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O BEM JURÍDICO NOS CRIMES ECONÔMICOS

O conceito de bem jurídico na prática, por vezes, não possui fácil compreensão, embora não deva ser diante de qualquer dificuldade a respeito de determinado tema, descartada a possibilidade de tipificação penal. Isto porque, com a diversidade das atividades socioeconômicas atuais e a crescente complexidade das relações jurídicas, passou-se a entender outros além daqueles tradicionais valores protegidos pelo direito penal.

Neste ponto, merece comentários a respeito do Direito Penal Econômico, pois vai além do mero ilícito contra o patrimônio. O que se pretende regular ao tratar dos delitos econômicos são aquelas infrações com potencial de lesividade capaz de atingir relevante segmento da economia e diversas pessoas. O magistrado Francisco de Assis Betti, ao tratar dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, faz a seguinte observação:

Considerando os dois sentidos do Direito Penal Econômico, Bajo Fernandes aponta duas definições para os crimes dessa natureza. Sob o ponto de vista estrito, é a ‘infração jurídica-penal que lesiona ou põe em perigo a ordem econômica entendida como regulação jurídica do intervencionismo estatal da economia’. No conceito amplo é ‘a infração que, afetando um bem jurídico individual, põe em perigo, em segundo plano, a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços56.

A partir dessa declaração, percebe-se que não há uma definição precisa a respeito de quais são realmente os delitos econômicos. Na realidade, é necessário analisar cada caso. O ponto inicialmente está a considerar infrações que envolvam valores patrimoniais. Assim, por óbvio, estão excluídas as infrações contra os

54 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 5 55 Ibid., p. 6

56 BETTI, Francisco de Assis. Aspectos dos crimes contra o sistema financeiro. Belo Horizonte:

costumes ou contra a vida. Na realidade, o que se imagina tratar dos delitos com grande repercussão a número significativo de pessoas em razão de ameaça ou violação de segmento da economia.

Acepção semelhante à expressão nos é dada por Luiz Regis Prado, ao tratar dos delitos contra a ordem econômica no contexto do direito penal econômico, pois considera “como ordem econômica do Estado, que abrange a intervenção estatal da economia, a organização, o desenvolvimento e a conservação dos bens econômicos, bem como sua produção, circulação, distribuição e consumo”57.

Neste contexto, é inegável que os delitos contra o sistema previdenciário são considerados delitos econômicos; especialmente, dada a magnitude dos recursos envolvidos, a relevância para o fomento das atividades do Estado e dispersão dos sujeitos ativos. Posto isso, merece análise o bem jurídico neste tipo de crime.

O crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no artigo 168-A, é um exemplo deste tipo de delito58. Desde já, frisa-se que a contribuição previdenciária se trata de um tributo. Neste sentido, a lição da professora Zélia Luiza Pierdoná: “Com o advento da Constituição de 1988, a natureza tributária das contribuições a que se refere o seu artigo 149 – das quais as da seguridade social fazem parte – é reconhecida tanto pela jurisprudência como pela maioria da doutrina”59.

Poder-se-ia imaginar, inicialmente, que o bem jurídico neste caso é o patrimônio, até porque citado ilícito está previsto no capítulo V do título II da parte especial do Código Penal, título este que trata, justamente, dos crimes contra o patrimônio. Imagina-se, a partir deste raciocínio, que se estaria a referir ao patrimônio público, por se tratar – a contribuição previdenciária – de um tributo. Na

57 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. Op. cit., p. 28.

58 Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes,

no prazo e forma legal ou convencional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social. Lei n. 9.983, de 14 de julho de 2000. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. BRASIL. Lei n. 9.983, de 14 de julho de 2000. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, 17 jul. 2000.

realidade, não é o entendimento mais correto. Isto porque não podem-se considerar como patrimônio público valores que ainda estão sob a administração de particulares.

A respeito do tema, Daniel Alberto Casagrande sustenta: “A simples existência de obrigação tributária não permite concluir que os valores a serem recolhidos integram, antes da transmissão (tradição) o patrimônio do poder público, já que esse tem apenas a expectativa de ter entre seu ativo o valor da contribuição”60. Até porque, trata-se de conceito expressamente previsto em lei, conforme artigo 1226 do Código Civil: “Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição”. A professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Maria Helena Diniz, ao tratar do meio aquisitivo de direito real sobre coisas móveis, assinala: “O contrato, por si só, não é apto para gerar direito real, contém apenas direito pessoal; só com a tradição é que essa declaração translatícia de vontade se transforma em direito real”61. Por certo, então, que enquanto não houver o pagamento, a tradição não é concluída, e a União não adquire a propriedade dos valores pagos a título de contribuição social. Desta forma, não é possível falar em crime contra o patrimônio se nem sequer os valores sonegados chegaram a pertencer ao patrimônio da União.

Na realidade, os crimes contra a seguridade social, apesar de erro topográfico quando de sua inclusão no capítulo V do título II do Código Penal, possuem como bem jurídico protegido a arrecadação para a seguridade social. Neste sentido, Cezar Roberto Bitencourt, ao expor que: “O bem jurídico protegido são as fontes de custeio da seguridade social, particularmente os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (art. 194 da Constituição Federal) ou sinteticamente, a seguridade social”62. Neste diapasão, resta claro que a identificação do bem jurídico, imprescindível para se interpretar um tipo penal, merece detida análise quando se confronta com tipos penais de delitos contra a ordem econômica.

60 CASAGRANDE, Daniel Alberto. Crimes contra a arrecadação para a seguridade social:

apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária. 2008. Dissertação. (Mestrado em Direito), Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 40.

61 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. São Paulo: Saraiva 2008, p. 825. 62 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal

– Parte Especial. São Paulo: Saraiva.

2.4 O BEM JURÍDICO E OS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO