isso, o sentido de transcendência, o anseio humano de transcender os conflitos sociais que oprimem os povos, enfrentando-os e não fugindo deles ou ignorando-os. (Grifos nossos), (MORAIS, 1999, p. 28).

Habitamos um mundo sofrente que nos cerca. Este mundo sofre de várias maneiras, mas sofre principalmente por um deprimente sentimento de nulidade, de insignificância. Entre todos os poderes, os que mais afligem os seres humanos, está o da perda de sentido, principalmente os recorrentes pela asfixia do espiritual pelo material:

Na sua essencialidade, o entorno continua...Na sua empiricidade, ele ganha os contornos da história recente, mas no essencial continuamos preocupados com os problemas como as virtudes, o mal, o conhecimento, o Estado e a política ideais, a imanência e a transcendência, as relações interpessoais etc. [...] temos de repensar nossas formas de lidar com a vida. Contra o profeta do nada, temos de erguer uma ambição - um projeto novo. (MORAIS, 1999, p. 29).

Stanislav Grof e Christina Grof (orgs.), na introdução do livro Emergência Espiritual: crise e transformação espiritual, falam-nos sobre o fenômeno da emergência da espiritualidade, mais especificamente sobre a crise e os ventos de transformação espiritual que a humanidade vem passando nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 60. Presenciamos, e não há como negar, uma onda de interesse espiritual. Esse interesse é acompanho pela redescoberta da relevância da vida pelo encontro de sentido.

Um número crescente de pessoas parece estar percebendo que a verdadeira espiritualidade se baseia na experiência pessoal e é uma dimensão extremamente relevante e essencial da vida. Podemos estar pagando um preço muito alto por termos rejeitado e desprezado uma força que nutre, fortalece e dá sentido à vida humana. No nível individual, o resultado parece ser um modo de vida empobrecido, infeliz e incapaz de promover a realização das pessoas, bem como um número crescente de problemas emocionais e psicossomáticos. Na escala coletiva, a perda da espiritualidade pode ser um fator significativo da perigosa crise global de hoje, que ameaça a sobrevivência da humanidade e de toda a vida no planeta... (GROF & GROF, orgs., 1997, p. 13-14).

Portanto, não podemos sucumbir à superficialidade das coisas e da vida. Não devemos nos tornar presas fáceis do aparente. Precisamos superar os equívocos da superficialidade e do aparente, precisamos entender a problemática de uma educação da espiritualidade, sem os reducionismos comuns nas idéias fragmentárias.