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O primeiro verbo a aparecer na figura típica é o utilizar. Não há outra forma de fazer uso de informação relevante capaz de propiciar vantagem indevida sem a compra ou venda de ações. Ainda que se use tal informação e se obtenha um ganho, como, por exemplo, o autor consiga a promessa de venda futura de ações, ou por algum motivo, receba os dividendos das ações em troca das informações, sem a compra ou venda não é possível falar em prática criminosa. Isso porque, aquele, sabedor de informações relevantes, passa a terceiro e em troca recebe dividendos daquelas ações ou mesmo outra vantagem econômica, somente será acusado da prática de insider trading se o terceiro fizer uso dessas informações. No momento em que o terceiro faz uso dessas informações para comprar ou vendar ações, o primeiro a obtê-las irá responder pelo crime, em coautoria.

Quanto à expressão capaz de propiciar, existe polêmica em torno dela. É ponto de partida na análise de um tipo penal comparar a conduta do autor com os verbos existentes no tipo. O delito de uso indevido de informação privilegiada, data maxima venia, é crime formal, ao contrário do que expõe respeitada doutrina nacional169. Isso porque, para sua consumação, não é necessária a efetiva obtenção da vantagem indevida, fruto do uso da informação relevante. Suficiente será o uso da informação privilegiada e a possibilidade de se obter um ganho, ainda que não atingido posteriormente.

O professor Damásio Evangelista de Jesus apresenta precisa definição a respeito de um crime formal: “São delitos formais aqueles que, não obstante reclame a lei que a vontade do agente se dirija à produção de um resultado que constituiria uma lesão do bem, não exigem para a consumação que esse resultado se verifique”170. O contrário dessa classificação é a de delito material, no qual, para a consumação, necessário se faz a ocorrência do resultado naturalístico (aqui vale lembrar a diferença entre resultado naturalístico, aquele em que há modificação do

169 Neste sentido a lição do professor João

Carlos Castellar: “Como é cediço, os crimes materiais ‘exigem um evento externo diverso da ação do agente, uma mutação de natureza material do meio circundante’. Tal ocorre no delito de uso indevido de informação privilegiada, que se inclui nessa classe, já que a conduta do agente só se realiza integralmente com efetiva obtenção da vantagem ilícita, quando se realiza o resultado que vulnera o bem jurídico, qual seja a confiança que inspira os investidores a aplicarem seu capital no mercado de valores mobiliários”. CASTELLAR, João Carlos. Insider Trading e os novos crimes corporativos. Op. cit., p. 123.

mundo exterior em razão do comportamento do agente, próprio em alguns crimes, e resultado normativo, ofensa ao interesse tutelado pela norma penal, comum a todos os tipos de delitos).

A dúvida é claramente suprimida diante de detida análise dos termos do tipo. O artigo 27-D da Lei nº 6.385/76, incluído pela Lei nº 10.303/01, apresenta a seguinte redação: “Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários”.

Ora, o tipo em nenhum momento exige o concomitante uso de informação relevante e a obtenção de vantagem indevida. No texto legal, está claro que a informação deva ser capaz, ou seja, apta, possível, viável a obtenção da vantagem indevida. Não se fala no texto, entretanto, em obter vantagem indevida mediante o uso de informação relevante ou utilizar tal informação e com isso conseguir vantagem indevida. O verbo do tipo apenas exige o uso de informação relevante e com isso a possibilidade da obtenção de vantagem indevida.

Se alguma dúvida restar, basta a comparação com dois conhecidos crimes previstos no Código Penal. Primeiro, analisemos o crime de furto, no qual está previsto “subtrair coisa alheia móvel”. A exigência do resultado está evidente, somente o ilícito se consumará se houver a subtração da coisa móvel e, por consequência, o ingresso na disponibilidade do autor171. Trata-se de crime material, onde a ocorrência do resultado naturalístico é necessária para sua consumação. Não está escrito uma conduta na qual apenas fala “com o intuito de subtrair” ou “capaz de subtrair”.

O exemplo de crime formal, objeto de comparação do delito em tela, entre outros, pode ser delito de extorsão, previsto no artigo 158 do Código Penal. O caput do artigo, ao descrever a conduta ilícita, deixa claros os requisitos como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem, indevida vantagem econômica, a fazer, tolares que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”. Ora, o tipo não fala em constranger... e obter para

171

Mais uma lição do professor Damásio: “O furto atinge a consumação no momento em que o objeto material é retirado da esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que não obtenha a posse tranquila”. JESUS, Damásio E. de. Código Penal anotado. 19.ed. São Paulo: Saraiva, p. 562.

si, simplesmente estabelece constranger...com o intuito de obter para si172. Basta para caracterizar o ilícito o efetivo ato de constranger e a mera intenção de obter.

Diante desta análise do tipo, é evidente que o legislador, ao prever o delito de insider trading, deixou expresso o “utilizar informação relevante..., capaz de propiciar [...], vantagem indevida”. Semelhante ao crime de extorsão, no qual consta “constranger alguém [...], com o intuito de obter..., indevida vantagem econômica” e distante do de furto, com o seu “subtrair [...], coisa alheia móvel”.

Posto isso, resta claro, como crime consumado a conduta daquele que, valendo-se de informação privilegiada, ainda não divulgada ao mercado, faz uso, para comprar ou vender ações, e não obtém o lucro, desde que possível. Por se tratar de crime formal, todavia, não é permitida a forma tentada. Ou o agente faz uso da informação privilegiada – diretamente ou por meio de terceiros, em coautoria – ou, o simples fato de tomar conhecimento da informação, sem qualquer uso, é atípico173.

Nesse contexto, existe outra situação possível e merecedora de análise. Trata-se daquela em que o sujeito possui a informação privilegiada, não divulga ao mercado conforme manda as normas do mercado de capitais e faz uso dela, entretanto, obtém prejuízo. Em uma análise preliminar, poderíamos concluir que o fato é atípico, pois, a lei exige capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida. Ora, vantagem não é simplesmente ter lucro. É possível a existência de informações relevantes para a vida da empresa, mas que lhe trarão prejuízos e, por consequência, farão com que as ações se desvalorizem. O administrador da companhia, sabedor destes fatos, e antes da divulgação das informações ao mercado, simplesmente vende as ações. Argumento em contrário, no direito, sempre há, mas diante, atenta e imparcial análise do tipo, não há como extrair outra conclusão senão a de que o fato é típico. Vejamos: a informação era relevante, na hipótese ainda não divulgada ao mercado, foi feito o uso e propiciou uma vantagem

172 A jurisprudência nacional é firme nesse sentido, vejamos: “A extorsão é delito formal que se perfaz

com o efetivo constrangimento de alguém a fazer, deixar de fazer ou tolerar que se faça algo, não dependendo da obtenção de vantagem econômica para a sua consumação”. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RE 125040/SP. Relator: Min. Gilson Dipp, j. 11 abr. 2000.

173José Marcelo Martins Proença comunga do mesmo entendimento ao asseverar: “A ação típica, ou

núcleo do tipo, consiste em negociar com valores mobiliários, valendo-os de informação não divulgada para o mercado. Conseqüentemente, o delito sob exame consubstancia-se num crime formal, eis que o legislador não cogitou, para a sua consumação, da efetiva obtenção da vantagem almejada pelo autor”. PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading – regime jurídico do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. Op. cit., p. 321.

indevida, qual seja, reduziram-se as perdas. Se o agente permanecesse com as ações, essas teriam acentuada desvalorização, ao vendê-las antes que todos tomassem conhecimento de fatos capazes de prejudicar a empresa, conseguiu evitar perdas, transferindo, indevidamente, o prejuízo a investidores de boa-fé. Não tem como não reconhecer o que menor se perdeu, obteve vantagem em relação aos demais. Concluída a negociação em nome próprio ou de terceiro, todos os verbos do tipo terão sido cumpridos, e o fato é típico.