• Nenhum resultado encontrado

3. MORFOLOGIA CONSTRUCIONAL: PRINCIPAIS IDEIAS

3.4 CONSTRUÇÕES: A NOÇÃO DE CONSTRUÇÃO GRAMATICAL E IDIOMA

De acordo com Booij (2010), a ideia de “construção”, definida com o pareamento de forma e significado, é tradicionalmente aplicada a padrões linguísticos que associam propriedades formais a uma semântica específica. Esse modelo remete aos parâmetros propostos por Goldberg (1995) com a Gramática das Construções. O modelo de Goldberg repousa na concepção de que a gramática de uma língua é formada por uma rede de construções gramaticais (CGs). Esse modelo permite o tratamento de fenômenos linguísticos em níveis distintos. De acordo com a teoria construcionista, as construções gramaticais constituem modelos complexos formados através do pareamento de forma e significado; em outras palavras, segundo tal modelo, forma e

significado não se dissociam; na verdade, são contrapartes de uma mesma unidade, acessada e processada composicionalmente pelos usuários de uma língua. Dessa forma, uma construção pode estar ligada à outra, formando uma enorme rede, o que constitui o inventário linguístico do falante. sempre maximizado para atender a fins comunicativos;

(iii) Princípio da economia maximizada: o número de construções distintas deve ser

(a) Ligação por polissemia: estabelece uma relação entre o sentido específico de uma construção e sua extensão presente em outra;

(b) Ligação por instanciação: ocorre quando uma determinada construção é a instância da outra, com alguns elementos especificados, isto é, requer que uma construção seja

aberta a ponto de permitir que demais construções surjam a partir da especificação de seus elementos.

Com o objetivo de exemplificar a ideia de construção, Booij (2010) retoma um dos exemplos mais conhecidos de construção sintática: a construção de movimento causado de Goldberg (2006).

(12) Pat sneezed the foam off the cappuccino.

Pat espirrou a espuma fora do cappuccino.

Na sentença em (12), o verbo inglês to sneeze é usado como transitivo e volitivo.

No entanto, o seu uso mais comum é como intransitivo e não-volitivo. Apesar disso, quando utilizado com um objeto, esse verbo entra numa construção de movimento causado e modifica suas propriedades sintáticas e semânticas. Dessa forma, isso ocorrerá com qualquer verbo que entrar nessa construção e essas instanciações individuais receberão o nome de constructos.

Ainda, outra noção importante para o desenvolvimento da análise da reduplicação de base verbal está presente em Goldberg (1995): a ideia de apagamento de argumento, sendo que um deles é o de complemento nulo. Ora, o presente fenômeno resulta em uma reconfiguração sintática, na qual os argumentos verbais são, muitas vezes, apagados à medida que ocorre a nominalização dos termos (VN).

Os complementos verbais podem ser nulos quando a identidade do referente é desconhecida ou irrelevante; é o que ocorre em casos como os seguintes (GOLDBERG, 1995:58):

(13) After the operation to clear her esophagus, Pat ate and drank all evening.

Depois da operação para limpar seu esôfago, Pat comeu e bebeu a noite toda.

No exemplo acima, ocorre um complemento nulo indefinido, já que não se sinaliza quais substâncias foram comidas ou bebidas – os objetos dos verbos eat e drink não são expressos e tampouco se pode retomá-los por meio do contexto. Esse tipo de caso é diferente de um complemento nulo definido, em que o objeto apagado pode ser retomado por meio do contexto, como em (GOLDBERG, 1995:59):

(14) Chris blamed Pat [ ].

Chris culpou Pat [ ].

Jo won [ ].

Jo venceu [ ].

Nesses casos, os argumentos podem ser recuperados no contexto; logo, esses complementos são do tipo definido.

Booij (2010) também observa que a ideia de “construção” tem ocupado um importante lugar em modelos linguísticos recentes, dentre eles os mais conhecidos são a Gramática das Construções (CROFT 2001; GOLDBERG 1995, 2006) e a Gramática Cognitiva (LANGACKER 1999). Goldberg (2009), por exemplo, aponta que as construções podem variar em tamanho e complexidade. No entanto, apesar de a autora elencar a categoria morfema na lista das construções, Booij afirma que esse elemento não deve figurar em tal lista porque não consiste em um pareamento de forma e significado independente. Ele considera que, na verdade, incluir essa categoria na lista

representa apenas uma reminiscência da morfologia baseada em morfemas. Logo, os morfemas fazem parte de esquemas morfológicos e sua contribuição significativa é acessível apenas por meio do significado da construção morfológica como um todo.

Croft (2001), por exemplo, apresenta a seguinte tipologia de construções:

(15) O continuum sintaxe-léxico

Michaelis & Lambrecht (1996)8 assim se posicionam a respeito da relevância da Gramática das Construções para a análise das palavras:

Na Gramática das Construções, a gramática representa um inventário de forma-significado-função complexas, no qual palavras são diferenciadas de construções gramaticais apenas pela observação de sua complexidade interna. O inventário de construções não é desestruturado;

ele é mais como um mapa do que uma lista de compras. Elementos nesse inventário são relacionados por meio de hierarquias de herança, contendo padrões mais ou menos gerais.

8 “In Construction Grammar, the grammar represents an inventory of form-meaning-function complexes, in which words are distinguished from grammatical constructions only with regard to their internal complexity. The inventory of constructions is not unstructured; it is more like a map than a shopping list.

Elements in this inventory are related through inheritance hierarchies, containing more or less general patterns.”

De acordo com Booij (2010), os processos morfológicos são idiomas construcionais, espécies de construções semi-abertas, em que ocorre a união de um elemento preso (afixo) a uma outra parte aberta (base); logo, em um idioma construcional, nem todas as posições são lexicalmente fixas. Isso influi diretamente na concepção de léxico, pois, nesse caso, não se forma uma lista fixa de expressões: ela pode ser estendida mediante casos de uso criativo da linguagem. Nesse sentido, as formações lexicais são idiomas construcionais no nível da palavra. Segundo Booij (2010:13)9:

“A existência de tais idiomas construcionais tem implicações para nossa visão do léxico.

Tradicionalmente, o léxico é concebido como uma lista de expressões linguísticas fixas e convencionalizadas, tanto as palavras quanto as unidades frasais idiomáticas maiores.

Entretanto, os fatos discutidos aqui implicam que o léxico tem de ser estendido com idiomas subespecificados parcialmente” [...]

Dessa forma, composições como criado-mudo e arco-íris são fechadas, enquanto formações como guarda-roupa e cavalo-marinho são abertas, pois podem ser estendidas em casos como guarda-pó ou leão-marinho, por exemplo.

Construções são, portanto, interseções de níveis diferentes da língua e são organizadas hierarquicamente por meio de ligações por herança em uma espécie de rede ou teia. Um ponto importante destacado por Booij (2010) é que a ideia de uma

“construção morfológica” não é realmente tão recente quanto parece. Em Language, Bloomfield, no capítulo sobre morfologia, afirma que há “três tipos de construções morfológicas” e destaca que uma palavra complexa possui “uma camada exterior de

9 “The existence of such constructional idioms has implications for our view of the lexicon. Traditionally, the lexicon is conceived of as the list of conventional and fixed linguistic expressions, both words and larger idiomatic phrasal units. However, the facts discussed here imply that the lexicon has to be extended with partially underspecified idioms” […]

construções flexionais e uma camada interior de construções de formação de palavras”

(BLOOMFIELD, 1933: 227). A inovação consiste, portanto, na análise morfológica nos moldes da Gramática das Construções.

Retomando as formações lexicais X-er, os nomes deverbais em inglês são, portanto, idiomas construcionais com uma posição fixa, o sufixo –er. Nesse sentido, o significado agentivo desses idiomas construcionais também é especificado e tomado holisticamente da construção como um todo. Esse significado não pode ser evocado pelo sufixo somente; prova disso é que, quando se acrescenta essa sequência a um adjetivo em inglês, o resultado é uma construção comparativa, como taller. Logo, nomes deverbais são constructos morfológicos que instanciam essa construção; forma fonológica e morfossintática confluem em uma só representação. Entretanto, isso não ocorre apenas com a derivação; a composição, outro tipo básico de formação de palavras, também pode ser representada construcionalmente, tal como exemplificado a seguir (BOOIJ, 2010: 18):

(16) [[a]XK [b]Ni ]Nj ↔ [SEMi com relação R para SEMK]j [αF] [αF]

(17)

NN book shelf (guarda-livros) VN drawbridge (ponte levadiça) NA blackboard (quadro-negro) PN overdose

No esquema em (16), a variável x representa uma categoria lexical, que pode ser Nome, Verbo, Adjetivo e Preposição; as variáveis a e b representam sequências sonoras arbitrárias; as variáveis i, j e k são índices lexicais para propriedades fonológicas, sintáticas e semânticas de palavras; R é determinado por cada composto individual; e [αF] indica que não apenas a categoria sintática da cabeça à direita será idêntica a do composto resultante, mas também as demais características, como gênero e declinação, ou seja, essa base é a cabeça formal e semântica do composto. Toda a palavra composta será uma instanciação desse esquema. Umas das principais vantagens dessa descrição esquemática é que ela torna desnecessária a chamada Regra de Adjunção de Núcleo à Direita (WILLIAMS, 1981) para a generalização de que a categoria de uma palavra composta é determinada pelo seu constituinte à direita.

Além disso, novas palavras podem ser criadas por meio da unificação de um esquema com um item lexical, como ocorre com a palavra inglesa skyper. Nesse caso, a unificação do verbo skype com o esquema das formações em -er resulta no constructo skyper (“aquele que se comunica através do skype”). A unificação é uma operação usada para criar expressões linguísticas bem formadas. Essa mesma operação pode ocorrer com a prefixação, como é o caso da palavra out em inglês. Entretanto, nesse caso, pode-se considerar que ocorra uma composição, visto que out é um item polissêmico, podendo ser usado como preposição ou advérbio. Essa alternativa é exemplificada em (18) a seguir:

(18) [[out] ADV [X]Vi]Vj ↔ [exceder alguém ou alguma coisa em SEMi]j

Mary outdances John

Mary dança melhor que John.

Como anteriormente observado, na perspectiva linguística apresentada por Booij (2007), o léxico é representado como uma hierarquia e as palavras são agrupadas em categorias, que, por sua vez, são subcategorizadas com base em diferenças entre si. Ao final da hierarquia, encontram-se palavras individuais, como representado na figura abaixo:

(19)

Em (19), é representado um sistema hierárquico em forma de uma árvore de herança, no qual cada nó herda propriedades de nós dominantes. Com base nessa ideia, é possível, por exemplo, dividir a classe dos nomes em simples e complexos e esta última categoria, em subclasses com uma estrutura morfológica definida, tal qual se observa na figura (20) a seguir:

(20)

Nota-se, portanto, que os esquemas dominam as palavras individuais diretamente. No entanto, essa não é apenas a única informação herdada pela palavra complexa; entra em jogo também a informação vinda da palavra base, como demonstrado no exemplo a seguir:

(21)

A relação entre palavra base e palavra derivada é apontada por meio de co-indexação, ou seja, o índice lexical da base aparece como parte da informação da palavra derivada. Booij assume a “teoria da entrada plena”, defendida por Jackendoff (1975). Essa teoria pressupõe que as entradas lexicais são especificadas e o sistema de herança julga qual informação é redundante e pode, portanto, ser descartada. Nessa interpretação, com a unificação do esquema e da palavra base, ocorre o licenciamento do constructo morfológico, ou seja, da própria palavra complexa. Dessa forma, são os esquemas que dão o suporte para observar em cada entrada lexical qual informação é previsível e redundante.

Ainda a respeito de sistemas de herança, Booij introduz uma noção considerada por ele crucial, a de “herança default”. Ele afirma que, muitas vezes, uma informação presente em um nó mais alto na hierarquia não é herdada, acabando por ser substituída pela propriedade presente em um nó mais baixo. Esses casos de exceção provam que nem toda informação de nós predominantes é necessariamente preservada. Um exemplo

desse tipo de ocorrência é o sufixo -baar (-ável) do holandês, que normalmente é associado a verbos transitivos para formar adjetivos. No entanto, existem casos como werk-baar (trabalhável), em que esse sufixo é acrescentado a um verbo intransitivo.

Nesse tipo de caso, ocorre uma subcategorização de exceção, ou seja, um verbo intransitivo compatibiliza na construção como transitivo. A unificação do esquema com um verbo intransitivo não é bloqueada, visto que não interfere no uso regular do adjetivo formado.

Da mesma forma, as generalizações abstratas sobre um sistema morfológico também podem ser feitas por herança default. Observem-se os exemplos abaixo:

(22) [a [b]Yj]Yi ↔ [SEM [SEMj]]i | | [be [b]Nj]Vi ↔ [SEM [SEMj]]i

Os esquemas em (22) apresentam a e b como variáveis fonológicas e Y representa a categoria sintática da palavra base. Essas generalizações se referem à prefixação em inglês. Nela, a palavra base compartilha a categoria sintática com a palavra derivada. Logo, esse esquema é uma generalização acerca de construções morfológicas, ou seja, é uma metaconstrução. Entretanto, muito embora o esquema geral domine aquele para palavras inglesas com prefixo be-, a especificação de V anula a de N, que era previsível no esquema geral, tudo em perfeita conformidade com a ideia de herança default.

Os casos analisados até aqui servem para comprovar que a ideia de um léxico hierárquico é fundamental para expressar generalizações e subgeneralizações em diferentes níveis de abstração (palavras individuais, construções morfológicas e

metaconstruções morfológicas). Outra importante observação é que os esquemas são orientados para o output. Logo, essas generalizações funcionam como importantes argumentos em favor de esquemas em detrimento de regras, que são orientadas para o input., como já tivemos a oportunidade de destacar em 3.3.

Booij não descarta as relações paradigmáticas, ou seja, as correlações entre listas de palavras com o mesmo grau de complexidade e derivadas da mesma palavra base.

Nesse tipo de relação, o significado de um termo é definido com base no significado do outro. Com o intuito de demonstrar como se dá esse tipo de correspondência são apresentados os exemplos abaixo retirados do inglês:

(23) < [x-ism]Ni ↔ SEMi > ≈ < [x-ist]Nj ↔ [pessoa com propriedade de Y relacionada a SEMi]j >

(24)

altru-ism (altruísmo) altru-ist (altruísta) aut-ism (autismo) aut-ist (autista) bapt-ism (batismo) bapt-ist (batista)

commun-ism (comunismo) commun-ist (comunista) pacif-ism (pacifismo) pacif-ist (pacifista)

Nos esquemas em (23), SEMi representa o significado da palavra terminada em –ism. Dessa forma, um altruísta tem uma disposição para o altruísmo e um pacifista adere à ideologia do pacifismo. A relação paradigmática entre esses dois esquemas pode conduzir à formação de novas palavras, já que, por meio de uma palavra como determinism (determinismo), é possível facilmente formar determinist (determinista) e

conhecer seu significado de “pessoa que adere ao determinismo”. Em outras palavras, por meio de um dos termos da relação paradigmática é possível criar uma nova palavra e conhecer seu significado, processo que pode ocorrer em ambas as direções, ou seja, seria igualmente fácil formar determinismo a partir de determinista. Entre as formações X-ista e as formações X-ismo, temos o que Basílio (1980) denomina de padrão derivacional geral, formalizado conforme (25) a seguir:

(25) [[Xista  [[Xismo

É importante salientar que, nesses casos, o significado não se traduz apenas como a função composicional das partes de seus constituintes: é, na verdade, o resultado da relação entre palavras com o mesmo grau de complexidade (BOOIJ, 2010: 36). As relações paradigmáticas entre esquemas construcionais revelam a necessidade dos usuários da língua em expressar, de maneira flexível, generalizações correspondentes à interpretação semântica de palavras complexas. Além disso, as construções gramaticais permitem especificar propriedades que não podem ser deduzidas da simples leitura de seus constituintes. Um bom exemplo disso são os compostos VN das línguas neolatinas, como o francês, o italiano e o português, exemplificados a seguir:

(26) Francês a. chauffe-eau quente-água

“aquecedor”

b. coupe-ongle corta-unha

“alicate”

Italiano c. lava-piatti lava-pratos

“lava-louça”

d. porta-lettere leva-cartas

“carteiro”

Português porta-copos mata-mosquito pára-raios limpa-vidros

É possível observar, em (26), que os constituintes dos compostos neolatinos não trazem consigo a ideia de agente/instrumento veiculada no significado final. Essa noção só existe na construção como um todo. Logo, lava-louças, por exemplo, não evoca o significado de instrumento em seus componentes, tampouco trata-se de um certo tipo de louça, mas de uma máquina que lava louças. Dessa forma, essa propriedade não deriva dos constituintes, ou seja, é tomada holisticamente. Nesse caso, agente/instrumento e classe são propriedades holísticas, que só podem ser depreendidas da construção como um todo. Nota-se, ainda, que esse é um tipo de composto exocêntrico, já que a cabeça lexical não é um nome e, no entanto, a palavra composta pertence a essa categoria.

A composição exocêntrica é um fenômeno generalizado e apresenta uma produtividade irregular quando se comparam as diferentes línguas naturais. No inglês, por exemplo, existem poucos compostos exocêntricos, como cut-throat (degolador) e pick-pocket (pivete). Por outro lado, no chinês e no japonês, esse tipo de composto ocorre em grande número.

Documentos relacionados