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1. A gênese do Problema e as Minhas Inquietações

1.1 O espírito como definidor humano

A dimensão do espírito é organizadora e definidora do ser humano. Paul Tillich destaca, entre as dimensões da vida, as que ocorrem nos reinos inorgânicos e orgânicos e, também, o sentido do espírito como uma dimensão fundamental da existência humana. Diante dessas idéias, suscitamos a seguinte pergunta: qual é o princípio que faz dessa dimensão uma dimensão? A resposta a esta pergunta pode ser desdobrada do seguinte modo: primeiramente, não há um número fechado de dimensões, mesmo porque as dimensões da vida são estabelecidas por critérios flexíveis. “Justifica-se falar de uma dimensão particular quando a descrição fenomenológica de uma seção da realidade encontrada mostrar estruturas categoriais únicas, além de outras” (TILLICH, 1987, p. 398). Sem qualquer absolutismo, podemos fazer a distinção entre várias dimensões da

vida, sendo algumas com mais clarezas que outras. Em segundo lugar, a despeito dessa distinção, é necessário que essas dimensões sejam verificadas e determinadas concretamente no ser humano, principalmente quando consideramos a unidade na multidimensionalidade da vida, as origens e as conseqüências das ambigüidades inerentes a todo processo existencial humano.

O caráter particular de uma dimensão que justifica seu estabelecimento como dimensão pode ser observado muito bem na variação do tempo, espaço, causalidade e substância sob sua predominância. As categorias têm validez univer sal para tudo o que existe. Mas isso não significa que exista apenas um tempo, um espaço, e assim por diante. Pois as categorias mudam seu caráter sob o predomínio de cada dimensão. As coisas não estão no tempo e no espaço; na verdade elas têm um tempo e um espaço. O espaço inorgânico e o espaço orgânico são espaços diferentes; o tempo psicológico e o tempo histórico são tempos diferentes; e causalidade espiritual e inorgânica são causalidades diferentes. Contudo, isso não significa que as categorias, por exemplo, em seu caráter inorgânico, desapareçam do reino orgânico ou que o tempo do relógio seja aniquilado pelo tempo histórico. A forma categorial que pertence a um reino condicionante, tal como o inorgânico em relação ao orgânico, entra na nova forma categorial com um elemento dentro dela. No tempo ou na causalidade presentes, mas não são mais as mesmas de antes. Essas considerações fornecem uma sólida base para o abandono de todos tipos de ontologias reducionista, tanto naturalista quanto idealista. (TILLICH, 1987, loc. cit).

As dimensões nos reinos inorgânico e orgânico aparecem como diferentes reinos da realidade, determinados por dimensões especiais. Não é nossa intenção sistematizarmos aqui as implicações da dimensão inorgânica na vida humana, mais por economia de espaço e apesar de sua importância para a física e mesmo pelo significado religioso, como “natureza”, que ela pode assumir. Em suma, vejamos algumas implicações do reino inorgânico: na verdade, a dimensão inorgânica é básica para os processos da vida, em todas suas dimensões. Esta última afirmação deve, contudo, desvencilhar-se das peias do “reducionismo naturalista” ou materialismo e não devemos identificar matéria com matéria inorgânica. “O termo ‘matéria’ tem um sentido ontológico e outro científico” (ibid., p. 399). Exemplificando, as estruturas inorgânicas envolvem as estruturas orgânicas. A citação bíblica de Gênesis 3.19, é uma metáfora que serve como ilustração disso: “Ao pó voltarás, pois dele foste tomado”. Aliás, Tillich chega mesmo a propor uma “teologia do inorgânico”.

Em relação à vida orgânica, os problemas não são menores. Mesmo que tomemos o criacionismo como ponto de partida, podemos afirmar que o orgânico veio a partir do inorgânico. Neste caso, “a ‘primeira célula’ só pode ser explicada em termos de uma interferência divina especial” (ibid., p. 400). O fato é que a dimensão do orgânico está fundamentalmente presente no inorgânico; condições perfeitamente descritas pela biologia e pela bioquímica. A dimensão do orgânico ocupa, no entanto, a centralidade da filosofia da vida. A vida é orgânica. Em relação ao que define o humano, é possível seguir a mesma regra, situação que definiremos mais adiante.

Aqui, podemos levantar algumas perguntas: como é processada a relação entre o inorgânico e o orgânico, gerando vida? Como surgiu o fenômeno da “consciência interior” no ser humano? Ou, ainda, a autoconsciência está presente nas demais dimensões humanas? Essas questões são de difíceis soluções. Na segunda, mesmo precariamente, podemos dizer que sim. A biologia define o homem como sapiens sapiens, isto é, ser que não apenas sabe, mas que pode debruçar-se sobre o seu próprio saber para conhecê-lo e aprimorá-lo. Em outros termos, é um ser que tem consciência de si e do seu próprio conhecimento. Tillich confirma isso: “A autoconsciência está presente em cada dimensão; realmente, ela só pode aparecer sob a condição do ser animal” (loc. cit.). Mas não qualquer animal. O ser humano é o único ser que possui de modo indiscutível uma autoconsciência.

A tentativa de empurrar a autoconsciência de volta para a dimensão vegetativa não pode ser nem rejeitada nem aceita, já que não pode ser verificada de nenhuma forma, seja por participação intuitiva, seja por analogia reflexiva às expressões semelhantes àquelas que o homem encontra em si mesmo. Sob essas circunstâncias, parece ser mais sábio restringir a hipótese da consciência interior àqueles reinos nos quais ela pode ser tomada como altamente provável, pelo menos em termos de analogia. Além disso, essa

consciência interior é evidenciada e emocionalmente certa, em termos de participação, nos animais superiores, particularmente o homem.

Essa dimensão da autoconsciência ou da consciência interior, ou ainda o “reino psicológico”, sob certas condições, “atualiza” internamente outra dimensão, a do “pessoal comunitário” ou o “espírito”. Os conhecimentos e as experiências adquiridos até então, têm conferido que a dimensão do pessoal ou do espírito somente acontece na pessoa humana. As questões que sugerem a possibilidade de ocorrência dessas dimensões em outros seres vivos (orgânicos) ou não vivos (inorgânicos), não podem ser respondidas nem de forma positiva e nem negativamente, não há indicadores concretos que atendam essas questões.

P. Tillich define a vida como sendo a “atualização do ser potencial” (ibid., p. 408). Essa atualização é um processo permanente durante a vida toda de uma pessoa. A vida tem um recurso que, sem o qual, não seria possível atualizar-se. Esse recurso é a capacidade de centralizar-se tanto como realidade quanto como tarefa. Mas em que consiste essa centralidade?

[A] Centralidade é uma qualidade da individualização, na medida em que a coisa indivisível é a coisa centrada. Continuando essa metáfora: o centro é um ponto, e o ponto não pode ser dividido. Um ser centrado pode desenvolver outro ser a partir de si mesmo, ou pode ser privado de algumas partes que pertencem ao todo; mas o centro como tal não pode ser dividido – ele só pode ser destruído. Um ser plenamente desenvolvido, portanto, é ao mesmo tempo um ser plenamente centrado. Dentro dos limites da experiência humana somente o homem apresenta essas qualidades de forma plena; em todos os outros seres, tanto a centralidade quanto a individualização são limitadas. Mas elas são qualidades de tudo o que é, sejam limitadas ou plenamente desenvolvidas. (TILLICH, 1987, p. 409-19). O termo “centralidade” é utilizado para designar a estrutura de um ser “no qual um efeito exercido sobre uma parte tem conseqüências para todas as outras partes, direta ou indiretamente” (ibid., p. 410). Esse ser deve ser visto, pois, como totalidade ou Gestalt. A centralidade ocorre em toda forma de vida e esta é atualizada permanentemente. Esta atualização é chamada de “auto-integração” da vida. “A natureza da própria vida se expressa na função de auto-integração em todo processo particular de vida” (loc. cit).

Entretanto, o processo de atualização não se detém apenas na função auto-integradora. O movimento circular da vida “[ocorre] a partir de um centro e de volta para esse centro; envolve igualmente a função de produzir novos centros, a função de autocriação” (loc. cit.). De qualquer modo a vida se encaminha em direção ao novo e, “ela não pode conseguir isso sem centralidade, mas o faz transcendendo cada centro individual” (loc. cit.).

A função de auto-integração da vida que vimos acima ocorre em meio a muitas ambigüidades. Tillich identifica algumas ambigüidades que ocorrem no processo de desenvolvimento da vida, na própria estrutura do ser. Dentre essas ambigü idades, citaremos apenas três, para efeito ilustrativo:

A primeira ambigüidade aparece na individualização e centralidade. Neste caso ocorre uma polarização entre individualização e participação. Essa polarização se expressa “na função de auto-integração mediante o princípio de centralidade [definida acima]” (ibid., p. 409). Isso implica na possibilidade de desintegração. Essa desintegração “significa a incapacidade de atingir ou preservar a auto-integração” (loc. cit.). A segunda ambigüidade está na auto-integração e desintegração em geral: saúde e doença. Partindo da idéia de que a centralidade no ser vivo é um fenômeno universal, no reino psicológico ocorrem muitas limitações. Tillich explica isso nos seguintes termos:

Podemos dizer que a estrutura da saúde e enfermidade, da auto-interação bem sucedida ou fracassada na esfera psicológica depende da atuação dos mesmos fatores que atuam nas dimensões precedentes: as forças que caminham para a auto-identidade e aquelas que encaminham para a auto-alteração. O eu psicológico pode ser destruído pela incapacidade de assimilar (isto é, de introduzir na unidade centrada um número extensivo ou intensivamente excessivo de impressões), ou por sua incapacidade de resistir ao impacto destrutivo das impressões que atraem o eu para direções múltiplas e contraditórias, ou por sua incapacidade, debaixo de tais impactos de manter funções psicológicas particulares equilibradas com outras. Nessas formas a auto-alteração pode impedir ou destruir a auto- integração...(TILLICH, 1987, p. 413).

Finalmente, podemos encontrar uma terceira ambigüidade na auto-integração da vida na dimensão do espírito, que é a moralidade, ou a constituição do eu pessoal. “No homem está dada essencialmente uma centralidade completa, mas não está dada em ato até que o homem atualize na liberdade através do destino” (ibid., p. 414). Para Tillich, a atualização da centralidade essencial do homem é o ato moral. A “moralidade é a função da vida pela qual o reino do espírito passa a existir. Moralidade é a função constitutiva do espírito” (loc. cit.).O ser humano é um ser moral.

Neste mesmo sentido, podemos dizer que a autocriatividade da vida acontece em meio a ambigüidades. Essa autocriatividade não ocorre em termos de criação original. Ocorre sim como dinâmica e forma de crescimento. Este crescimento acontece de modo efetivo na própria função da vida, a partir do elemento polar da dinâmica. Isso, no entanto, só é possível “na medida em que [ocorre como] processo mediante o qual uma realidade formada caminha para além de si mesma, rumo a outra forma que preserva bem, [assim] como transforma a realidade original” (ibid., p. 423). Esse processo é a forma pela qual a vida se cria a si mesma. Essa criação não ocorre, pois, sem embates. Em suma, “A vida vive da vida, mas vive também através da vida, sendo defendida, fortalecida e conduzida para além de si mesma mediante a luta” (ibid., p. 426). A vida, pois, à medida que se cria, transcende-se. Como essa criação é dinâmica, essa transcendência ou autotranscendência é eivada de ambigüidades. Dentre essas, destacamos ainda a questão da liberdade e da finitude humanas. A vida, até certo ponto, é livre. A vida cria e nessa criação é livre de si mesma. Dizendo de outro modo, a vida é livre da prisão total em relação à sua própria finitude. A vida se projeta horizontalmente para frente, criando-se e recriando-se. Mas ela também se projeta verticalmente em direção ao ser último e infinito. “O vertical transcende tanto a linha circular da centralidade quanto a linha horizontal do crescimento” (ibid. , p. 451). Na formação do cristianismo, o Apóstolo Paulo (Romanos, 8.19-22) fala sobre a libertação da “sujeição à

futilidade” e também dos “grilhões da mortalidade”. Isso não é outra coisa senão a busca pela autotranscendência.

A autotranscendência da vida ocorre em todas as dimensões humanas. Mas como ela se manifesta? A questão de como se manifesta a autotranscendência da vida não pode ser respondida em termos empíricos, como no caso da auto-integração e autocriatividade. Podemos falar dela apenas em termos que descrevam a reflexão da autotranscendência interior das coisas na consciência do homem. O homem é o espelho no qual se torna consciente a relação de tudo o que é finito com o infinito. Nenhuma observação empírica dessa relação é possível, porque todo conhecimento empírico se refere às interdependências finitas, não à relação do finito com o infinito.

A tentativa de se negar a autotranscendência humana equivale a negar um fundamento essencial da humanização. A transcendência marca a nossa história de desenvolvimento, como experiências expressas e efetivas em todas as épocas de nossa existência. A autotranscendência acontece a partir da vitalidade do espírito. É o espírito, pois, que fornece o material necessário para o desenvolvimento humano. Não é difícil constatar que, mesmo que esquecida nessa existência, a presença espiritual sempre esteve imiscuída na história geral. Não considerar adequadamente, pois, a função do espírito é perder de vista a própria dimensão da dinâmica da vida. A dimensão do espírito, como dinâmica da vida e juntamente com outras dimensões, atualiza (poder de ser) e nos define (sentido do ser) como humanos. Segundo Tillich,

[O] espírito como uma dimensão da vida une o poder de ser com o sentido do ser. Espírito pode ser definido como a atualização do poder e sentido unidos entre si. Dentro dos limites de nossa experiência isso ocorre somente no homem, no homem como um todo e em todas as dimensões da vida que estão presentes nele. O homem, ao experimentar-se a si mesmo como homem, está consciente de ser determinado em sua natureza pelo espírito como uma dimensão de sua vida.(TILLICH, 1987, p. 470).

Essa experiência, pois, nos permite falar em espírito como um definidor humano. É o espírito quem garante a unidade e, ao mesmo tempo, a diversidade da pessoa. Ele

organiza o “ser” em meio às ambigüidades. Garante a mudança, o novo, ao mesmo tempo em que preserva as características essenciais do homem. Sem o espírito centralizador e organizador o homem se diluiria. O espírito expressa sua presencialidade em todas as dimensões da vida e, ao mesmo tempo, nutre e é nutrido por elas. Nesse sentido podemos mesmo nos antecipar e falar de espiritualidade em todas as instâncias da existência humana. Podemos falar também da escolha, decisões e responsabilidades de cada “ser”. Inferimos a mudança de atitudes, de valores, e de modo de vida. Em outros termos, podemos falar também da possibilidade de uma educação do espírito.

Definir o homem em termos absolutos é impossível. O ser humano não é definível nesses termos. Mas grande parte do “ser” pode ser alcançada pelas nossas análises e tentativas de reconstituição de sua totalidade. Entretanto, alguma coisa de fundamental do ser humano tem ficado de fora dessas análises, mesmo porque nem tudo é analisável no sentido estrito da palavra. Quando preferimos algo preterimos outro algo. As preferências científicas, quase sempre bem calculadas, têm preterido ainda “partes” da pessoa humana, se é que podemos chamar de partes. Este ato de preterir, mesmo que não seja em todas as situações, vem acontecendo na maioria dos casos. O espírito é certamente uma dessas “partes”, que aqui chamamos de dimensão, que tem ficado de fora. O espírito foi, se não de todo obliterado, notoriamente ocultado ou preterido nessas explicações. As abordagens científicas sobre as pessoas, na condição de sujeito, não devem, sob qualquer pretexto, passar de largo em relação à dimensão do espírito humano. Mesmo porque é este quem, de fato, mais diz quem é o homem. Aliás, é impossível compreender um pouco mais do homem sem o seu espírito e é impossível nos aproximarmos do espírito sem visualizar o homem integral. O espírito revela o homem e este, por sua vez, no tecido de sua existência, revela o seu espírito. Entretanto, a retomada das discussões sobre o espírito pode assumir vários rumos. Dedicar-nos-emos,

no entanto, aos aspectos positivos do espírito. Mas, antes, é preciso explicitar a dimensão do espírito e sua imprescindibilidade em nossa existência.