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O BEM JURÍDICO E OS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO

O mesmo raciocínio desenvolvido no item acima, ou seja, análise criteriosa e confronto de diferentes aspectos envolvidos, vale para os crimes contra o sistema financeiro. Luiz Regis Padro assinala que “as condutas praticadas contra o sistema financeiro, durante longo lapso temporal, não foram previstas como delito no Brasil”. O motivo não deixa de ser simples, pois até meados do século passado possuíamos uma economia, basicamente, agrícola, sem a presença de grandes corporações, especialmente, as financeiras. Logo adiante o mesmo autor complementa “a situação do país, no entanto, se transformou, e passou a exigir medidas penais que coibissem tal tipo de conduta, com o escopo de manter uma boa gestão da política econômico-financeira do Estado”63. Desta forma, surgiram normas a tratar deste relevante setor da economia. Inicialmente, apenas sob o ponto de vista administrativo, como a Lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional, e a Lei 4.728/65, disciplinadora, na época, do mercado de capitais. A legislação penal apenas surgiu no ano de 1986, com a Lei 7.492.

Parte-se para a análise de qual seria o bem jurídico dos crimes previstos na Lei 7.492/86. Antes, a importância do tema assinalada por Assis Toledo “dentro o imenso número de bens existentes, seleciona o direito aqueles que reputa ‘dignos de proteção’ e os erige em ‘bens jurídicos’. Para Welzel, o ‘bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é juridicamente protegido” 64.

Os crimes contra o sistema financeiro nacional apresentam significativa importância ao tratar de relevante setor da economia. Não se pode negar que a previsão penal para infrações envolvendo o sistema financeiro se faz necessária, basta lembrar recorrentes fraudes na gestão de instituições financeiras. O mais recente escândalo foi o ocorrido na administração do Banco Panamericano. O Banco Central do Brasil detectou inconsistências contábeis em citada instituição financeira que lhe obrigaram a se socorrer do fundo garantidor de crédito,

63 PRADO, Luiz Regis, Direito penal econômico. Op. cit., p. 210.

64 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a Lei nº

inicialmente no valor de R$ 2.500.000.000,00 (dois bilhões e quinhentos milhões de reais)65.

Não se deve esquecer que, embora o banco tenha sido socorrido por aportes do Fundo Garantidor de Crédito, tais recursos possuem elevado custo – não para quem toma emprestado – mas para quem o sustenta, pois dispõe desse patrimônio que fica armazenado e aguarda eventual uso de instituição financeira em dificuldades. Conforme se constata da análise do capítulo II, artigo 5º, do anexo I, à Resolução nº 3.251, do Conselho Monetário Nacional, a garantia a ser prestada pelo Fundo tem como fonte de custeio as seguintes:

I - Contribuições ordinárias das instituições associadas;

II - Taxas de serviços decorrentes da emissão de cheques sem provisão de fundos;

III - Recuperações de direitos creditórios nas quais o FGC houver se sub-rogado, em virtude de pagamento de dívidas de instituições associadas, relativas a créditos garantidos;

IV - Resultado líquido dos serviços prestados pelo FGC e rendimentos de aplicação de seus recursos; V - Receitas de outras origens.

Permite-se concluir, da simples análise da norma, que os recursos do fundo garantidor de crédito têm como origem preponderante contribuições ordinárias das instituições financeiras. Neste caso, como é próprio do capitalismo e necessário para a sobrevivência da empresa, o custo será repassado para seus clientes, ou seja, são recursos de todos os correntistas das instituições financeiras a sustentar o fundo garantidor de crédito. Diante disso, ainda que a existência do fundo seja de inegável utilidade – pois é o meio encontrado para amparar instituições financeiras em dificuldades, evitando, desta forma, que a crise de um se alastre para todo o sistema – trata-se, em última análise, de recurso de todos os cidadãos, com responsabilidade, própria do uso de recursos públicos, assim devem ser tratados.

Posto isso, passa-se à análise do bem jurídico do ilícito previsto no artigo 4º da Lei 7.492/86, ou seja, dos crimes de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. A respeito do tema, o professor Manoel Pedro Pimentel apresenta os seguintes comentários:

65 Conforme nota técnica divulgada pelo Banco Central do Brasil, vale o registro que no curso da

apuração constatou-se que a inconsistência contábil era maior, o que fez atingir um valor total de R$ 4,3 bilhões em recursos usados do fundo garantidor de crédito e aportes a serem feitos pelos novos controladores, Banco BTG Pactual e a empresa pública Caixa Econômica Federal. NOTA à Imprensa sobre Banco Panamericano. Banco Central do Brasil. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/textonoticia.asp?codigo=2779&idpai=noticias>. Acesso em: 13 mar. 2012.

[...] a boa execução da política econômica do Governo, primordialmente, pois está incluído entre as infrações contra o Sistema Financeiro Nacional. Outros bens ou interesses jurídicos secundários também são defendidos, uma vez que a gestão fraudulenta ou temerária causa, ou pode causar prejuízos ao mercado financeiro ou aos investidores66.

Conforme se desenvolve, os crimes envolvendo a administração de empresas e negócios difusos, em regra, não possuem fácil identificação dos lesados, e do que se pretende proteger. Apesar do respeito à posição apresentada pelo professor Manoel Pedro Pimentel, na realidade, o bem jurídico principal que se pretende tutelar com a tipificação penal dos crimes de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira vai além da simples proteção à boa execução da política econômica do Governo. Na realidade, o objetivo é garantir a credibilidade do sistema financeiro, além de assegurar a transparência e a correção nos atos de administração de uma instituição financeira.

Claro que esta se trata de crimes pluriofensivos. Próprio dos crimes econômicos, os bens lesados não prejudicam uma única pessoa e tampouco atingem apenas o patrimônio. Na realidade, há risco, nos casos dos crimes de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira, a todos os aplicadores de determinada empresa. Mas vai além, pois no momento em que se identificam atos criminosos em um banco, corretora de valores ou financeira, essa passa a ser vista com reserva pelos investidores, o que pode levar a sua insolvência, com a realização pelos correntistas de saques dos recursos aplicados ou não realização de operações em seu segmento. A insolvência gera a liquidação da instituição financeira, que por sua vez, acaba gerando dúvida quanto à regularidade das operações em empresas do mesmo porte e segmentos. O medo do abalo da credibilidade das instituições financeiras e por consequência asfixia do fluxo de recursos para realizar suas operações, constantemente é usado como argumento de governos em diferentes países a justificar operações de socorro àquelas em dificuldade. A análise do bem jurídico tutelado por esse tipo penal reflete a viabilidade do argumento.

Cezar Roberto Bitencourt considera o bem jurídico tutelado pelos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional pluriofensivo. Apresenta os seguintes argumentos:

66 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional

– Comentários à Lei 7.492, de 16.6.86. São Paulo: RT, 1987, p. 50.

[...] protege-se a lisura, correção e honestidade das operações atribuídas e realizadas pelas instituições financeiras e assemelhadas. O bom e regular funcionamento do sistema financeiro repousa na confiança que a coletividade lhe acredita. A credibilidade é um atributo que assegura o regular exitoso funcionamento do sistema financeiro como um todo. Protegem-se, igualmente, os bens e valores, enfim, o patrimônio da coletividade, representada pelos investidores diretos que destinam suas economias, ou ao menos parte delas, às operações realizadas pelas instituições financeiras exatamente por acreditarem na lisura, correção e oficialidade do sistema67.

Diante disso, resta claro que, como próprio dos delitos econômicos, os crimes contra o sistema financeiro nacional possuem bem jurídico pluriofensivo. Busca-se preservar, sob o ponto de vista do indivíduo, o correntista da instituição financeira, de modo a desestimular práticas fraudulentas ou temerárias na direção da instituição financeira.

A tipificação penal de determinadas práticas ilícitas contra o sistema financeiro, e aqui somente foram abordados os crimes de gestão fraudulenta e temerária, tem por objetivo também preservar a credibilidade de todo o sistema financeiro68. A conduta irregular de um único administrador, neste segmento, pode pôr em risco a credibilidade de todos. Justifica-se a tipificação penal deste ilícito.

Luiz Regis Prado também possui entendimento de que o bem jurídico tutelado nos crimes contra o sistema financeiro possuí natureza transindividual. Apresenta a seguinte lição a respeito:

[...] em termos gerais, o bem jurídico tutelado nesse diploma é, fundamentalmente, o sistema financeiro nacional consistente no conjunto de instituições (monetárias, bancárias e sociedades por ações) e do mercado financeiro (de capitais e valores mobiliários). Tem por objetivo gerar e intermediar crédito (e empregos), estimular investimentos, aperfeiçoar mecanismos de financiamento empresarial, garantir a poupança popular e o patrimônio dos investidores, compatibilizar crescimento com estabilidade econômica e reduzir desigualdades, assegurando uma boa gestão da política econômico-financeira do Estado, com vistas ao desenvolvimento

67 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional &

contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 36

68 Neste sentido, a lição do magistrado Guilherme de Souza Nucci, ao tratar do artigo 4º da Lei

7.492/86, citado autor assim expõe: “O objeto material pode ser todo instrumento utilizado pelo administrador para promover a gestão fraudulenta (documento falsificado; contrato indevidamente lavrado; dinheiro irregularmente transferido etc.). Os objetos jurídicos são a credibilidade do mercado financeiro e a proteção do investidor”. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4.ed. São Paulo: RT, 2009, p. 1085.

equilibrado do País. Trata-se de bem jurídico de natureza macrossocial ou transindividual, de cunho institucional ou coletivo, salvo exceções [...] 69.