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A rasoura científica: o que a ciência deixou de fora do humano e que faz falta?

1. A gênese do Problema e as Minhas Inquietações

2.4 A rasoura científica: o que a ciência deixou de fora do humano e que faz falta?

Seguindo a velha mas sempre incisiva capacidade inquiridora humana, podemos nos debruçar sobre os acontecimentos da história e inquirir deles aquilo que podem revelar. Mediante uma visão binocular, com um olhar sobre o passado e outro sobre o

presente sem perder a perspectiva de futuro, é possível constatar que o que mais preocupa a ciência, especialmente as humanas, vai além dos seus próprios métodos empregados, mas saber o que é ciência e o que não é. Desde o século XVII, por exemplo, ao rever o racionalismo cartesiano podemos compreender, sem esforço demasiado, o pensamento que afunila o ser humano num dualismo psicofísico. Para Descartes o homem é constituído por duas substâncias: uma primeira de natureza espiritual (a res cogitans), amalgamada com os conceitos sobre Deus (res infinita) e, uma segunda, de natureza material (a res extensans). Esta última foi privilegiada como objeto das ciências da natureza, que pela imagética da “máquina”, pode, mecanicamente, explicitar o funcionamento da “mecânica” do corpo. Aquela, a res cogitans, a que efetivamente dá lugar à vocação humana pela liberdade e de contato com os sagrados humanos, é reduzida a um objeto da reflexão filosófica e teológica.

Há uma relação estreita entre ciência e metafísica, muito mais do que se costuma admitir. A rigor não existe uma “ciência pura”, tão pouco auto-suficiente. Japiassu faz o seguinte destaque que supomos elucidativo sobre o que ocorre no âmago dos construtos científicos: “[...] em sua vertigem crescente de objetividade e de racionalidade, conduzem aqueles que as praticam a um esquecimento progressivo e rápido dos pontos de partida e das decisões constitutivas de seu saber” (Grifos do autor). (JAPIASSU, 1975, p. 13). Em outros termos, as doses excessivas de objetividade científica, não só geram visões estritamente particulares, parcelares e redutivas do ser humano, como podem condenar o humano à mutilação de parte de si. Mesmo sendo irredutível, o que não é fato para a ciência clássica, o ser humano é transformado em objeto, é fatiado e enquadrado pela moldura arbitrária da ciência, sem a devida preocupação em devolver- lhe o rosto global, a inteireza que lhe é devida. A prática visceral científica de parcelar faz desgarrados os elementos constituintes e, quase sempre, dissipa-se a visão de conjunto. Cabe aqui um exemplo: o biólogo “redutor” tem o humano, como “[...]

apenas um sistema regulado de funções biológicas” (loc. cit.). Falta, pois, nesses casos a reflexão sobre as decisões constitutivas dos diversos saberes, ligar as novas descobertas às inteligibilidades estruturais, situá-los no centro de um saber reflexivo coerente e consistente do humano para ele mesmo.

A tirania da razão e o parcelamento ou fragmentação do humano deixaram suas marcas na história. Tanto a arbitrariedade da razão como a pulverização do ser humano, foram ora mais, ora menos, identificadas e assimiladas pela cultura científica como regra de conduta na exploração do mesmo. Nem sempre, pois, a razão e a fragmentação – que é subproduto da primeira – exerceram algum domínio territorial na cultura do pensamento humano. A razão viria a exercer domínio sim, mas não antes de enfrentar as fortalezas instaladas em meio à produção cultural humana, como as construções mitológicas e as filosofias.

O conhecimento científico mesmo sendo visitado e re-visitado ao longo da história por inquiridores de toda sorte, é um território que permanece em aberto. Restam ainda muitas terras pouco habitadas ou inexploradas. Não é sem razão que o conhecimento científico passe freqüentemente pelos “crivos finos” das exigências, tanto da comunidade científica como de todos os domínios do saber humano. O campo da epistemologia, por exemplo, passa por intermitentes terremotos, pelos embates frente aos necessários testes de prova de seus postulados. Os confrontos epistemológicos sulcaram a história. Em tempos distantes, desde os pré-socráticos, no séc. VI a.C., os argumentos sobre o conhecimento vêm sofrendo sobressaltos até os nossos dias, mas permanecem ativos. Mesmo que os anais da história científica tenham sido escritos com boa dose de altivez, contabilizando muitas glórias e realizações, não se deve omitir os equívocos e as humilhações. As narrativas da filosofia ocidental são nutridas por belos sonhos, por belas histórias sobre as possibilidades do conhecimento humano da ou das realidades, de como as coisas poderiam ser; mas nenhum cientista ou filósofo, até

então, respondeu satisfatoriamente, pela impossibilidade mesmo, um dos problemas de fundo que é o da verificabilidade e da comprovação do conhecimento verdadeiro. De que maneira, pois, alguém poderia considerar verdadeiro algum tipo de conhecimento? O próprio termo “verdadeiro” carece de alguma representação no campo ontológico, isto é, precisa estar referenciado ao mundo tal como foi antes que alguém chegasse a conhecê-lo. Terminologias à parte, o conhecimento é um fato, mas um fato que encerra certas precariedades de entendimento e, porque é precário, precisa passar pelos filtros das escolhas e imerso na responsabilidade.

O ser humano é o “estranho” pensante do universo. Diante dos moldes científicos da ciência clássica, há uma dificuldade de se conceber o papel que o ser humano deve desempenhar no mundo que o contém. A inserção de um ser consciente e inteligente no mundo traz pressupostos de compromissos e responsabilidades. E, se existem responsabilidades, quais são seus utensílios dos quais homens e mulheres podem lançar mão para dar conta das responsabilidades inscritas na própria vida? O cientismo, que perdurou desde a Renascença até o início do século XX, marcou sua época caracterizada por uma espécie de religião da ciência que, pelos seus excessos racionalistas, negou os valores ditos irracionais (visão mítica, mística e poética) como algo que deveria ser banido, pois evoca o pré-científico. Mas o que é cientismo (ou cientificismo)? Para Morin e Le Moigne, cientismo é ter “[...] uma visão fechada de ciência, é pensar somente nela, ela [a ciência] é tudo”.(MORIN; Le MOIGNE, 2000, p. 156).

Diante da situação de temeridade da “onipotência científica”, não seria, no mínimo, incerto entregar a pessoa por inteira às decisões constitutivas do saber científico? Homens e mulheres podem ser “conduzidos” estritamente pela “ética” do saber objetivo? A humanidade poderia ser dirigida por esse tipo de racionalidade? Vale advertir que não se quer aqui a centralização de um sujeito idealizado. Mesmo porque, esse sujeito idealizado não coincide com o ser humano revestido de sua dimensão

existencial concreta. De qualquer modo, este ser humano concreto não pode ser plenamente compreendido, seja pela ciência ou pela filosofia. A realidade é muito maior que todas as representações feitas até aqui sobre ela, maior que quaisquer sistemas concebidos pelo gênio humanidade. Os mistérios da realidade (ou realidades) não se deixam destravar inteiramente por qualquer custo ou esforço humano. Que isso não nos sirva de desalento, mas de advertência. Precisamos, até mesmo para avançar no reino da ciência, admitir que não é nada fácil conciliar o mundo exterior, a realidade em si, ao pensamento humano. Tendo em perspectiva o desenvolvimento histórico das idéias, sem muito esforço, pode-se dizer, segundo as palavras de Prado Jr, que:

[...] o comum das concepções gerais acerca da Realidade se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inversão idealista [a projeção da conceituação no mundo exterior ao pensamento] pela qual se recria no exterior do pensamento um mundo feito à imagem desse pensamento. Isso é, modelado e configurado segundo padrões conceptuais. [Disse Engels]: ‘Primeiro fabrica-se, tirando-o do objeto, o conceito desse objeto; depois inverte-se tudo, e mede-se o objeto pela sua cópia, o conceito’. (PRADO JR, 1981, p. 77, p. 25-6).

Quando é levantada a questão da condição humana, não se podem ignorar outras questões relacionadas, direta ou indiretamente, como as questões do que é imanente e do que é transcendente no humano. B.Mondin, no seu texto O homem, quem é ele?, diz que podemos efetuar uma dupla investigação sobre o humano: científica e fenomenológica. Se por um lado temos uma função mundanizante (enquanto ser corpóreo), por outro, somos mais que nosso corpo (enquanto “fenômeno”). Em nossa função corpórea, existimos num corpo: nos alimentamos, nos reproduzimos, podemos aprender, nos comunicar e termos nossos momentos lúdicos. Esta função indicia finitude e indigência. Mas, o nosso corpo, é também motivo de ambigüidade e dissimulação. W. Kasper diz que:

Nós sabemos que o homem pode esconder-se atrás do próprio rosto, pode colocar uma máscara e representar um papel que não lhe é próprio: com as suas palavras ele pode não só manifestar, mas também ocultar as próprias idéias e intenções. A corporeidade do

homem atesta-nos que ele pode distanciar-se de si mesmo, fechar-se, recusar -se ao outro. (KASPER apud MONDIN, 1980, p. 41).

A corporalidade humana é, certamente, um “fenômeno”. Esta efetivamente manifesta alguma coisa que ultrapassa a si mesma e, o que nos parece, podemos conferir-lhe o símbolo de uma realidade mais profunda, que se deixa permear e metamorfosear de modo profundo e total, a qual podemos conferir o nome de espírito. Este, por sua vez, é uma realidade íntima e profunda que pode esconder ou revelar-se por meio do corpo. Esta corporalidade manifesta as próprias condições e o estado definitivos do espírito humano, como: a bondade, a alegria, a malícia, a omissão, o prazer, a sobriedade, a astúcia, a indolência, a luxúria, a avareza etc.

O ser humano é também, nesta mesma linha de raciocínio, ser de autotranscendência. A fenomenologia nos dá algumas pistas sobre a transcendência humana. Mondin (op. cit.) faz a seguinte ponderação, a partir de sua abordagem fenomenológica do homem, sobre a transcendentalidade humana.

Primeiramente, o ser humano é transcendente em relação aos demais seres viventes. O homem supera os animais quanto ao pensamento, quanto à liberdade, em relação ao trabalho, na palavra, na técnica, na sociabilidade, quanto ao divertimento e em muito mais. Em segundo lugar, o homem transcende o homem. Isso não significa traspassar a própria condição humana, pois é esta mesma que lhe permite transcender- se. Em outros termos, o homem ultrapassa a si mesmo, mas não pode ultrapassar aquilo que o faz ultrapassar. Essa transcendência em relação a si mesmo, acontece em tudo que lhe possível fazer, como no ato de pensar, querer, desejar, agir, relacionar etc. Podemos dizer que o ser humano nunca está satisfeito com os fins alcançados. Este faz a sua existência entre a imanência e a transcendência. Esta existência geralmente é conflituosa e este conflito acontece no homem enquanto ser existente seja consigo mesmo, com o outro ou com o universo.

É preciso, pois, relacionar o “ser” com o outro e com o universo, do qual faz parte. Jacques Monod, em Diálogos com Morin, com relação ao lugar do ser humano no universo, diz que “[...] a matéria não é a parte importante da vida e a vida não é a parte importante do homem.” (MORIN; Le MOIGNE, 2000, p. 141). É como se não fossem feitos um para o outro. Entretanto, há quem pense diferente, como Freeman Dyson (loc, cit), que talvez expresse melhor a relação do ser humano com o mundo: “O universo, alguma parte, sabia que o homem ia chegar” (loc. cit.). Morin, por sua vez, diz que “[...] o universo que conhecemos não é o universo sem nós, é o universo conosco” (ibid., p. 142). Esta discussão traz várias ramificações, mas, a que queremos pontuar aqui é a possibilidade do lugar privilegiado ocupado pelo ser humano na natureza e no universo. As relações de si para si, para com o outro e para com o mundo no seu entorno. Procurando não se deter por uma visão meramente antropocêntrica ou, pelo menos por agora, da visão criacionista – que faz do homem e da mulher, criaturas criadas e colocadas no centro da criação (a sua coroa), o ser humano tem sido visto pela própria ciência como um ser distinto do universo que o circunda – é o ser pensante e pensador do universo.

O labor científico se volta, de forma expressiva, para o exercer poder sobre as coisas e sobre os seres vivos. Poder que se torna mais opressor à medida que coincide com um savoir-faire (saber-fazer em determinada situação). Japiassu diz que “Somos levados a crer que o mundo está inflacionado de ciência, que ele, o mundo, padece de uma ‘doença’ científica irreversível ou incurável” (JAPIASSU, 1975, p. 12). O excesso de luz que vem da ciência produz também cegueiras. Viktor E. Frankl, professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena e fundador da logoterapia, no seu texto A Presença Ignorada de Deus, ilustra de modo interessante o que produz as cegueiras na maioria das práticas científicas: (vide gráfico também):

Suponhamos que uma curva se localize num plano vertical e que este seja cortado por um plano horizontal. No plano de interseção, a curva projeta apenas os pontos de interseção: são cinco pontos isolados, aparentemente desconexos. Apenas na aparência não há conexão entre eles. Na realidade, a curva estabelece a sua interligação. As conexões, porém, não estão dentro, mas fora do plano horizontal, estão acima ou abaixo dele.(FRANKL, 1997, p. 83).

Fig. FRANKL, V.E. – A Presença Ignorada de Deus, p. 83.

A partir dessa analogia, podemos fazer uma conexão que faça sentido. Em um primeiro plano as mutações, assim como todas as evoluções, aparecem como eventos sem sentido, pois estão projetadas no plano de corte da ciência natural. Daí, surgirem como meros acasos, enquanto “[...] o sentido ‘mais elevado’ ou ‘mais profundo’ só pode se manifestar num outro plano, à semelhança da curva situada respectivamente acima ou abaixo do plano horizontal” (ibid., p. 83). Vale a advertência, no entanto, de que “[...] nem tudo pode ser compreendido quanto às conexões lógicas de forma teleológicas (ou final), mas apenas explicado de forma causal” (ibid., p. 83-4). Desse modo entende-se porque algo é e deve ser deste ou daquele modo, porque também algo é e, do modo que é apresentado, deve ser desprovido de sentido. “[Mas], apesar de tudo, é válido acreditar num sentido encoberto, que está acima de tudo, situado num outro plano, para dentro do qual devemos segui-lo” (ibid., p. 84). Ao fazer o seu recorte, que se faz necessário, o conhecimento científico além de perder o alcance, as projeções científicas perdem sua força e também perdem a sua utilidade e, a partir daí, emerge a fé:

[O] que é in-compreensível (‘un-wiss-bar’), não precisa ser in-acreditável (‘un-glaub-

lich’). De fato, é impossível descobrir apenas pelo intelecto se, em última análise, tudo é

desprovido de sentido, ou se existe um sentido encoberto por detrás de tudo. Embora não haja uma resposta intelectual a esta pergunta, é possível assumir diante dela uma decisão existencial. [...] Confrontado com estas duas possibilidades de pensamento [ter sentido ou

a ausência dele], o homem que crê num sentido diz o seu fiat ou ‘amém’: ‘Assim seja, faço a opção por agir como se a vida tivesse um sentido infinito, além de nossa capacidade finita de compreensão, enfim, um supra-sentido.’ E com isso acaba se cristalizando uma verdadeira definição: ‘A fé não é uma maneira de pensar da qual se

subtraiu a realidade, mas uma maneira de pensar à qual se acrescentou a

existencialidade do pensador’. [Grifos nossos].(FRANKL, 1997, loc. cit.).

A fé, pois, não se trata de um mero salto no escuro, mas, sim, uma resposta da inteireza humana aos apelos de sua própria existência, dos desafios que vêm de fora de si e também de sua transcendência, do seu sentido último da vida, e da necessidade de sentir-se ancorado no absoluto, conceitos que serão explicitados mais adiante. Por isso mesmo a fé compreende, como diz Paul Tillich (1996), em sua obra Dinâmica da Fé, o ato da pessoa como um todo, presente em cada ser humano. Mesmo os mais céticos precisam de algo para crer, até mesmo para justificar as suas descrenças. A fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano, envolve todas as suas dimensões.

O ser humano é dotado de uma dimensão racional interfaceada com outra dimensão irracional. Aliás, em muitas situações elas se confundem.Talvez por isso, Glasersfeld, seguindo uma linha de pensamento similar, diz que as pessoas já nascem místicas. Os bebês, desde que nascem, têm uma relação não racional com suas mães. Certamente não é uma relação da qual se possa dizer ou captar racionalidade. “Na minha opinião, isso faz parte de um enorme entorno místico no qual vivemos; o ambiente é basicamente místico. Não sei como é este mundo. Tem todo tipo de formas e sentidos que não posso captar racionalmente” (ibid., p. 87), sentidos que não cessam na vida infantil, mas perduram, por toda nossa vida. O sujeito cognoscente tem, nele próprio e traz num halo, uma certa “espectralidade”, uma espécie de “espaço existencial” com matizes de racionalidade e afetividade, racionalidade e mística. Entretanto, mesmo que essa idéia possa ser contrariada, existe algo no humano não redutível, que transcende as explicações racionais, que coloca o humano, qualitativamente, para além das outras espécies. Mesmo com essa constatação, para Glasersfeld a limitação das distinções entre o que é racional e o que é “i-racional”, por

exemplo, na verdade é mais uma “distinção lingüística, histórico-cultural, ligada ao desenvolvimento.” (ibid., p. 87). Essas distinções não têm apoio significativo através da história do conhecimento, pois as mesmas são conseqüências do condicionamento histórico-cultural e, talvez psicológico, particular, sobre as quais (as distinções) cabem questionamentos. Historicamente,

Esforçam-se muito, mas por fim fracassam porque são magníficas teorias se concordamos previamente com os valores básicos que elas propunham, mas não há maneira de justificar esses valores racionalmente. Penso que isto pertence ao que

denomino de mundo místico – que, em longo prazo, é muito mais importante que o racional. [...] Mas creio também que a maioria das pessoas que cresceu e se desenvolveu

no mundo ocidental deve chegar por meio da razão, deve esgotar a razão a partir de

dentro antes de poder provar algo diferente.[Grifos nossos]. (GLASERSFELD in:

SCHNITMAN, org. 1996, p. 85).

A racionalidade humana é, a partir mesmo de sua concepção, limitada. Aliás, falar de racionalidade é falar de uma idéia que traz, em muitas situações, um invólucro de nebulosidade. Não há inteira racionalidade na racionalidade humana, pois o ser humano, definitivamente, não é redutível à racionalidade, há muito de “i-racional” nele. Assunto que ainda será explorado mais adiante. Não se pode explicar a racionalidade de forma totalmente racional. Pearce pergunta a Glasersfeld: se a bruma que paira sobre a racionalidade é “parte deste mundo místico?” (ibid., p. 88) Por que não falar racionalmente sobre a mesma? A resposta foi a seguinte: “Se o fosse, tudo se desintegraria...” (loc. cit). A ciência em geral não consegue analisar, decifrar e responder suficientemente, talvez na sua maior parte, as questões pertinentes à complexidade da condição humana. Este é mais um motivo para nos determos com mais cuidado sobre essa condição e tentar reunir, sintetizar e expandir os conhecimentos, se possível. Esse conhecimento que ora propomos, sem nos desfazermos de grande parte do que já foi pensado sobre o ser humano, está sob os auspícios de novas luzes que surgem de vários lugares. Não são luzes quaisquer, mesmo porque estão nos frontes das discussões e queremos tirar bom proveito disto.

Dentre esses saberes temos aqueles que propõem uma nova antropologia e, conseqüentemente, uma nova axiologia. Esses novos saberes têm se preocupado com a dimensão humana do espírito, como dimensão legítima e legitimadora, na existência humana em geral. Procuram juntar as partes cindidas na ciência clássica. Partes que fazem falta para a compreensão da totalidade humana. É o que veremos a seguir.

CAP. II O ESPÍRITO E A ESPIRITUALIDADE COMO

TEMAS CANDENTES

[...] ultrapassamos a visão do homem máquina e do homo natura, Frankl encontra o Homo Humanus, que usa o cinzel para eternizar na pedra um sentimento, que usa o canto ou a prece para comunicar o belo ou o santo. É também aquele que anseia pelo espiritual e vai além do impulso para eternizar uma idéia, uma obra ou alcançar o Eterno, o Supra-Sentido, no seio do próprio Deus (FRANKL, Viktor E., 1997, p. 9).

Em muitas filosofias metafísicas, o sujeito confunde-se com a alma, com a parte divina ou, pelo menos, com o que em nós é superior, já que nele se fixam o juízo, a liberdade, a vontade moral, etc. Não obstante, se o considerarmos a partir de outro lado, por exemplo, pela ciência, só observamos os determinismos físicos, biológicos, sociológicos ou culturais, e nessa ótica o sujeito dissolve-se. (MORIN in: SCHNITMAN, D. F., org., 1996, p. 45).

Considerando a retomada das reflexões, mediante a utilização de meios como a literatura, especializada ou não, a multiplicação de debates e conferências, núcleos de pesquisas etc, o espírito e a espiritualidade humanos certamente estão entre os temas candentes de nossos dias. Esse assunto não somente está na ribalta das discussões como também surge e ressurge das mais variadas instâncias do conhecimento humano. Entre essas instâncias, estão aquelas que antes eram consideradas redutos da ciência dura, que não admitiam espaços mínimos para esse tipo de reflexão e subjetividades. Hoje podemos dizer que algumas temáticas, ainda que marginais, como as que abraçam a legitimidade da subjetividade humana e as que compreendem a multidimensionalidade